
O Marechal do Reich Hermann Goering gostava de ter Cristo na mão. E pergunto em sobressalto: o nazi beijaria com o insurrecto amor de Judas a face desse Cristo ou adormeceria como os sonolentos apóstolos depois de se deitar a seus pés?
Vejam, Cristo não estava sozinho. Acompanhava-o a mulher adúltera. Pintara-os, à mulher de muita paixão e a esse Cristo absolvente e redentor, o talvez católico Vermeer, pintor holandês do século XVII. E pede-me Vermeer que vos apresente um seu compatriota do século XX, Henricus van Meegeren.
Han, como toda a gente lhe chamava, enfrenta o tribunal dos Países Baixos no pós-guerra. Está o nazi Goering em Nuremberga a ser julgado por crimes contra a humanidade, e Han é preso, acusado de conluio com o odioso inimigo e de ter vendido a Goering o tesouro nacional, que seria esse “Cristo e a Adúltera”, do genial Vermeer. E se o anafado marechal alemão é sentenciado com a pena de morte, também Han, por traição à pátria, pode sofrer igual pena.
Han teve educação católica e viveu até em Delft como Vermeer. Contra vontade do pai, que o obrigava a escrever cem vezes frases exaltantes como “sou um inútil e nunca serei nada na vida”, Han queria pintar.
Têm Costa e Marcelo talento para política? Eu juraria que Han o tinha em igual medida e já o vemos começar a carreira de pintor, que a crítica do tempo, toda impressionista e cubista, parecida com a sonsa crítica literária portuguesa destes dias, logo obliterou. Ou, nas mais cruas palavras do próprio, cortaram-lhe as pernas. As pernas, porque as mãos conservou-as Han, ágeis, minuciosas.
No tribunal, Han entra como um velhaco colaboracionista. Dão-lhe a palavra. Ergue o perfil charmoso e fala. E vejam, o acusado que fala, quase sempre sussurra, meigo, e regressa ao passado. Han volta lá atrás, à ferida cruciante com que a crítica de arte modernista o retalhou. Evoca esse dia de trovões e relâmpagos em que jurou vingar-se: “Hei de fazer uma coisa como nunca se viu, que pasme o mundo!”
Com a humildade de quem sabe que vai, com a ignomínia, arrebatar a glória, diz ao tribunal: “Esta tela, “Cristo e a Adúltera” não a pintou Vermeer, pintei-a eu!” Levante a mão quem não sentiu o arrepio e o estremeção daquela sala! Mesmo que fosse por um momento, Jerónimo de Sousa teria deixado de pensar nos interesses e concupiscência do grande capital e André Ventura esqueceria os ciganos.
“Eu aldrabei o nazi Goering”, vai dizendo Han, as suas roupas começando a colorir-se com as tintas do heroísmo. E aldrabou. Aldrabou o monstro de Hitler e aldrabou o mundo inteiro. Forjou obras de Frans Hals, Pieter de Hooch, mas sobretudo de Vermeer: rivalizou com os génios de ouro da pintura holandesa.
Han confessa: a sua obra-prima é “A ceia em Emaús”, com que pôs Vermeer a rimar com Caravaggio. Pintou a tela e envelheceu-a com a resina fenólica que é a base da baquelite. Passou a tela, agora endurecida, por um cilindro, provocando-lhe gretas que a lavagem do quadro em negríssima tinta-da-china encheu. Por portas travessas essa tela chegou aos museus e ao olho de águia e faro de pastor alemão do maior especialista holandês de Vermeer. Em genuflexão, disse: “É a obra-prima do pintor de Delft.”
E o tribunal descobre que uma, duas, três, 50 telas dos maiores pintores holandeses são de Han. Vendeu-as, não todas, pelo que hoje seriam quase 30 milhões de euros.
O nazi Goering, consta, soube que fora alvo do vexatório e descarado ludíbrio. Entretenho-me com a ideia de que, também por isso, mais depressa se suicidou.
Publicado no Jornal de Negócios
Foi um expert na sua arte e que o coração atraiçoou. Não se pode ter tudo.
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Muito teve ele!
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Esta tela acho que não tem nada a ver com A Rendeira, A Leiteira, ou Rapariga com Brinco de Pérola; imitação grosseira de Vermeer; como puderam os críticos ser enganados com a chico espertice de um falsário!?
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Boa pergunta. E foram muitos e em vários museus. Talvez ao vivo a coisa tenha mais vivacidade do que na reprodução aqui.
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