
Eu conheci pessoalmente Lenine. Toda a gente sabe quem é Lenine. Conforme a perspectiva, é o herói ou facínora da revolução bolchevique. Revolucionário de profissão, adoentado e macilento, a pesar-lhe na consciência, logo em 1921, a primeira grande mortandade de milhões seres humanos à fome, ordenante da morte por enforcamento de camponeses, que ficaram dias pendurados nas árvores só para que se soubesse: não foi este o Lenine que eu conheci e de que fui amigo.
O meu Lenine era igualmente macilento, cabelo negríssimo, magro e esquinado. Se se abrisse a frincha de uma porta, o meu Lenine passaria, como uma fina sombra, por essa frincha. Deste deambulante Lenine, fui eu amigo como o advogado dono do escritório de um célebre conto de Melville foi amigo de Bartleby. E havia alguma coisa de Bartleby no meu Lenine. A mesma determinação subtil, inapelável e irrevogável.
O meu Lenine flanava com discreta elegância por Lisboa e todos os caminhos o levavam à Cinemateca. Era um cinéfilo obsessivo e silencioso, uma dessas sombras fílmicas que fogem da tela e circunvagam como zombies no planeta Terra. Que eu saiba, o meu Lenine nunca comeu e nem casa tinha, fundindo-se na noite, nas wee hours de Lisboa, quando as sessões de cinema acabavam.
À deambulação solitária, juntava uma nobre pobreza franciscana. Um trivial saco plástico com antiquíssimas revistas de cinema, algumas folhas amarrotadas de papel, uma amarelada biografia de James Dean, que anotou, confiando-ma para que eu escrevesse sobre os filmes do fatídico actor. Viajáramos juntos, de metro, da Gulbenkian para a Cinemateca, e decidiu que eu era amigo dele.
Confesso, essa amizade foi das mais poéticas honras que tive na Cinemateca. É que, Lenine era implacável a detectar erros. Uma data, o nome de uma actriz gralhado, e ele aparecia do nada, com um suave desdém a iluminar-lhe a palidez, desancando com a negligente certeza de um Bartleby o programador da Cinemateca que errara. Um dia, já eu estava na SIC, os meus ex-colegas da Cinemateca recuperaram um cartaz do filme “Vendaval Maravilhoso”, de que Amália foi a fulgurante estrela. O filme é de Leitão de Barros, o que todos os meus colegas estavam carecas de saber. Mas, por um daqueles terríveis erros de simpatia, na legenda garrafal do cartaz escreveu-se, “um filme de Leitão Ramos”, confundindo o conhecido crítico da nossa praça com o realizador.
Erro de cabo de esquadra, do nada Lenine corporizou-se ao lado do cartaz e quando passou o primeiro programador da Cinemateca, com um pingo de doce desdém, só disse, “Vocês…”, e fazendo a exacta suspensão que Samuel Beckett exigia dos actores às suas reticências, rematou “nem isto”! A forma como virou as costas, o seu andar recto de ponto de exclamação, eram ainda a mais acerba crítica que um cinéfilo poderia ouvir.
Um dia, Lenine morreu. A Antónia Fonseca, cujo parentesco comigo adivinham, soube. Era e é um quadro da Cinemateca, obsessiva adepta de Bogart e do falecido doutor Cunhal. Era director da Cinemateca, o João Bénard. A Antónia irrompe-lhe pelo gabinete e grita: “João, João, morreu o Lenine!” O João, conhecedor da rubra linha política da Antónia, responde-lhe, sarcástico, com um “Haja Deus, Antónia, morreu e já morreu há muito tempo”. “Não foi o meu Lenine, foi o nosso Lenine que morreu”, cortou, com shakespeariana aflição, a Antónia. E a Cinemateca fez luto.
Chamava-se Lenine, era um pálido raio de filme que desceu à terra e cedo, muito cedo, voltou às luzes e sombras que se projectam na escura caverna chamada cinema.