Uma esquina com alma

A foto é minha, começava eu a deslargar-me da esquina adolescente, que eu conto e canto nesta crónica despudoradamente nostálgica. (Para o Simão Sanches.)

A esquina foi a alma da minha adolescência. A esquina perfeita era a esquina da rua Alberto Correia com a Fernando Pessoa, na Vila Alice, na cidade de Luanda. Em cada esquina uma vivenda, menos nessa esquina do terreno baldio do velho Amado: só ruínas, restos de paredes da casa tombada no combate da vida, o esqueleto e os pneus furados de uma velha camioneta steinbeckiana em que os nossos calções tropicais se escondiam para fumar ou fingir que já conduziam.

E vejam o que habitava e se via da esquina do baldio que fora do velho Amado, acusado e preso por abuso de inocentes catorzinhas: vias-se um pescador que poderia ter sido um boémio do “Tortilla Flat”, há anos a pintar de azul o seu barco, e via-se o velho Austin preto, talvez do anos 40, do Ulisses, barbeiro auxiliar do senhor Mário, catedrático de cabelos e barba, meu amigo e mentor, o primeiro, nesses distantes anos de salazarismo, a dar-me a ler um Avante em papel Bíblia e uma revistinha couché de fotografias de dinamarquesas, enfermeiras, digamos assim, de irrepreensível saúde.

A essa esquina presidia a majestosa mulembeira, foi o que me jurou o meu amigo Simão Sanches, quando eu lhe disse que era um imbondeiro. Dos seus ramos dependuravam-se dezenas de silenciosos morcegos durante o dia. Mal tombava a noite logo os morcegos se largavam, como se largava o bando de adolescentes que nós éramos.

Ah, e o muro. A esquina era o muro que cercava esse baldio. Vínhamos e sentávamo-nos nesse muro, dez um dia, quinze no outro, e tanto assombrávamos a noite com o nosso riso de hienas, como a enternecíamos com as histórias e os sonhos dos nossos mansos corações de pombas.

Todo o cruzamento era armadilhado. Trazíamos carrinhos de linha preta subtraídos às caixas de costura maternas. À altura do pescoço atávamos a linha preta dos postes da electricidade e sinais de transito às árvores dos quintais. Quem passasse era apanhado, na semiobscuridade da noite luandina, por um, dois ou três fios. Pelo pescoço. Riamos e fugíamos, perseguidos pelos mais velhos irritados. Ainda gritávamos “ó careca”, se fosse o caso.

Trabalhávamos o dia seguinte: tirávamos, com uma chave de fendas, os velhos tampões das jantes dos carros, púnhamos lá dentro meia dúzia de pedrinhas burgau e voltávamos a fechar. No dia seguinte, quando os donos dos velhos Simca ou caquéticos Volkswagen arrancassem, às sete da matina, nessa cidade que despertava tão cedo, ah meu Deus, até estrilavam, num concerto stockenhausiano, que parava o trânsito e interrompia matabichos.

Por vezes, honrando o subtil legado dos mais-velhos de 20 anos, de partida para a tropa, o Simão, Abílio, Norberto, Leopoldo (ou Leopildo como sussurrávamos nas suas costas), levantávamos um carro e púnhamos tijolos que sustentavam as rodas a um centímetro do chão. O mais-velho dono entrava no carro, na manhã seguinte, sem dar por nada e quando dava à ignição as rodas ficavam a zunir no ar – uatobo! –, sem tocar no chão e o muadiê todo buelo e raivoso.

Essa era a esquina. Perfeita. Moraram nela, o vozeirão do Beto que arrancava da cama as famílias para o ouvirem cantar “receba as flores que lhe dou”; a temível estalada do Meno, só uma, one-shot como o imitaria, depois, o De Niro do “Caçador”; a suavidade do Cesarito e do Nelinho, que acabariam a pilotar Migs; o filosófico Lando; o Zé Victor dos grandes malhanços; o Da Guia de guitarra à José Feliciano; o sereno Sá.

Pobre da adolescência que não teve uma esquina e um muro. O Fellini de “I Vitelonni” grita-me, do cemitério, o seu risonho acordo.

Feira do Livro, making of

Vou dizer-vos isto ao ouvido: façam as vossas listas! Vai ser uma Feira do Livro quase tão esplendorosa como a Vénus de Botticelli, quase tão intrigante como a Gioconda de Da Vinci.

Ponto de encontro: estes três pavilhões, A46, 48, 50. São os da Guerra e Paz. Para mim, que sou imparcialíssimo, os mais bonitos da feira. E isto é só o making of. Até 5.ª feira.

Vamos fazer grandes coisas juntos

A cativa de Picasso: Marie-Thérèse

Ela foi a cativa que Picasso manteve cativa. Mas deixem-me começar por ser exacto: naquele tempo não havia em Paris quem não conhecesse as Galerias Lafayette. Nem toda a gente, porém, conhecia Picasso. Era um dia de Inverno, o dia 8 de Janeiro de 1926, e Picasso viu, atrás das grandes janelas das famosas galerias, um rosto. Foi como se toda a Paris, num átimo, se eclipsasse: já só havia esse rosto de menina a pairar no ar, a encher o céu gelado, o crepúsculo a derreter-se sobre a cidade.

Picasso interpelou a muito jovem mulher, mal ela pôs a sola do sapato na rua: “Mademoiselle, tem uma cara tão invulgar. Deixe-me pintar a sua cara.” E disse quem era: “Sou Picasso.” Os 17 aninhos de Marie-Thérèse Walter ignoravam olimpicamente o que fosse ou quem fosse esse Picasso de 45 anos, taurino. Ele mostrou-lhe um livro japonês; na capa, a fotografia dele. E marcou encontro para as 11 horas, da 2.ª feira seguinte, na estação do metro de Saint-Lazare. A cara oval e luminosa de Marie-Thérèse acenou que sim e Picasso rematou: “Tenho a certeza de que vamos fazer grandes coisas juntos.”

Fizeram. E o que eu queria dizer, antecipando a colossal e silenciosa história de amor deles, é que muito mais tarde, quando se separaram, Marie-Thérèse lhe havia de escrever uma carta por dia até ao dia da morte de Picasso. Quem escreve, hoje, uma carta de amor por dia?

Quase nada sei de Marie-Thérèse. Sei só que Picasso lhe dedicou o que hoje seria um amor pedófilo. Picasso tinha já um filho, Pablo, e era casado com uma também bela bailarina ucraniana, Olga Khokhlova. O que Olga tinha de impulsivo e de ansioso, Marie-Thérèse tinha de doçura, passividade e submissão. Foram logo amantes, ela e Picasso, e mantiveram a luxúria e o desejo na incendiada prisão do amor deles, sem janelas nem portas para a rua. E o que eu quis dizer é que ninguém sabia desse amor que duraria até ao dia, sombrio, em que Marie-Thérèse descobriu a nova amante de Picasso.

Picasso pintou, retratou, esculpiu muitas mulheres. Nenhuma foi, na pintura dele, tão solar, de rosto e corpo tão luminosos, como a Marie-Thérèse que hoje podemos ver em telas tão célebres como O Sonho, ou O Retrato de Marie-Thérèse com Boina Vermelha. São célebres, valem fortunas, mas o que logo nos desatina, enerva e seduz é que neles, a pintura de Picasso se deixa impregnar por um desejo clássico de beleza, em que a deformação se ajoelha e reza aos pés de um doce lirismo.

E Marie-Thérèse engravidou. Foi em 1935, tinha ela 26 e ele 54 anos, o dia mais feliz da vida de Picasso. Quis divorciar-se da bailarina Olga, mãe do seu Pablo. Olga recusou o fustigante estatuto de divorciada: talvez revoltada com a forma perversa como, durante 9 anos, Picasso tivera Marie-Thérèse a viver em apartamentos quase ao lado ou em frente à casa do casal legítimo.

O obstinado ego de Picasso não desistiu. Divórcio impossível na Espanha franquista, conseguiu a separação e foi viver com Marie-Thérèse. Lenda ou não, pintava ele a Guernica, Marie-Thérèse descobre no estúdio a fotógrafa de vanguarda Dora Maar. Logo percebe as faíscas desse desejo que dilata os corpos. A submissa Marie-Thérèse, que confessou oferecer-se às mais escuras fantasias de Picasso, recusou o triângulo. Separaram-se. Marie-Thérèse teve sempre ao seu lado, como se guardasse as relíquias de um mártir, os cabelos de Picasso, as unhas que lhe tinha cortado, e escreveu-lhe uma carta, dia após dia, ao longo de 30 anos. Picasso morreu. Quatro anos depois, inconsolável, Marie-Thérèse suicidou-se.

Publicado no Jornal de Negócios, Weekend

O Vidente de Étampes

Aleluia. Este romance merecia. Está em 4.º lugar no top de Ficção do El Corte Inglês. É um romance que merece ser lido. Chama-se “O Vidente de Étampes”. Autor: Abel Quentin. Ganhou já meia-dúzia de prémios em França. Mas o que quero é que ganhe um “prémio no coração dos leitores portugueses”.

E desculpem se eu hoje me deu para o foleiro sentimental, mas para que este romance seja lido, direi o que for preciso. É elegante, é divertido, é polémico. O começo da história: um escritor assina um ensaio sobre um poeta negro americano que morre prematuramente em França. O escritor é um cinquentão, progressista, anti-racista, mas as fatais redes-sociais activistas caem-lhe em cima com delírios de apropriação cultural. Enfim, as loucuras que por aí campeiam.

Abel Quentin faz desse parti-pris o gancho para criar emoção, literatura, personagens e intriga.

Façam o favor de ir comprar: vão ver que ficam de consciência cultural mais tranquila e que, por pouquinho dinheiro, vão ter uma alegria tremenda e sem preço.

ps – e se ainda não o têm, levem também O Longo Braço do Passado, de Rui De Azevedo Teixeira. Merece ser o romance português de 2022.

O apocalipse em família

Esta é uma crónica familiar que devo à bravura ímpar da minha primeira sobrinha e à inocência, impar também, da minha segunda sobrinha.

Sim, pode. Pode morar-se no Apocalipse, digo eu que já lá morei. Havia quatro anjos a segurar os quatro ventos da Terra, para que nem uma brisa perturbasse os cavaleiros da peste, e dos pés dos anjos saíam colunas de lume e as suas bocas exalavam fogo, fumo e enxofre. E talvez eu, na minha boa-fé, estivesse confundido, talvez fossem só os Migs céleres a segurar os quatro ventos de Angola, a pequena boca de fogo do singelo monacaxito e as estrondosas crateras de enxofre e fumo dos órgãos de Estaline.

Mas essas são as minhas memórias da guerra civil de Angola, problema que eu ainda estou e morrerei com ele. Quem também lá esteve foi a minha primeira sobrinha, filha da minha irmã. Teria então três anos, se tanto, e sabia lançar-se ao solo como um comando, quando as Akás começavam a tricotar e a cantar o Kalinka, Kalinka. Oyé, mangolé.

Quando, sobrevivente a obuses e morteiros, a G3 e Kalashes, a minha primeira sobrinha retornou, blusinhas leves tropicais, todas seda e terylene, espantava as feiras, os andores dos santos e as romarias lusíadas ao lançar-se ao solo, em impecável estilo, logo que começavam a crepitar foguetes. Era o comando mais bonito que Portugal conheceu.

E falo agora da minha segunda sobrinha, filha dos meus cunhados por parte da Antónia, minha mulher, a que meio Bairro Azul insiste em chamar “menina Antónia”, o que me deixa, atendendo à minha já branca e provecta barba, na desconfortável posição de suspeito de inconfessável e tirânico rapto e abuso.

Ora não era da menina Antónia, mas sim da minha segunda sobrinha que eu queria falar, para dizer que nunca esta sobrinha, ao contrário da primeira, tinha roçado o seu pequenino ombro, nem mesmo em forma inadvertida, pelo apocalipse.

Vinha ela, seis aninhos, mão na mão com a mamã, quando, no hall de entrada mesmo ao lado dos elevadores, se lhes dirigem duas simpáticas senhoras, com aquela simpatia de ventre amargo que recusa provar o mel. Traziam na mão uns sub-reptícios folhetos e logo ali, na placidez interclassista de Benfica, lhes dizem “bom dia”, e sem parar garantem “que vem aí o Apocalipse”. E explicam, com uma brevidade que João de Patmos não se autorizou, o que é o apocalipse, esse fim do mundo em que Deus Vosso Senhor corta a direito, com fogos do inferno à mistura. “Estamos aqui para vos alertar e salvar”, juram.

Tremem as perninhas de bailarina da minha sobrinha? Não, não, nem pensar, como agora diz o meu primeiro neto. Os olhos na mãe, a minha segunda sobrinha observa cada reacção e o que vê? Uma mãe serena, impávida. Uma mãe que não morde, nem sopra. E julgo que escapou aos seis aninhos da minha sobrinha o leve trejeito irónico que aflorou os lábios dessa mãe que desmedidamente a enche todos os dias e todas as noites de beijos.

E as duas velhas senhoras, de trombetas na boca, continuam a encher de música tonitruante o átrio, mesmo ao lado dos dois elevadores: “Vem aí o apocalipse. É o fim do mundo: amanhã, se não for já hoje. Está um fim do mundo a levantar-se das campas do cemitério aqui ao lado. E nós estamos aqui para vos avisar e para vos salvar!”

Serpentes, bestas e chifres insinuam-se por Benfica, mas a minha cunhada, com recato, escapa a tudo e entra no elevador já só com a minha sobrinha pela mão, talvez um folheto na outra. A serenidade da mãe comunicou-se à filha. E, num módico de exemplar reflexão, a menininha vira-se para a mãe e diz-lhe: “Já viste, mãe, tanta gente no mundo, e estas senhoras escolheram-nos a nós para nos salvar. A sorte que nós tivemos, mãe!”

Os chorizos de Melanie

Cancelados, os aviões deixaram de alimentar de sonhos os olhos dos meninos que esquadrinhavam os céus à procura do messiânico futuro e de outros mundos longínquos. Os aeroportos são hoje uma paisagem crispada, atafulhada, tensa, de multidões furiosas: canceladas e furiosas. Eu quero pedir desculpa ao avião e ao aeroporto do meu tempo. E evoco, desse tempo, oito coi­sas singelas:

  1. Quando eu era um monan­den­gue, cal­ções pobres e sonhos de luxo, e isso foi em Angola, tinha dias em que ia para a varanda do aero­porto de Luanda ver os aviões levan­tar vôo. O baru­lho ator­do­ava e a gaso­lina chei­rava a vitória.
  2. Que­ria ter asas e voar, mas aprendi: não é Ícaro quem quer e não é qualquer um que é Jardel para voar sobre os centrais.
  3. Já ves­tia um fati­nho executivo, o pes­coço aper­tado por uma gra­vata e a cabeça ata­fu­lhada de excel e logís­tica, quando, na SIC, apoiá­mos um docu­men­tá­rio em que dois monan­den­gues moçam­bi­ca­nos, i­guai­zi­nhos (ou desiguaizinhos?) ao meu “mim” do aeroporto de Luanda, pas­sa­vam os dias no aero­porto de Maputo a ver aviões levan­tar e ater­rar. Um deles expli­cou ao outro como é que era voar de avião: “Quando o avião sobe no ar, as pes­soas des­maiam lá den­tro, então! Via­jam já des­mai­a­das e acor­dam quando o avião aterra.”
  4. A pri­meira vez que via­jei de avião – ou des­maiei, então – foi num Fri­endship da velha DTA, de Luanda ao Lubango. Des­maiei, sim: íamos no meio das nuvens de algo­dão doce, a terra era um cho­co­late cá em baixo, rios de cho­co­late líquido, uma fenda cha­mada Tun­da­vala, aberta pela colher de um menino na quen­tís­sima mousse angolana.
  5. Lembro-me, lembro-me. Foi a primeira vez que sobrevoei a outra África. A janela de um Boeing, onde eu por acaso ia, cho­rou uma lágrima a ver o nas­cer do sol sobre o Sahara. O dedo do avião lim­pou a gota que caía, com ver­go­nha que o céu visse.
  6. Já era outro Boeing. Da British Airways, de Londres para Los Angeles. Estava lá em baixo o quase Pólo Norte, a doer de branco, a tiri­tar de frio e, em aque­ci­mento glo­bal, ia ali, deitada a uma cadeira de mim, a Mela­nie Grif­fith, loura, num sos­sego e sono que um Blo­ody Mary embalara. Quando chegámos, os cães detectives snifaram-lhe coisas na mala. Os fiscais puxaram os cães para trás: “É a Melanie Griifth, disseram”, cheios de respeito e distância. E eu tenho a certeza de que – vinha ela de Espanha, de casa do Banderas – na mala eram só chorizos e manchegos, mimos e amuse-bouche andaluzes.
  7. Foi em 1967, julgo. O adolescente que eu era estava na pista do aeroporto de Luanda – nesse tempo ainda se podia ir à pista – e o avião de Lisboa trazia o Benfica. Na noite tro­pi­cal de Luanda, um bruto capa­cete de humi­dade em cima, des­cendo a escada do avião, emer­giram os astros: pri­meiro o senhor Otto Gló­ria, depois o senhor Coluna, o senhor José Augusto e, logo, os miú­dos Eusé­bio e Simões. E eu na pista, a ter agora a cer­teza de que, se há estre­las no céu, podem sem­pre des­cer à terra. O que não sabia é que as estrelas cheiravam. Antes de aterrarem, tinham ido todos perfumar-se. O aeroporto de Luanda rescendia a Guerlain, Aramis, Opium e Azzaro. Cheirava bem, cheirava a Benfica.
  8. Foi um estalo. O estalo do mundo a partir-se. Lembro-me desse dia, de 1975, desse começo de tarde, em Luanda, quando um Mig, sou capaz de jurar que mesmo por cima da Vila Alice, rom­peu a bar­reira do som. Um estalo super­só­nico e, uau, os ouvi­dos rotos de infi­nito. Como se andassem bisontes no ar, foi o estam­pido do céu e toda a gente a gri­tar em terra: “A vitó­ria é certa!”