
Que Inverno! Que descontentamento! Que saudades de sol e marés, digo eu, que não sei o que digo.
A nossa cabeça é geográfica. A nossa alma também. A praia é um lençol azul marinho dobrado sobre uma almofada de marfim e areia. A praia é a maré vazia da nossa cabeça. A praia é a maré cheia da nossa alma, digo eu e, por uma vez, talvez saiba o que digo.
Até aos cinco anos, só tinha visto um rio. O rio Côa, rio da minha aldeia, como disse o Nandinho da Ofélia, que sabia sempre o que dizia. Um rio aperta-nos a cabeça entre as margens. Um rio são duas violentas pernas geográficas que descem montanhas e atravessam vales.
Houve um dia, aos cinco anos, em que acordei no mar. Vi o mar antes de ver a praia – há tanta gente, eu mesmo, que julga ter visto a floresta, sem nunca ter visto uma árvore! Vi, repito, o mar.
O mundo desaparecera, substituído por um inacabável oceano com o gordo sol a cavalo. Estava num barco, o Vera Cruz, gémeo do Santa Maria, que um Mortágua assaltaria, e julguei que, por terem roubado a terra, nele viveria eternamente. Durou oito dias a minha salgada eternidade. Manhãs de baleias, tardes de golfinhos, noites de zodíaco, como deve ser qualquer eternidade.
Só em Luanda, onde o Vera Cruz me largou, vi pela primeira vez a praia. Aos cinco anos, nas calemas adamastoras da Praia do São Jorge, soube o que era ser um príncipe. O verdadeiro príncipe, pilinha a abanar nos largos calções, corre de pés nus e molhados. O verdadeiro príncipe está todo no ar para a fotografia, guarda-redes em voos estilosos e brinca na areia, n’areia. O verdadeiro príncipe chora a ver o mar e não sabe nadar, yo, não sabe nadar, ye: e sei lá eu se sei ou não sei o que digo.
Há outros príncipes. De palácios e coches, gravata e alguns até de kilt. Vê-se pelas gravatas que um dia deixarão de ser príncipes e passarão a ser reis. Mais tarde do que cedo, que nem a mãe nem o pai lhes morrem, e nunca mais no trono almoçam. É o que murmuram, sabendo bem o que dizem.
O príncipe de praia recusa ceptro e coroa. O verdadeiro príncipe da praia abdica, porque abdicar é a sua condição. Na mágica praia da nossa infância, o mundo de todos os dias desaparece, rejeitado pela nossa cabeça. Ora, não se tira tudo da cabeça – o mata-leão da dívida soberana; o alarvismo bilionário de Trump; a intimidação que cancela a cultura; o desinteligente debate presidencial de Marisa & Ventura; o pesadelo pandémico da ladainha de infectados, internados e mortos; a metafísica e a contabilidade; Deus e o Ministério das Finanças; o horror vazio do SEF; a inútil e agitada panóplia do incertíssimo quotidiano – para depois se pôr na mesmíssima cabeça o ferro de uma coroa.
O geográfico príncipe da praia tem a alma cheia, eróticas ondas da alegria de coisa nenhuma, na pele o poético sal de um tempo sem tempo, os olhos iluminados pela preguiça tórrida de uma tarde que não mexe nem o mais escondido dos seus principescos pelinhos. Coitados é dos príncipes que vão ser reis; Coitado do Charles, que fala com as plantas; do jovem William, estacionado em segunda fila; da loira sueca Victoria, que para amenizar a espera se casou com o seu personal trainer: que marés cheias e vazias terão na cabeça e na alma?
Eis o que, sem o fúlgido sol brinca na areia, sem praia, sem ondas, o mundo de 2020 nos fez: sitiou-nos como se fossemos príncipes reféns de ceptro e coroa. Queremos de volta a praia da infância, a liberdade de abdicar, a alma em maré cheia: ninguém quer ser o rei nu que vem, de vírus, morrer à praia.
Publicado há 15 dias no Jornal de Negócios
Belo texto! Deixaste-me a inesquecível sinestesia da saudade nostálgica…
Abraço
Enviado do meu iPhone
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Um abraço e viva a malta do liceu.
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A infância pobre é toda muito igual e, mesmo sem praia, brinca n’areia que é terra e pó.
Um texto tão bonito.
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Obrigado Bea
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