
Estava com fome de paradoxo e música. Que é como quem diz: tinha vontade de ouvir o desassombro de Tom Zé. Ora, ninguém ouve Tom Zé sozinho. Peço-vos o favor de cantarem alto o refrão: o amor é velho, velho, velho, velho e menina.
A Página Negra de Manuel S. Fonseca
Blog de escrita e de reflexão lúdicas. Um lema: chatices não!
Estava com fome de paradoxo e música. Que é como quem diz: tinha vontade de ouvir o desassombro de Tom Zé. Ora, ninguém ouve Tom Zé sozinho. Peço-vos o favor de cantarem alto o refrão: o amor é velho, velho, velho, velho e menina.
Publicado ontem no Jornal de Negócios, trago já hoje, para esta sala, este artigo. Por norma faço a publicação uma semana depois. Mas, pelas razões óbvias, estou certo de que o meu Jornal de Negócios compreenderá
Para Carlos do Carmo,
escrito na manhã de 1 de Janeiro de 2021
Estremeci, assombrado, esta manhã ao ler os jornais. Como num sonho labiríntico, borgesiano, daqueles de que tu gostarias, fui percebendo o infundado da notícia. A tua morte, Carlos! Que exagero, que estranha ficção: não morre assim nem uma andorinha.
Como se tu pudesses morrer. Ainda na 2.ª feira – ou foi no sábado? – me ligavas, a querer saber em que trapalhada e susto covidianos eu me tinha deixado meter e a pores-me na linha. Ao telefone, com aquela probidade de quem trabalha um fado, revimos os dias em que a Antónia, menina e moça, e eu, dois “putos”, com a idade média de 21 anos (beneficiando eu largamente do facto de a Antónia mal ter saído dos juniores), vos entrávamos, à Judite e a ti, pela casa dentro, na Costa da Caparica, para nos deliciarmos com um lanche gourmet ou um opíparo jantar, com o espectáculo dos teus filhos a esticarem-se nos triciclos, como quem pedala já para a vida, com as góticas conversas do professor comum de filosofia, o José Gabriel, que a Judite e eu partilhávamos, com o vendaval tenso, às vezes tão bonito, que era e sempre será a actriz Manuela de Freitas, com a placidez irónica do Zé Mário Branco.
Eu e a Antónia fôramos, sem apelo e muito menos agravo, adoptados a essa vasta família, a essa perigosa frente comum de esquerda, com sede na Costa da Caparica ou no 10º andar da mais americana das nossas avenidas: a minha vermelha Antónia e – o que te fazia sorrir! – eu, obstinado anticomunista, com o jornal “A Bola” bem aberto, para que fosse clamorosa e se desenhasse a minha transcendente e contrária densidade ontológica – oh yé!
Tenho a tua voz, linda, sedutora comó caraças, aqui no ouvido. Foi como se tivesses acabado de falar comigo agora mesmo, e essa voz está viva, límpida como a luz lavada de Outono. É a voz mais bonita de Portugal. E que exasperante é não ter eu forma de dizer o bem – todo o bem – que essa voz reúne, as modulações, essa honesta subida a céus e nuvens, que logo se torna estético incêndio de corações… Cada palavra, cada frase que eu amanhe, é incipiente para louvar o que, como Brel ou Sinatra – para só falar dos maiores – tu pões em eternidade, na dicção, na melodia, em doçura ou numa breve nota de amargura.
O que eu quero dizer, Carlos, é que nós, dois homens na cidade, combinámos encontrar-nos: outro lanche gourmet? Ou um jantar mais tardio que estes nossos jovens anos ainda autorizam? Combinámos encontrar-nos e querias falar-me das minhas crónicas (ia dizer croniquetas, mas tu logo te zangarias, exigindo-me seriedade e compostura) e eu queria que me falasses da Sophia Loren e de como, dizem-me, ela, com uma exuberância romana, que nada, à frente ou atrás, desmentia, ficou laboriosamente derretida contigo. E de como logo conheceu a Judite e percebeu que outra coisa podia ela fazer que não fosse encantar-se, se a moreníssima Judite, a mais bela das mulheres, era já o desenho do encantamento. Vais ter de me explicar porque nunca me contaste esta história.
Contou-me o Manolo Bello, esse mítico monumento galego que deambula por Lisboa, que andavas, há uns meses, a reivindicar à entrada no céu. Tinhas, dizias, direito a ir ouvir o Brel, Sinatra, Bécaud e Aznavour. Mais, tinhas direito, de tanto os amares, a ir ouvi-los à borla. Eis o que explica esta tua viagem. Um Deus de bom gosto chamou-te: quer ouvir-te cantar à borla Lisboa, Menina e Moça. Vai, não me faltes ao jantar: a ouvir-te, também eu, cada um de nós, se transforma num deus.
A Cinemateca Portuguesa, essa gema das instituições culturais nacionais, pode e deve ser reclamada pelo PSD, primeiro, e pela direita de governo, depois. (Eis o que é uma pura e dura opinião minha, que a mais ninguém obriga!)
Sem Vasco Pulido Valente, que foi Secretário de Estado da Cultura do governo AD, será que teria havido a clarividência necessária para transformar numa dinâmica estrutura, com futuro, o núcleo que, no velho regime, com persistência, o médico Félix Ribeiro, homem admirável, criara? E alguém, a não ser ele, chamaria para a dirigir João Bénard da Costa, inequívoco socialista? E sei bem, por um jantar no Gambrinus, a expensas deste vosso pobrete e alegrete escriba, da relação de funda amizade e comunhão intelectual que ligava o João ao Vasco.
Mas houve mais. Houve Lucas Pires e veio depois Santana Lopes. A graça é que deram ou reforçaram a autonomia da instituição, mostrando ter uma visão não autoritária da relação do poder com a cultura. E, nestes tempos mais recentes, Jorge Barreto Xavier, no governo de Passos Coelho, foi um exemplar herdeiro dessa tradição.
Tudo isto para vos trazer mais um “recuerdo” fotográfico, que me merece o seguinte comentário: porque raio é que eu sou sempre o tipo mais mal vestido? É inescapável o cosmopolitismo de Santana Lopes. tenho algumas dúvidas quanto à gravata do João Bénard. Mas a heterodoxia da minha gravata, calça e casaco, é que nem Eduardo Lourenço a justificaria.
Mussolini, no escuro do seu cinema, gostava de pôr os olhos na irreprovável nudez de Hedy Lamarr, vendo “Êxtase”, filme mudo checo de que tinha cópia privada. Mas o seu modelo de indústria era americano. Admirava os grandes estúdios e manteve romance epistolar com a bela e fútil Anita Page, que teria sido a namorada do mundo se Greta Garbo e Joan Crawford não lhe tivessem sufocado a carreira.
Mussolini taxava patrioticamente os filmes americanos, mas não se importava e até queria que, a duas liras cada bilhete, os italianos sonhassem ser Gary Cooper e se rissem com Chaplin. Replicou a organização dos estúdios americanos na Cinecittà.
O amor de Mussolini era retribuído. Os patrões de Hollywood abominavam o anti-semitismo de Adolf Hitler, mas Mussolini chegava-lhes quase asséptico. Entenderam-se e fizeram acordos. Numa linha first we take Berlin, then we take Manhattan, Mussolini, após campeoníssima visita a Berlim, mandou o filho, Vittorio, a Nova Iorque, festejar o 21º aniversário. Recebeu-o, Setembro 1937, o produtor Hal Roach e assinaram um acordo de distribuição e produção. Roach era a frente visível, mas a MGM, de Louis B. Mayer, estava, cláusula a cláusula, de acordo com tudo.
Esqueceram-se dos actores. O jovem Mussolini, em Hollywood, roçou-se, festivo, por Walt Disney, o censor Will Hays, o vil W.R. Hearst que Welles imortalizaria em “Citizen Kane” e um só actor, o inefável Gary Cooper. Mas James Cagney, Fredric March e Louise Rainer, que dirigiam o sindicato, engajaram (ó se engajaram) todos os outros actores e já se sabe que quando uma coisa engaja é o diabo. A cada aparição de Mussolini nas newsreels dos cinemas, os los angelinos apupavam; houve manifs à porta dos estúdios; a revista Variety trazia, página inteira, frases do jovem Mussolini vangloriando-se de bombardear os indefesos etíopes, na invasão italiana; rádio e jornais lembravam que o irmão de Vittorio estava, nesse momento, ao lado de Franco a fazer o mesmo, bombardeando os republicanos espanhóis.
Vittorio bateu em retirada e Mayer pôs a política à frente da economia: denunciou o acordo. Em Roma, Vittorio largou a amarga réplica final: “Hollywood está mais cheio de judeus do que Telavive. O dinheiro que ganham com os filmes em Itália, dão-no aos vermelhos em Espanha.” Finito o romance facho-hollywoodiano.
Esta é a minha araucária. É minha, por ser a araucária que vem, todos os dias, assomar-se à minha janela e espreitar para dentro de casa. Gosta de ver se estou de chinelos ou descalço, se trago dois pares de peúgas nos dias mais frios. Olha-me com uma ponta de ironia e duas simétricas pontas de ternura. Tudo lhe devolvo em admiração e algum amor: minha querida conífera.
A utopia tem um imerecidíssimo bom nome. O que, debaixo desse chapéu se fez de hediondo, o que sob a sua sombra se gerou de miséria, atraso, obscurantismo e morte, devia fazer-nos pensar cinco vezes. Mas é o que é: às vezes mais vale cair em graça do que ser engraçado. Veja-se a história de Trotsky: foi quem foi! Passa por ser um pensador.
Foi um heterónimo que espetou a picareta de alpinista na cabeça de Trotsky. Hoje sabemos, mas não se soube durante décadas, que a mão que desferiu o golpe hediondo foi a do catalão Ramon Mercader del Rio. Ao condená-lo, a polícia e os tribunais mexicanos condenaram, primeiro o canadiano Frank Jacson e, a seguir, o belga Jacques Monard.
Que Jacson e Monard fossem o assassino contratado Ramon Mercader, não o soube a polícia, nem o sabia Sylvia Ageloff, a mulher que o amava mais perdidamente do que Ofélia amou Fernando Pessoa a quem, apaixonado pela heteronímia, não se lhe conhece, todavia, inclinação por picadores de gelo ou fidelidades estalinistas.
Fora a mãe, Maria Caridad del Rio, combatente roja na Guerra Civil e amante de um agente do NKVD, a PIDE à séria de Estaline, que recrutara o já militante filho para a gloriosa missão de varrer Trotsky para debaixo do tapete da eternidade. Estaline, a gozar a amenidade que foi o seu pacto com Hitler, pôs em acção três planos distintos para o liquidar.
A 24 de Maio, David Siqueiros, pintor e farol de um mexicanizado realismo estalinista, atacou à metralhadora, com outros sequazes, a casa de Trotsky. Foram encontrados mais de 200 projecteis, mas os tiros de Siqueiros apenas atingiram o pé do neto de 14 anos de Trotsky. Há, claro, sempre um americano que se lixa: Robert Hare, um assistente e guarda costas, foi raptado e assassinado pelo bando de Siqueiros.
A inocência e carência amorosa de outra americana, a nova-iorquina Sylvia Ageloff, abriu as portas ao segundo plano. Era irmã de uma secretária de Trotsky e Mercader lançou-lhe o isco nesse mar de convulsa sensualidade que era Paris em 1939. A terna boca de Sylvia engoliu isco e anzol. Apaixonou-se pelo belga Jacques Monard, heterónimo que Mercader adoptou, falando o francês irrepreensível que a infância parisiense lhe autorizava.
Partilharam tudo, o melancólico sabor da pele, lençóis e uma comum e insuspeita devoção por Trotsky, tão convicta como a dos pastorinhos pela Senhora da azinheira. Sylvia regressou a Nova Iorque. Monard, com a mesma alacre paixão que qualquer ministro tem pela TAP, foi ter com ela. Já tinha uma segunda identidade, o falso passaporte que a PIDE, ai perdão, a NKVD, lhe arranjara. Era agora, um empresário canadiano, Frank Jacson, e era-o, explicou, para mergulhar na clandestinidade que lhe permitia fugir à tropa na Bélgica reaccionária.
Precisa agora, diz ele, de ir à Cidade do México. Como não suporta a ausência de Sylvia, pede que ela o acompanhe. Perfeito: Sylvia quer matar saudades da irmã e ajoelhar-se aos pés de São Trotsky. Recebidos como Romeu e Julieta, têm acesso à casa, ao convívio com os guarda costas americanos. À décima visita, Frank traz um texto revolucionário que quer propor a Trotsky. Estão sós, o velho e míope revolucionário a ler a prosa. Frank tira da gabardina e enfia a picareta no parietal direito de Trotsky, sete centímetros dentro do cérebro. O inumano berro de Trotsky fez acorrer os guarda costas, “Não o matem, tem de contar a história”, ainda disse Trotsky, que morreu um dia depois. Morte afectiva teve a inocente Sylvia, acusada de cumplicidade, e traída pelo que acreditava ser o amor da sua vida.
Se o pintor e pistoleiro David Siqueiros recebeu da URSS o prémio Lenine para a Paz, vinte anos depois, cumprida a pena, Mercader receberia outra nobre condecoração, a de Herói da União Soviética. Diz-se que morreu, dizendo: “Ouço-o sempre. Ouço o grito dele. E sei que ele está à minha espera do lado de lá.”
Esta é daquelas visitas que a Cinemateca roubou a Tróia. Em tempos em que a cinefilia cobria a Terra de leite e mel, houve um festival de cinema em Tróia. Era um festival ocioso, pequenino, cozy e capaz de gerar as mais lendárias amizades. Um dia – quem sabe se não amanhã -, trago uma fotografia! A esses festivais vinha sempre “a vedeta”, Ora, como todos sabem só há no cinema uma vedeta, a vedeta americana. E a vedeta vinha – quase sempre – depois, à Cinemateca.
Neste ano, que eu já não sei qual tenha sido, a vedeta foi Kirk Douglas, pai de Michael, o tipo maduro que, tanto quanto eu sei, mais vezes mostrou o rabinho (assim mesmo, de expostas nádegas) no cinema. Musculada nudez que, como Spartacus, Kirk pai consagrara sob a estrita vigilância de Stanley Kubrick.
Aqui, e já não sei bem porque razão fui eu a guiá-lo, Douglas delicia-se com a exposição de fotos suas. Era simpático, desprendido, com aquela desempoeirada inteligência americana de quem é filho de judeus russos. Belo actor e produtor, um tipo com um impecável sentido de justiça.
Ligaste-me. Eras tu. Tinhas sabido que eu me metera numa trapalhada e num susto covidianos e vinhas pôr-me na linha. Tenho a tua voz aqui: entrou pelo ouvido esquerdo e ficou. Combinámos que íamos jantar: querias discutir as minhas crónicas e contar histórias que dariam sal e pimenta (sabiam sempre a riso, o teu sal e pimenta) a outras histórias.
Eis o que tenho a dizer: não acredito na notícia da tua morte. Como se tu pudesses morrer! E tenho, entradinha pelo ouvido esquerdo, há cinco dias, a tua voz guardada na minha mente, a tua tão linda, charmosa voz. O resto são ficções, fantasias, labirínticos sonhos borgesianos. Como se tu, Carlos, pudesses morrer.
Cantarás sempre – dentro das nossas cabeças, como escrevi, numa das minhas bicas curtas, que leste e de que tanto gostaste, e agora recordo:
Carlos do Carmo vinha, fim de semana, à sua casa na Caparica. Eu, colega de Filosofia da querida Judite, sua mulher, chegado de dois anos de independência em Angola, andava por ali com a tão bela Antónia. E ele, grande como Brel e Sinatra, abria-nos a casa. Bebíamos a bica curta, o filho às voltas, de triciclo. É inútil louvar a sublime voz do Carlos. Dizem-me que vai cantar o último concerto. Mentira. Conheço-lhe a inacabável generosidade, a sedução dos olhos, discurso e corpo. A voz dele, igual à sua humanidade, é torrencial e imparável. Como no poema de Rimbaud, a voz do Carlos, mar que o sol abraça e leva, respira eternidade.