
Ela foi a cativa que Picasso manteve cativa. Mas deixem-me começar por ser exacto: naquele tempo não havia em Paris quem não conhecesse as Galerias Lafayette. Nem toda a gente, porém, conhecia Picasso. Era um dia de Inverno, o dia 8 de Janeiro de 1926, e Picasso viu, atrás das grandes janelas das famosas galerias, um rosto. Foi como se toda a Paris, num átimo, se eclipsasse: já só havia esse rosto de menina a pairar no ar, a encher o céu gelado, o crepúsculo a derreter-se sobre a cidade.
Picasso interpelou a muito jovem mulher, mal ela pôs a sola do sapato na rua: “Mademoiselle, tem uma cara tão invulgar. Deixe-me pintar a sua cara.” E disse quem era: “Sou Picasso.” Os 17 aninhos de Marie-Thérèse Walter ignoravam olimpicamente o que fosse ou quem fosse esse Picasso de 45 anos, taurino. Ele mostrou-lhe um livro japonês; na capa, a fotografia dele. E marcou encontro para as 11 horas, da 2.ª feira seguinte, na estação do metro de Saint-Lazare. A cara oval e luminosa de Marie-Thérèse acenou que sim e Picasso rematou: “Tenho a certeza de que vamos fazer grandes coisas juntos.”
Fizeram. E o que eu queria dizer, antecipando a colossal e silenciosa história de amor deles, é que muito mais tarde, quando se separaram, Marie-Thérèse lhe havia de escrever uma carta por dia até ao dia da morte de Picasso. Quem escreve, hoje, uma carta de amor por dia?
Quase nada sei de Marie-Thérèse. Sei só que Picasso lhe dedicou o que hoje seria um amor pedófilo. Picasso tinha já um filho, Pablo, e era casado com uma também bela bailarina ucraniana, Olga Khokhlova. O que Olga tinha de impulsivo e de ansioso, Marie-Thérèse tinha de doçura, passividade e submissão. Foram logo amantes, ela e Picasso, e mantiveram a luxúria e o desejo na incendiada prisão do amor deles, sem janelas nem portas para a rua. E o que eu quis dizer é que ninguém sabia desse amor que duraria até ao dia, sombrio, em que Marie-Thérèse descobriu a nova amante de Picasso.
Picasso pintou, retratou, esculpiu muitas mulheres. Nenhuma foi, na pintura dele, tão solar, de rosto e corpo tão luminosos, como a Marie-Thérèse que hoje podemos ver em telas tão célebres como O Sonho, ou O Retrato de Marie-Thérèse com Boina Vermelha. São célebres, valem fortunas, mas o que logo nos desatina, enerva e seduz é que neles, a pintura de Picasso se deixa impregnar por um desejo clássico de beleza, em que a deformação se ajoelha e reza aos pés de um doce lirismo.
E Marie-Thérèse engravidou. Foi em 1935, tinha ela 26 e ele 54 anos, o dia mais feliz da vida de Picasso. Quis divorciar-se da bailarina Olga, mãe do seu Pablo. Olga recusou o fustigante estatuto de divorciada: talvez revoltada com a forma perversa como, durante 9 anos, Picasso tivera Marie-Thérèse a viver em apartamentos quase ao lado ou em frente à casa do casal legítimo.
O obstinado ego de Picasso não desistiu. Divórcio impossível na Espanha franquista, conseguiu a separação e foi viver com Marie-Thérèse. Lenda ou não, pintava ele a Guernica, Marie-Thérèse descobre no estúdio a fotógrafa de vanguarda Dora Maar. Logo percebe as faíscas desse desejo que dilata os corpos. A submissa Marie-Thérèse, que confessou oferecer-se às mais escuras fantasias de Picasso, recusou o triângulo. Separaram-se. Marie-Thérèse teve sempre ao seu lado, como se guardasse as relíquias de um mártir, os cabelos de Picasso, as unhas que lhe tinha cortado, e escreveu-lhe uma carta, dia após dia, ao longo de 30 anos. Picasso morreu. Quatro anos depois, inconsolável, Marie-Thérèse suicidou-se.
Publicado no Jornal de Negócios, Weekend
Presume-se que, na essência, foi uma história de amor. Mas guardar unhas e cabelos é um bocadinho pernicioso, mais me agradaria a carta diária. Penso se Picasso alguma vez respondeu, ou se as missivas que recebia sem cessar eram apenas material de leitura, um hábito como tantos.
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Ora aí está uma boa pergunta, para crónica sua. Mas eu aprecio relíquias: veja-se o coração de D. Pedro 🙂
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