
Não sei se comece por Jack Kerouac, se por Hemingway. Tanto faz? Bom, bom… Eis o que ninguém deve arriscar dizer a dois escritores. Não há pares de escritores “tanto faz”, mesmo se estes dois comungavam de um descabelado gosto de aventura.
Kerouac tinha gosto em andar no arame, ali a namorar com a delinquência e a subversão. Podia ter sido um rapaz do meu bairro de Luanda, a mítica Vila Alice. Podemos vê-lo de braço dado com Ginsberg, o poeta do uivo, com Burroughs, esse visionário escritor que matou a mulher com um tiro na cabeça. Mas se o queremos ver é na estrada, com o amigo Neal Cassady. Vejam, aí vão eles de carro, com a mulher de Neal, que não tem mais de 16 anos, em travessias místicas da América, por esse Mississipi de mistério e ocultação, por um México de serpentes emplumadas. Têm, Neal e Jack, os corpos colados ao assento do carro, as mãos a segurar um volante, centauros, os novos centauros do pós-guerra.
Dessas aventuras loucas, prefácio da vida hippie, Kerouac vai sacar o “On The Road”, que escreve num rolo de papel de 36 metros. E eis o que me liga intimamente a Kerouac: ele não sabia guiar.
Durante três anos, de 1974 a 1976, no meio da incendiada convulsão da transição, independência e guerra civil de Angola, na Honda 300 do Da Guia, na Yamaha do Rui, motos dos meus avilos desse tempo, fiz travessias profundas de Luanda, pelo Dondo, Quibala, Alto Hama, ao Huambo. Depois, no boca de sapo do Nelinho Ramos, passando por todas as patrulhas, por cubanos espantados, fomos até ao Bié. E num Dois Cavalos a desfazer-se fiz o Cuanza Sul, Sumbe, Benguela, Lobito. O melhor pendura que qualquer motard já teve, o melhor e mais tagarela navegador que um piloto pode esperar, eu cruzei, descruzei, cerzi e flambeei o território de Angola, as pontes periclitantes, as estradas com buracos de obuses ou cortadas por uma cheia, sem saber guiar, como Kerouac, ainda mais novo do que ele. Não escreverei um “Pela Estrada Fora”: poupo-vos aos pormenores desses tonítruos três anos de trilhos e maus caminhos.
E agora vou tentar roçar um ombro pelo ombro de Hemingway. Durante a II Guerra, do Verão de 1942 ao fim de 1943, Hemingway, respondendo ao apelo do governo americano, metia-se no seu barco de pesca, a Pilar, com os seus três filhos, e ia vigiar as águas do Golfo, entre a América e Cuba. Queria surpreender submarinos alemães. Se visse um, atraia-o e, quando abrissem a escotilha, enfiaria por ali abaixo as granadas que trazia.
Hemingway não ia sozinho, levava os seus três filhos, uma ou duas metralhadoras Thompson, espécie de David pronto a enfrentar os Golias de aço e torpedos que eram os submarinos de Hitler. E ouçam o que diz Hemingway: “Fui muito feliz com as mulheres. Uma insuportável felicidade, como se estivesse doido ou bêbado. Mas nunca fui tão feliz como quando estava junto e em harmonia com os meus filhos.”
Conheci essa harmonia que só o mar e a noite oferecem. No Lobito, semanas antes da independência, em Outubro, deram-nos para a mão um navio oceanográfico. A nossa missão pouco tinha de científico: íamos vigiar o grande Atlântico para prevenir uma invasão do que então víamos como os nazis sul-africanos do apartheid.
Éramos quanto? Cinco? Subi ao mais alto mastro, ou seja, fui à cesta a que os marinheiros das Descobertas chamavam o “caralho”. O que faríamos se víssemos os odiados carcamanos? Tínhamos metralhadoras, meia dúzia de granadas, uma grandiosa inexperiência. Mas tínhamos, sobretudo, escuridão e silêncio, a infinita harmonia que a confiança da amizade sustenta.
Publicado no Jornal de Negócios, no Weekend