
Não tenham vergonha, entrem, por favor, na casa de banho. Bem sei que a bela actriz Tallulah Bankhead está sentada na sanita e, na porta aberta, se recorta o perfil do escritor Tennessee Williams. Não tenham vergonha, que Tallulah também não tem. Nenhuma. O que ela não gosta é de interromper conversas. E gosta de ter ali, a ouvi-la, o grande dramaturgo, enquanto cumpre sem reservas as mais humildes ou esforçadas necessidades fisiológicas, sejam elas sólidas, líquidas ou intermédias.
Só há, escreveu Williams nas suas “Memoirs”, outra mulher assim, a actriz italiana Anna Magnani, que levanta as saias, pernas longas bem à vista, mulher sem falso pudor. Tennessee diz que ambas tinham uma franqueza inabalável, inadjectivável combinação de galanteria e recusa de farisaicas convenções sociais. E agora que todos cheirámos o que Tennessee cheirou, acrescento que ele considerava a escandalosa Tallulah um dos raros gentlemen dos seus tempos de teatro americano.
Williams fez uma lista de gentlemen – aves raras num ninho de víboras, dizia ele –, e lá estava o nome do encenador e cineasta Elia Kazan. Juntou uma mulher, não porque Tallulah fosse masculina, apesar da rouca voz, mas por ver nela uma presença poderosa, que não a impedia de derramar charme e beleza.
Pois bem, os “dois gentlemen”, Kazan e Tallulah, cruzaram-se, como encenador e actriz, na peça de Thornton Wilder, A Pele dos Nossos Dentes. Se tivesse corrido bem não teríamos esta conversa, que aliás interrompo para duas digressões de baixo nível. Nossa Senhora do mundo gay de Nova Iorque dos anos 40 e 50, perguntaram à nossa Bankhead se o actor Tab Hunter era um desses gays. Ao contrário de ex-secretárias de Estado e CEOs nas comissões de inquérito da Assembleia da República, Tallulah foi peremptória: “Como querem que eu saiba? Nunca fodi com ele.” E a Walter Wanger, produtor maravilhoso, self-made man que amava o cinema de grandes emoções, Tallulah deixou-lhe, no funeral, como epitáfio o perfume desta frase: “Tinha um belo pénis, não sabia era servir-se dele”, pedindo eu desculpa pelo meu pudor pusilânime, porque o termo que a Talloh usou, juro-vos, não foi “pénis”.
A Talloh era desbocada e mostrou os dentes a Kazan, então ainda em começo de carreira, e que parecia preferir o casal Frederic e Florence March, que contracenavam com ela. A poderosa Talloh quis despedi-lo. Ouçam, Kazan e o produtor vieram à mansão dela e a actriz grita: “Não sabes dirigir uma star. Vens lá do Group Theatre e achas que os actores são todos iguais. No palco, pões aqueles actores decadentes, crianças e animais a passar à minha frente. Os espectadores vêm ver-me a mim. Como me hão de ver, com toda a gente a tapar-me?” E deixou-se cair, em morte súbita, no fofo chão da sala: a angústia era a sua adrenalina. Tiveram de a levar em braços para o sumptuoso leito. Gritaram, insultaram-se, deixaram de se falar, mas a peça foi um êxito, com a legião de fãs de Tallulah em delírio. Ah, a crítica incensou também a novidade e beleza da encenação de Kazan. E, todavia, não se falavam.
Estava Kazan, numa das noites seguintes, na suite do hotel e bateram à porta com vigor e vontade. Era a Tallulah, que entrou num ímpeto arrebatado. Deixou cair a saia e nada tinha por baixo, arrancou a camisola – oh, os belos seios – e ia atirar-se para a cama, quando lá viu uma actriz secundária. Tinha-lhe passado à frente. Ferida no seu narcisismo, nem mesmo o humor inteligentíssimo que era o seu, resistiu à afronta: voltou a vestir-se e deslargou-se louca de raiva. Fariam mais tarde as pazes.