Eu vestia americano

Simenon no trabalho

Nos meus anos 60 coloniais, eu vestia americano. Comprava jeans nos barcos de Mark Twain, que batiam o cais de Luanda, onde o meu pai trabalhava, às vezes da meia-noite às seis da matina. Ou chegava, essa roupa americana, nos fardos que as organizações democráticas de John Kennedy nos mandavam.

Ressuscito essa adolescência. Basta-me olhar para o escritor belga Georges Simenon. Vejam, Simenon começou a escrever um novo romance e enverga uma camisa de flanela Abercrombie & Fitch. Não há elegância mais desportiva: quadrados vermelhos e pretos e botões que podem apertar-se do colarinho até cá abaixo.

Nos onze dias seguintes, a umas inumanas quatro e meia da manhã, antes do primeiro raio de sol, a americana Abercrombie & Fitch, sempre a mesma camisa, preside ao ritual do escritor mais rápido do mundo, mais rápido do que Billy the Kid a sacar o colt e bang-bang, tão rápido como Jimi Hendrix e Alvin Lee a rasgarem delirantes solos de guitarra. Rock ‘n rol! Seis horas depois, pelas 10 da manhã, Simenon fechará o dia: já tem mais um capítulo escrito, a umas torrenciais 92 palavras por minuto. Só em 1928, terá escrito 44 novelas.

Se Simenon suava a Abercrombie & Fitch? Só sei que o elegante belga, também dos melhores clientes de Louis Vuitton, despia a camisa às 10 em ponto, para que a lavassem e passassem a ferro, pronta para as quatro da manhã do dia e do capítulo seguintes. Em onze dias, o editor teria na mão um dos 350 romances que assinou com o seu nome, para não falar das 1200 histórias que distribuiu por heterónimos tão impertinentes e impenitentes como Germain D’ Antibes ou mesmo La Deshabilleuse.

Truman Capote afiava cerca de 500 lápis antes de começar o primeiro esboço de nova obra. Noel Coward abria, diariamente, o obituário do Times e só passava a escrever, depois de se certificar que o seu nome não constava e, por isso, ainda esta vivo.

Simenon escrevia do fundo do túmulo. Telefone da casa desligado, porta com um “Não incomodar” pendurado. Nesse silêncio de santo sepulcro, nem sequer a distracção de um dicionário se autorizava.

Como Proust e ao contrário de Proust. Também Proust queria e comprava o silêncio para escrever: se havia obras nos apartamentos vizinhos, Proust pagava aos operários para fazerem gazeta e abandonarem os trabalhos. A diferença está na elaboradíssima e torturada edição a que Proust submetia cada página. Simenon escrevia como John Ford filmava: directo para a página, como Ford directo para a câmara.

Corre a lenda de que se fechou numa jaula de vidro, no exterior do Moulin Rouge, em Paris, e escreveu uma novela em três dias e três noites, aceitando sugestões de um público em delírio. É verdade e é mentira. Simenon estava pronto, mas a construtora da jaula de vidro falhou a entrega, embora parisienses de 1927 jurem ter visto e aplaudido o escritor, tal qual os lisboetas viram, e viram mesmo, no dia 31 de Julho de 1977, o poeta Alberto Pimenta expor-se numa jaula do Palácio dos Chimpanzés do Jardim Zoológico de Lisboa. Na porta da jaula, uma placa, “Homo sapiens”; na gaiola ao lado dois perplexos chimpanzés põem os olhos metafísicos em Alberto Pimenta.

E eis que são dez da manhã, e já Simenon despe a camisa Abercombrie & Fitch, deixando em sossego a sua IBM eléctrica. Simenon ressuscita do seu santo sepulcro e passa a ser outro homem, o homem sátiro. No meio da avalanche de dez mil casos de infidelidade, Simenon regista dois casamentos oficiais. Confessa uma decepção: ter escrito tanto e, afinal, ter conhecido tão poucas mulheres.

Que descontentamento!

Brinca n’ areia

Que Inverno! Que descontentamento! Que saudades de sol e marés, digo eu, que não sei o que digo.

A nossa cabeça é geo­grá­fica. A nossa alma tam­bém. A praia é um len­çol azul mari­nho dobrado sobre uma almo­fada de mar­fim e areia. A praia é a maré vazia da nossa cabeça. A praia é a maré cheia da nossa alma, digo eu e, por uma vez, talvez saiba o que digo.

Até aos cinco anos, só tinha visto um rio. O rio Côa, rio da minha aldeia, como disse o Nandinho da Ofélia, que sabia sempre o que dizia. Um rio aperta-nos a cabeça entre as margens. Um rio são duas violentas per­nas geo­grá­fi­cas que descem mon­ta­nhas e atra­ves­sam vales.

Houve um dia, aos cinco anos, em que acor­dei no mar. Vi o mar antes de ver a praia – há tanta gente, eu mesmo, que julga ter visto a flo­resta, sem nunca ter visto uma árvore! Vi, repito, o mar.

O mundo desapa­re­cera, subs­ti­tuído por um inacabável oce­ano com o gordo sol a cavalo. Estava num barco, o Vera Cruz, gémeo do Santa Maria, que um Mortágua assaltaria, e jul­guei que, por terem roubado a terra, nele vive­ria eternamente. Durou oito dias a minha salgada eternidade. Manhãs de baleias, tar­des de golfinhos, noi­tes de zodíaco, como deve ser qualquer eternidade.

Só em Luanda, onde o Vera Cruz me largou, vi pela pri­meira vez a praia. Aos cinco anos, nas calemas ada­mas­to­ras da Praia do São Jorge, soube o que era ser um prín­cipe.  O ver­da­deiro prín­cipe, pili­nha a aba­nar nos lar­gos calções, corre de pés nus e molhados. O verdadeiro príncipe está todo no ar para a fotografia, guarda-redes em voos esti­lo­sos e brinca na areia, n’areia. O ver­da­deiro prín­cipe chora a ver o mar e não sabe nadar, yo, não sabe nadar, ye: e sei lá eu se sei ou não sei o que digo.

Há outros príncipes. De palácios e coches, gravata e alguns até de kilt. Vê-se pelas gravatas que um dia deixarão de ser prín­cipes e pas­sarão a ser reis. Mais tarde do que cedo, que nem a mãe nem o pai lhes morrem, e nunca mais no trono almoçam. É o que murmuram, sabendo bem o que dizem.

O prín­cipe de praia recusa cep­tro e coroa. O ver­da­deiro prín­cipe da praia abdi­ca, por­que abdi­car é a sua con­di­ção. Na mágica praia da nossa infância, o mundo de todos os dias desaparece, rejeitado pela nossa cabeça. Ora, não se tira tudo da cabeça – o mata-leão da dívida soberana; o alarvismo bilionário de Trump; a intimidação que cancela a cultura; o desinteligente debate presidencial de Marisa & Ventura; o pesadelo pandémico da ladainha de infectados, internados e mortos; a meta­fí­sica e a con­ta­bi­li­dade; Deus e o Ministério das Finanças; o horror vazio do SEF; a inú­til e agi­tada panó­plia do incertíssimo quo­ti­di­ano – para depois se pôr na mesmíssima cabeça o ferro de uma coroa.

O geo­grá­fico prín­cipe da praia tem a alma cheia, eró­ti­cas ondas da ale­gria de coisa nenhuma, na pele o poé­tico sal de um tempo sem tempo, os olhos ilu­mi­na­dos pela preguiça tór­rida de uma tarde que não mexe nem o mais escon­dido dos seus principescos pelinhos. Coitados é dos príncipes que vão ser reis; Coitado do Charles, que fala com as plantas; do jovem William, estacionado em segunda fila; da loira sueca Victoria, que para amenizar a espera se casou com o seu personal trainer: que marés cheias e vazias terão na cabeça e na alma?

Eis o que, sem o fúlgido sol brinca na areia, sem praia, sem ondas, o mundo de 2020 nos fez: sitiou-nos como se fossemos príncipes reféns de ceptro e coroa. Queremos de volta a praia da infância, a liberdade de abdicar, a alma em maré cheia: ninguém quer ser o rei nu que vem, de vírus, morrer à praia.

Publicado há 15 dias no Jornal de Negócios

Esta crónica tem música

Feira do Livro de Inverno

Alguém fez uma escuta. Aqui fica a transcrição de um sonoro diálogo ouvido à entrada da Feira do Livro de Inverno da Guerra e Paz.

– Haverá alguma razão para comprar livros no site da Guerra & Paz?

– Há sim e estás convidado: entra já na Feira do Livro de Inverno que hoje começou.

– Mas será essa a verdadeira razão?

– Bom, outra razão que conta muito, e logo no bolso, é a oferta de descontos do outro mundo.

– Vá lá, não sejas tão economicista e dá-me uma razão mais humana, outra razão?

– Já sei, é a entrega de livros em casa. É rápida e é segura, neste tempo de confinamento.

– Não duvido, mas não estás a tocar no coração e o coração é que nos move e move o mundo.

– Desisto. Explica-me lá tu que secreta razão é a tua!

– Não é secreta, é a mais banal: a verdadeira razão é o amor, o amor ao livro. Já viste o bem que o livro nos faz? Mete-nos em aventuras tremendas, arrasta-nos para viagens que nunca de outro modo faríamos, faz-nos sentir, e não fingidamente, paixões avassaladoras.

– Olha, é verdade, metade do que somos, somos porque lemos: ninguém, numa só vida, conseguiria viver e experimentar tudo o que um só livro nos oferece.

– Nem mais, e é por isso que o amor do livro é a razão para não sairmos do site da Guerra e Paz

– Ainda por cima a preços liliputianos!

Velho e menina

Tom Zé

Estava com fome de paradoxo e música. Que é como quem diz: tinha vontade de ouvir o desassombro de Tom Zé. Ora, ninguém ouve Tom Zé sozinho. Peço-vos o favor de cantarem alto o refrão: o amor é velho, velho, velho, velho e menina.

Como se pudesses morrer!

a Judite e o Carlos

Publicado ontem no Jornal de Negócios, trago já hoje, para esta sala, este artigo. Por norma faço a publicação uma semana depois. Mas, pelas razões óbvias, estou certo de que o meu Jornal de Negócios compreenderá

Para Carlos do Carmo,
escrito na manhã de 1 de Janeiro de 2021

Estremeci, assombrado, esta manhã ao ler os jornais. Como num sonho labiríntico, borgesiano, daqueles de que tu gostarias, fui percebendo o infundado da notícia. A tua morte, Carlos! Que exagero, que estranha ficção: não morre assim nem uma andorinha.

Como se tu pudesses morrer. Ainda na 2.ª feira – ou foi no sábado? – me ligavas, a querer saber em que trapalhada e susto covidianos eu me tinha deixado meter e a pores-me na linha. Ao telefone, com aquela probidade de quem trabalha um fado, revimos  os dias em que a Antónia, menina e moça, e eu, dois “putos”, com a idade média de 21 anos (beneficiando eu largamente do facto de a Antónia mal ter saído dos juniores), vos entrávamos, à Judite e a ti, pela casa dentro, na Costa da Caparica, para nos deliciarmos com um lanche gourmet ou um opíparo jantar, com o espectáculo dos teus filhos a esticarem-se nos triciclos, como quem pedala já para a vida, com as góticas conversas do professor comum de filosofia, o José Gabriel, que a Judite e eu partilhávamos, com o vendaval tenso, às vezes tão bonito, que era e sempre será a actriz Manuela de Freitas, com a placidez irónica do Zé Mário Branco.

Eu e a Antónia fôramos, sem apelo e muito menos agravo, adoptados a essa vasta família, a essa perigosa frente comum de esquerda, com sede na Costa da Caparica ou no 10º andar da mais americana das nossas avenidas: a minha vermelha Antónia e – o que te fazia sorrir! – eu, obstinado anticomunista, com o jornal “A Bola” bem aberto, para que fosse clamorosa e se desenhasse a minha transcendente e contrária densidade ontológica – oh yé!

Tenho a tua voz, linda, sedutora comó caraças, aqui no ouvido. Foi como se tivesses acabado de falar comigo agora mesmo, e essa voz está viva, límpida como a luz lavada de Outono. É a voz mais bonita de Portugal. E que exasperante é não ter eu forma de dizer o bem – todo o bem – que essa voz reúne, as modulações, essa honesta subida a céus e nuvens, que logo se torna estético incêndio de corações… Cada palavra, cada frase que eu amanhe, é incipiente para louvar o que, como Brel ou Sinatra – para só falar dos maiores – tu pões em eternidade, na dicção, na melodia, em doçura ou numa breve nota de amargura.

O que eu quero dizer, Carlos, é que nós, dois homens na cidade, combinámos encontrar-nos: outro lanche gourmet? Ou um jantar mais tardio que estes nossos jovens anos ainda autorizam? Combinámos encontrar-nos e querias falar-me das minhas crónicas (ia dizer croniquetas, mas tu logo te zangarias, exigindo-me seriedade e compostura) e eu queria que me falasses da Sophia Loren e de como, dizem-me, ela, com uma exuberância romana, que nada, à frente ou atrás, desmentia, ficou laboriosamente derretida contigo. E de como logo conheceu a Judite e percebeu que outra coisa podia ela fazer que não fosse encantar-se, se a moreníssima Judite, a mais bela das mulheres, era já o desenho do encantamento. Vais ter de me explicar porque nunca me contaste esta história.

Contou-me o Manolo Bello, esse mítico monumento galego que deambula por Lisboa, que andavas, há uns meses, a reivindicar à entrada no céu. Tinhas, dizias, direito a ir ouvir o Brel, Sinatra, Bécaud e Aznavour. Mais, tinhas direito, de tanto os amares, a ir ouvi-los à borla. Eis o que explica esta tua viagem. Um Deus de bom gosto chamou-te: quer ouvir-te cantar à borla Lisboa, Menina e Moça. Vai, não me faltes ao jantar: a ouvir-te, também eu, cada um de nós, se transforma num deus.

A cinemateca e a direita

A Cinemateca Portuguesa, essa gema das instituições culturais nacionais, pode e deve ser reclamada pelo PSD, primeiro, e pela direita de governo, depois. (Eis o que é uma pura e dura opinião minha, que a mais ninguém obriga!)

Sem Vasco Pulido Valente, que foi Secretário de Estado da Cultura do governo AD, será que teria havido a clarividência necessária para transformar numa dinâmica estrutura, com futuro, o núcleo que, no velho regime, com persistência, o médico Félix Ribeiro, homem admirável, criara? E alguém, a não ser ele, chamaria para a dirigir João Bénard da Costa, inequívoco socialista? E sei bem, por um jantar no Gambrinus, a expensas deste vosso pobrete e alegrete escriba, da relação de funda amizade e comunhão intelectual que ligava o João ao Vasco.

Mas houve mais. Houve Lucas Pires e veio depois Santana Lopes. A graça é que deram ou reforçaram a autonomia da instituição, mostrando ter uma visão não autoritária da relação do poder com a cultura. E, nestes tempos mais recentes, Jorge Barreto Xavier, no governo de Passos Coelho, foi um exemplar herdeiro dessa tradição.

Tudo isto para vos trazer mais um “recuerdo” fotográfico, que me merece o seguinte comentário: porque raio é que eu sou sempre o tipo mais mal vestido? É inescapável o cosmopolitismo de Santana Lopes. tenho algumas dúvidas quanto à gravata do João Bénard. Mas a heterodoxia da minha gravata, calça e casaco, é que nem Eduardo Lourenço a justificaria.

O romance facho-hollywoodiano

Hedy Lamarr em Ecstasy

Mussolini, no escuro do seu cinema, gostava de pôr os olhos na irreprovável nudez de Hedy Lamarr, vendo “Êxtase”, filme mudo checo de que tinha cópia privada. Mas o seu modelo de indústria era americano. Admirava os grandes estúdios e manteve romance epistolar com a bela e fútil Anita Page, que teria sido a namorada do mundo se Greta Garbo e Joan Crawford não lhe tivessem sufocado a carreira.

Mussolini taxava patrioticamente os filmes americanos, mas não se importava e até queria que, a duas liras cada bilhete, os italianos sonhassem ser Gary Cooper e se rissem com Chaplin. Replicou a organização dos estúdios americanos na Cinecittà.

O amor de Mussolini era retribuído. Os patrões de Hollywood abominavam o anti-semitismo de Adolf Hitler, mas Mussolini chegava-lhes quase asséptico. Entenderam-se e fizeram acordos. Numa linha first we take Berlin, then we take Manhattan, Mussolini, após campeoníssima visita a Berlim, mandou o filho, Vittorio, a Nova Iorque, festejar o 21º aniversário. Recebeu-o, Setembro 1937, o produtor Hal Roach e assinaram um acordo de distribuição e produção. Roach era a frente visível, mas a MGM, de Louis B. Mayer, estava, cláusula a cláusula, de acordo com tudo.

Esqueceram-se dos actores. O jovem Mussolini, em Hollywood, roçou-se, festivo, por Walt Disney, o censor Will Hays, o vil W.R. Hearst que Welles imortalizaria em “Citizen Kane” e um só actor, o inefável Gary Cooper. Mas James Cagney, Fredric March e Louise Rainer, que dirigiam o sindicato, engajaram (ó se engajaram) todos os outros actores e já se sabe que quando uma coisa engaja é o diabo. A cada aparição de Mussolini nas newsreels dos cinemas, os los angelinos apupavam; houve manifs à porta dos estúdios; a revista Variety trazia, página inteira, frases do jovem Mussolini vangloriando-se de bombardear os indefesos etíopes, na invasão italiana; rádio e jornais lembravam que o irmão de Vittorio estava, nesse momento, ao lado de Franco a fazer o mesmo, bombardeando os republicanos espanhóis.

Vittorio bateu em retirada e Mayer pôs a política à frente da economia: denunciou o acordo. Em Roma, Vittorio largou a amarga réplica final: “Hollywood está mais cheio de judeus do que Telavive. O dinheiro que ganham com os filmes em Itália, dão-no aos vermelhos em Espanha.” Finito o romance facho-hollywoodiano.

A talvez fútil Anita Page

A minha araucária

Esta é a minha araucária. É minha, por ser a araucária que vem, todos os dias, assomar-se à minha janela e espreitar para dentro de casa. Gosta de ver se estou de chinelos ou descalço, se trago dois pares de peúgas nos dias mais frios. Olha-me com uma ponta de ironia e duas simétricas pontas de ternura. Tudo lhe devolvo em admiração e algum amor: minha querida conífera.