Jacques Tati

Jacques Tati. Ou Monsieur Hulot?

Foi dos últimos artigos que escrevi no Expresso antes de ir para a SIC. Fevereiro de 1992. Passaram 29 anos e Jacques Tati, morto e enterrado, já não é sequer um ilustre desconhecido. E eu estou a pensar que já me teria esquecido também, se não fosse essa noite, em Luanda, no cinema Império, em que, bouleversant, ele me apareceu em Playtime, filme prodígio de fina observação e nonsense. A noite era quente e colonial e eu vestia o inesquecível casaco vermelho, que décadas depois Spielberg daria a Christian Bale, herói de O Império do Sol.

A Casa e o Mundo
Manuel S. Fonseca

Donde vem o cómico de Jacques Tati? Da pura observação e dos seus efeitos burlescos? Foi essa, pelo menos, a judiciosa verificação de François Truffaut. Deve ser verdade, portanto. E deve ainda ser mais verdade se lhe acrescentarmos o valor suplementar que o silêncio tem nos seus filmes. Ao excluir da sua esfera de observação os dramas humanos que são os amores, ódios e traições, o cinema de Tati concentrou-se nos gestos mecânicos da vida, em particular na utilização que, dia a dia, os seres humanos fazem do mundo que habitam.

A relação entre o homem e o seu «habitat» talvez seja o grande, se não o único tema, das comédias de Jacques Tati. É o que O Meu Tio confirma e Parade só aparentemente desmente, como poderão ver sentando-se em frente aos televisores, domingo e segunda, respectivamente, no Canal 2 e na RTP1. [Nota para leitores contemporâneos: É extraordinário pensar que nos sentávamos em frente ao televisor! Hoje, não só ninguém sabe o que é um televisor, como já são raros os seres humanos que ainda têm uma vaga ideia do que é alguém sentar-se.] 

O Meu Tio confirma. E porque confirma, aí está um filme em que os locais de acção — a casa futurista dos Arpel e a fábrica Plastac — são protagonistas dessa mesma acção. Aí está, também, um filme em que os acessórios (o peixe-repuxo no jardim, ou o equipamento ultramoderno da cozinha) são cúmplices activos da mecânica dos «gags», lembrando (acidentalmente?) esse prodigioso triunfo da técnica moderna que Buster Keaton cantara já, nos anos 20, em Electric House, e que culminava em magnífica e alucinante catástrofe.

Primeiro filme a cores de Tati, O Meu Tio é um hino (com um lirismo que Keaton nunca se autorizaria) à inaptidão do herói (Monsieur Hulot) para seguir os padrões da vida moderna, ou do que era a vida moderna em 1958, data da produção do filme. Naquele que é, sem dúvida, o seu filme com uma história mais clássica, Tati mostra as tentativas da família de Hulot para lhe arranjarem mulher e trabalho. É esse o pretexto do filme. Mas a forma como Tati desenvolve este esboço sinóptico atesta que o verdadeiro tema é a lenta aproximação e posterior familiarização de Monsieur Hulot com os dois «décors» centrais do filme, a casa e a fábrica.

Parade, último filme de Tati, datado de 1973, parece desmentir tudo isto, mas é só para melhor o confirmar. Sem estar a recorrer às condições externas de produção, que fazem deste filme um caso especial na sua carreira, nem é preciso lupa para se ver que há uma clara alteração de estilo: por uma vez os rostos — e os dramas humanos de que são espelho — dominam os insistentes grandes-planos (também pela primeira vez) do filme.

É um filme de circo e de «clowns». O palhaço, na sua forma convencional, vem contrariar a lógica do cómico anterior de Tati. E a personagem de Monsieur Loyal substitui Monsieur Hulot, o tradicional herói. Paralelamente ao regresso a formas mais convencionais de construção dos «gags» — Parade é um espectáculo com números cómicos desenvolvidos frente a uma plateia — Tati teve oportunidade de experimentar novas formas cinematográficas, com a utilização do vídeo. Conclusão lógica a extrair: a mudança de tecnologia mudou também a relação de Tati com mundo. A obra do cineasta dificilmente poderia ter conclusão mais adequada.

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