A palavra “glorioso” aplicada ao SLB – sim, quando alguém diz “o Glorioso!” – não é qualificativo hiperbólico, mas sim uma forma humilde e escassa de nomear a realidade. Não me espanta que um pai ou uma mãe tenham orgulho de levar ao colo o seu filho ao Estádio da Luz, tal como Maria e José apresentaram Jesus, ainda menino, aos sábios do Templo.
O Glorioso acabara de ganhar, por 5 a 3 ao Real Madrid, a segunda Taça dos Campeões Europeus. Eu vivia em Luanda e soube que o Benfica viria visitar-nos. O meu pai prometeu levar-me ao Estádio dos Coqueiros. O Benfica veio e lá fomos para o peão, então pouco mais do que um aterro. Ia ver o jogo aos ombros do Artur, meu pai, se queria ver alguma coisa, mas a alma benfiquista comoveu-se: os espectadores clamaram – o miúdo tem de ver o jogo com dignidade! – e, de mão em mão, sentaram-me no alto muro do estádio, com vista ampla para o pelado. A nação benfiquista de Angola, pegando em mim ao colo, pôs-me num trono, de onde vi, pela primeira vez, Eusébio, Coluna, Simões, a ganharem, por 5 a 3, como se Luanda fosse Amesterdão, à selecção local.
O meu primeiro Benfica, entrou-me pelos olhos de menino – e nesses olhos ficará para sempre. Ora, poucos anos depois, de novo em Luanda, o Glorioso entrou-me já digo por onde. Eusébio tinha posto a Inglaterra a seus pés, naquele Mundial de que tanto me lembro dos seus golos como dessa lágrima de guerreiro que ele enxugou com a camisola de Portugal, no final do injusto jogo com Inglaterra, o mais injusto dos jogos injustos. Eu vira tudo, em filme, no cinema Império, mas agora ia poder vê-lo, a ele, a Coluna, Torres, José Augusto e Simões, no velho estádio dos Coqueiros.
O mais velho Abílio, meu melhor amigo lá do bairro, trabalhava na DTA, a companhia de aviação de Angola, a quem cabia dirigir o aeroporto. Sportinguista embora, o meu amigo era de uma generosidade cristã, e disse-me: “Vem comigo e vamos esperar os teus jogadores à pista.” Fomos.
Saía-se do avião, não havia cá mangas a não ser as da camisa, e caminhava-se pelo asfalto até à gare, que era mesmo ali a 100 metros. O avião aterrou, puseram a escada e eles desceram, eram para aí umas 8 da noite, já Luanda tinha jantado.
O senhor Otto Glória e o senhor Coluna, o imenso Mário Coluna, vinham à frente. E logo a seguir, o senhor José Augusto, o senhor Simões e o senhor Eusébio. Eram todos senhores, de uma elegância irrepreensível. Os jogadores, esses jogadores do Benfica, vestiam-se bem. Fatos elegantes, gravatas alinhadas. Um bálsamo que dava asas à imaginação do olho humano.
E, no entanto, eis o que me deixou siderado: quando a porta do avião se abriu e eles começaram a descer, uma onda de perfume inundou a minha pituitária. O Benfica cheirava bem, aroma divino, e entrava-me pelo nariz.
Otto Glória e Coluna desciam das escadas e com eles avançava um fragrância que refrescava o capacete da húmida noite tropical. Eu não sei se era a Eau Sauvage da Dior ou se era a colónia da Avon, perfumes desse tempo. Eu inalei: cheirava a Benfica. Aqueles jogadores tinham o que, na altura era o melhor que se podia dizer de um homem, tinham categoria. Encheram de perfume a noite africana de um miúdo que tinha a mania que era hippie e que queria um mundo melhor. Os meus mitos de saco-cama, semanas sem banho e muito cheiro a cavalo sofreram, à escada de um avião, o mais vigoroso desmentido. O mundo melhor, o melhor dos mundos, podia ser sauvage, podia ser floral, mas tinha de cheirar bem. Lição do Glorioso. Lição de classe.
Não sei se vai ser polémico, não sei se terminaremos todos nos braços uns dos outros,mas sei que a apresentação e debate das NOVAS EDIÇÕES DE JORGE DE SENA vai ter anjos e demónios,revelações miraculosas, duas ou três alusões impuras e um erótico rumor de fundo. É a grande literatura a encher a sala do Grémio Literário. Às 18:30, 3.ª feira, dia 28 de Março Venham, se faz favor: Eugénio Lisboa, Margarida Braga Neves e António Carlos Cortez esperam-vos. Jorge de Sena, também.
Boa tarde a todos. Quero agradecer ao director da Cinemateca, José Manuel Costa, de quem fui camarada uma dúzia de anos, nesta bela instituição, entre 1980 e 1992, o convite para partilhar convosco as minhas impressões sobre a escrita de João Bénard da Costa.
Sobre a figura do João, sobre a sua aura encantatória, já muito escrevi, e falei até, nesta mesma sala, há uns bons anos. A minha paixão irredutível e incondicional é conhecida, pelo menos daqueles que sabem que eu existo. Ao abrir este livro monumental, a minha paixão, se é que algum dia hibernou, reacendeu-se logo, pondo até em risco de incêndio as mil e uma páginas deste livro. Deixem-me, então, falar do que vi e do que penso.
É logo à página 11. E há de surgir mais vezes nas 999 páginas que os escritos de João Bénard da Costa ocupam neste volume 5. O que surge é o filosófico espanto de João Bénard com o milagre.
O João está a falar do cineasta alemão Pabst e do filme “A Boceta de Pandora” e os seus olhos pequeninos e brilhantes descobrem Louise Brooks.
Oh meu santo Deus, a boca do João abre-se rasgando a sua barba branca, o pulposo lábio de baixo já a brilhar com aquela saliva a que João César Monteiro chamou baba divina, e sai-lhe a expressão “o milagre Brooks”.
Qualquer um, agnóstico, ateu, pode usar a palavra “milagre”, mas quando Bénard fala de “milagre” e explica que o milagre de Brooks, o milagre de Lulu, são planos e cenas de beijos, de espelhismos, de dança, de costas nuas, momentos fulgurantes, choques sufocantes, a partir dos quais percebemos melhor por percebermos que nada se pode perceber – e eu repito, “percebemos melhor por percebermos que nada se pode perceber” – sabemos que a natureza do milagre, para o João Bénard, é de natureza cristã, católica mais precisamente.
E sabemos que esse milagre vem nimbado de uma transcendência que o uso trivial da expressão “milagre”, por um agnóstico a descambar para o ateu como eu, em nada cobre.
A escrita de João Bénard é sempre boa, mas ainda é melhor quando o anima essa tinta negra do mistério, essa aceitação exaltada, hagiográfica, do “não perceber”, mas “não perceber” de coração satisfeito, feliz, erótico muitas vezes.
O João recusava, já se vê, a vocação totalitária da escrita progressista que tudo quer explicar e encerrar numa História fechada, numa Filosofia sem arestas. Era, avant la lettre, por exemplo, uma escrita anti-woke.
E já voltaremos ao milagre e ao catolicismo bénardiano.
Neste livro, à página 13, ainda Bénard está em cima de Pabst, ou seja, ainda Bénard está em cima de Louise Brooks, mas já a falar do “Diário de uma Mulher Perdida”, quando descobre nela, na sua lábil carne, no seu olhar tão carregado de tormenta, relâmpagos e sombras, o que o João chama “o desejo do desejo” e o “desejo de pureza”. Estão lá, em Louise Brooks e estão lá juntos esses dois desejos, como gémeos siameses.
O João está a falar da sequência de beijo-orgasmo-desmaio de Louise Brooks e diz que dessa actriz, do corpo dessa actriz, do sopro vital que a anima, saem, enlaçados, e cito, “maldição e bênção”, “revelação e perda”, “início e fim”.
A escrita de João Bénard é, como se pode perceber, não uma escrita dicotómica, mas uma escrita fusional.
Fusão de todos os desejos, busca desse momento pré-Big Bang em que génesis e apocalipse estavam tão sexualmente acoplados como Pai, Filho e Espírito Santo o estão nessa divina orgia a que os cristãos chamam Santíssima Trindade.
E deixem-me juntar ao catolicismo de Bénard uma outra influência ou sombra tutelar. A esse catolicismo, a meu ver com mais cambiantes do padre Teilhard de Chardin do que Emmanuel Mounier, – e digo isto como vingança, porque fui leitor encantado, na adolescência, de Chardin, e sempre me irritou Mounier – João Bénard tem uma desvairada e amorosa empatia com Jorge de Sena.
Jorge de Sena foi a improbabilíssima síntese de um filosófico humanismo cristão, de um lado, com uma admiração por Marx, do outro, o que fez dele um marxista, mas um marxista estranhamente sempre em luta, de Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade, com o partido comunista.
Poucos intelectuais portugueses o partido comunista terá detestado tanto como Jorge de Sena.
Que eu saiba esse partido, de simpática festa anual na Atalaia, Amora, Seixal, dedicava uma semelhante acrimónia ao João, embora mais discreta.
Mas o que me interessa focar é uma semelhança geracional na estratégia de escrita nos textos ensaísticos de Jorge de Sena e nos de João Bénard. Como em raros casos na crítica e historiografia de cinema, a escrita e o pensamento de João Bénard exibem um comparativismo que roça ombros com o modelo seniano. Se Sena era uma mestre de literatura comparada, Bénard é um mestre do cinema comparado.
Vejam ou leiam, por exemplo, o que o João escreve sobre o “Accatone”, de Pier Paolo Pasolini. Aqueles olhinhos piscos do João parecem, como os olhos de Sena, os olhos poliédricos de uma mosca, que tudo alcançam em 360 graus.
Os olhinhos de mosca do João começam por entrelaçar as pernas de Pasolini e de Visconti, e aí está o João a mostrar que há em “Accatone” vislumbres do “Rocco e Seus Irmãos”, que há, no “Accatone” citações do “Ossessione”. E depois, O João põe Pasolini de mão dada com Jean-Luc Godard.
O João pede ao Godard se não se importa que ele sobreponha o plano da morte do protagonista de “Accatone” ao plano da morte de Belmondo no “A Bout de Souffle”. E eu sei, resquícios do meu velho e esquecido cristianismo, que o turbulento Godard foi agora lá acima, de propósito, de Jean-Luc para João, dizer-lhe que não se importa e até agradece.
Ó mas se fosse só isso. Logo a seguir, o João já está a olhar para os enquadramentos pasolinianos, vê os anjos de pedra, a composição dos “grupos de família”, as casas esventradas, os pés e os corpos de homens em luta numa rixa.
O olhar do João cola-se a esta multiplicidade caótica, quer dar-lhe uma unidade estética e, com a sua vocação nada maniqueísta, confunde e funde Pasolini com a pintura do final de trecento e do princípio de quatrocento, para depois, naquela sua vontade de “deixa-te lá de meiguices”, arriscar a provocação, chamando os génios de Giotto e Masaccio em seu auxílio, tudo culminando na erotíssima identificação de Accatone, o protagonista de Pasolini, com o “Cristo Morto” de Mantegna.
Ou seja, a hiperbólica pulsão comparativista, só ao alcance da grandessíssima erudição, só ao alcance do universalismo, só ao alcance do não-fundamentalismo, é o poderoso cordão umbilical que liga Bénard a Jorge de Sena.
Sei do que falo. Nesta mesma Cinemateca, era eu um dos meninos da programação de João Bénard (e mesmo que os meus queridos amigos José Manuel Costa e João Lopes, me chamem um lambe-botas, direi sempre que eu era o mais bénardiano desses inocentes aprendizes, até por que eles já tinham um estilo próprio e eu nunca tive estilo nenhum) … mas então, o João chamou-me e mostrou-me um camião de caixotes com papéis de mil comunicações. Eram as apresentações que, nos anos 50 do século passado, ingentes intelectuais portugueses tinham feito dos filmes das 3.ªas feiras Clássicas no Jardim Universitário das Belas Artes. Mandou-me organizar aquele material. Aguenta-te M.S. Fonseca.
Tive uma ideia brilhante e que marcaria o resto da minha vida: publicar aquela montanha de comunicações por autores e começar por Jorge de Sena. Na verdade, a ideia brilhante não foi minha, limitei-me a adivinhar o que o João queria.
E até o que o João já fizera no Tempo e o Modo. E é, por isso, que hoje sou editor de Jorge de Sena.
Agora mesmo vou editar um pequenino livro, um ensaio chamado “Amor”, que nunca foi publicado em edição individual, só em antologias.
Não digo isto para vos vender esse livro – peço-vos desculpa, mas tenho de mostrar ao João Bénard a capa desse livro do Jorge de Sena para partilhar com ele o meu puro gozo. João, aqui está a capa: obrigado por me ter ensinado a fazer livros.
Peço desculpa por este momento de assédio erótico, mas este livro, “Amor”, é, para a manifestação do erotismo e da sexualidade na literatura portuguesa, um livro que poderia ser de João Bénard da Costa. Nele se encontra, além da literatura, como nestes escritos do João além do cinema, a história das ideias, a histórias das religiões, a pintura, todas as outras artes.
Por total empatia com Jorge de Sena, empatia geracional, empatia intelectual e filosófica, no João há uma vontade de estetização do mundo.
Na literatura, Sena quis limpar a língua portuguesa do sarro neo-realista, do miserabilismo, das palavras com cueiros, erguendo a língua literária a uma ambição universal, disparando convictamente contra esse espantalho simplista que pretende que a “arte deve representar realisticamente a sociedade”.
Os textos de João Bénard sobre cinema são a gloriosa expressão da mesma luta. João Bénard santo guerreiro contra o dragão da maldade, nos seus textos concretiza uma magnífica e pasmosa, como ele gostava de adjectivar, objectificação estética dos ideais, essa objectificação que as almas espantadas, inquietas e insatisfeitas perseguem, buscando ideais de sonho, ideais de harmonia, ideais da mais cândida ou pungente erotização. E essas almas espantadas, inquietas e insatisfeitas são as de todos os que estamos nesta sala, a minha e as vossas.
Disse tudo isto, mas ainda só estou na letra P deste 5.º volume. Dou um grande salto, para a página 226, já na letra R, e eis que à cristianíssima adoração do milagre, que faz de Bénard um irmão de espírito de Dreyer, a esse milagre se junta o amor e a emoção, com a condição, a exigência, de que a emoção possa ser tanto física como espiritual ou as duas coisas ao mesmo tempo.
A “Johnny Guitar”, letra R, de Ray, Nicholas Ray, o comparativista João Bénard chamou “A Imitação de Cristo” dos cinéfilos, e eu nem me atrevo a tocar no corpo amado de Johnny Guitar, corpo que só se incendeia ao olhar e à delicada língua do João.
Escolho da letra R, a cena que é para mim a mais bonita de todo o cinema de Nicholas Ray: Mitchum, herói de rodeos, agora coxo, abandona as arenas, os cavalos e…, começa a cena, vêmo-lo a chegar a uma casa abandonada. Rasteja para debaixo da sacada da casa e tira uma caixa velha onde escondera, em miúdo, uma pistola, um livro, uma revista e dois níqueis. Mitchum, o coxo e vencido Mitchum, rasteja para a sua infância numa cena tão comovente como solitária: nos escritos, tantos escritos de Bénard, eu vejo o João a rastejar em busca da mesma memória consoladora da infância, em busca desse calor que um dia ele terá escondido debaixo da casa, debaixo da cama, para poder voltar mais tarde a essa memória, a esse calor, um calor que talvez seja o calor da sua Arrábida, calor que ele transportou e tanto amou e tanto chorou em “How Green Was My Valley”.
E volto aos milagres, a essa inundação de milagres que ensopa a página 923 e seguintes.
São os milagres de cada filme de Rossellini, de “Il Miracolo” a “Viagem a Itália”.
Na pg 946, na “Viagem a Itália”, em plena procissão dedicada à Virgem Maria, perante o milagre de um paralítico que larga as muletas e recupera o andar, Rossellini filma a estarrecedora reconciliação de George Sanders e Ingrid Bergman: milagre, também.
O pouco mais do que adolescente, quase homem, João Bénard foi ao cinema Eden, numa tarde de Outono, tarde de muita luz e muito sol. Viu esta cena, presenciou o milagre e, diz ele, “No fim do milagre desatei a chorar.” Onde os descrentes do cinema, os descrentes da objectificação estética dos ideais se riem, está o João a chorar. Lendo-o, neste volume 5, voltei a chorar com ele.
Julgo que o João Bénard andou toda a sua vida de cinéfilo, de historiador e, acima de tudo, de escritor – porque o João é um portentoso escritor – o João andou à procura de um milagre, o milagre da verdade que cega. Uma verdade que cega, que cegue tanto como quando olhamos directamente para o sol. O João encontrou a verdade.
Eis o milagre que cada texto de João Bénard da Costa soletra: nos textos do João percebemos melhor ao percebermos que nada se pode perceber. A verdade do cinema é indizível, a verdade do João é inaudível.
E é nessa solidão, nessa intimidade do deserto, a mesma que vamos já ver, a seguir, no “Bitter Victory”, que é bom ler o João. E o João conduz-nos ao que há de mais essencial, à contemplação e devoção. Cito o que o assombrado Godard disse, depois de ver o “Bitter Victory”:
“O que é o amor, o medo, o desprezo, o perigo, a aventura, o desespero, a amargura, a vitória? Qual a importância disso, quando olhamos as estrelas?”
Sozinhos, com os escritos do João na mão, a lê-los, é como se estivéssemos no mais fabuloso deserto a olhar as estrelas. Obrigado, João, pelo milagre.
Ah, se um dia a brigada juvenil do reumático woke põe os olhinhos naquilo, o João está bem tramado. O João é o João Bénard da Costa e aquilo são os milhares de textos que ele publicou em vida, e que a Cinemateca reuniu. Vão já no volume 5, que me convidaram a apresentar. Reli tudo com devoção canina e logo farejei transgressão, subversão e iconoclastia.
Leiam o Bénard. Está ele a falar de “Lusty Men”, e do protagonista, Robert Mitchum, cavaleiro em rodeos, domador de cavalos, e cito: “Tenho estado a falar de cavalos e cavaleiros. Mas inevitavelmente, a comparação entre cavalos e mulheres surge muitas vezes ao longo da obra e Susan Hayward não é, certamente, a mais fácil das montadas que Mitchum encontrou na vida fora.”
A prosa do João não é domável. Salta, escoiceia, dá pinotes e parte, por vezes, a louça toda. Vejam, houve um dia em que fomos à Embaixada de Itália, recepção em honra de Antonioni, com Manoel de Oliveira a acompanhar.
E já me engano que a história começou antes, quando Antonioni se espantou com uma colecção que Luís de Pina, director da Cinemateca, fazia: coleccionava miniaturas de sanitas e bacios. Também Antonioni gostava de penicos. O João lembrou-se de um, autêntico, uma preciosidade do Palácio da Pena, em Sintra. De louça portuguesa, a rainha Dona Amélia guardava-o onde ainda hoje está, debaixo da cama. Partimos em romaria turística.
A visita, porém, era de lotação limitada. Só deu para o João, o Antonioni e a minha mulher entrarem. Ficou o Luís de Pina cá fora, a cigarrear, e eu a fazer-lhe companhia. O pior é que a visita era à porta fechada: mal fecham as portas, o Antonioni, claustrofóbico, por ter vivido meio clandestino num quarto, no final da II Guerra, solta um grito e procura uma saída. Aparece-nos, a mim e ao director Pina, de uma alta janela, logo seguido pela minha mulher. O Luís e eu apanhámo-los pelas pernas e ajudámo-los a descer.
Ora, está o Bénard a contar tudo isto ao Embaixador, com a sua transbordante verve, quando um dos braços dele, ganhando a autonomia de um cavalo do Robert Mitchum, se larga e estilhaça uma cristaleira divina. Ninguém se magoa, toda a gente se ri e foi uma noite de prazer, com Manoel de Oliveira a contar anedotas de alentejanos e Antonioni a contar barzelletti de carabineiros. Tudo coisinhas deliciosas e atrozes que fariam, hoje, desmaiar a brigada woke.
Mas o que interessa é que, no ano seguinte, o Bénard volta ao lugar do crime. E está, agora, a contar à plateia encantada toda a história e como o braço dele deu a volta e espatifou a bela cristaleira. A plateia está delirante e o braço do Bénard também: roda no ar e, com a exacta memória do que tinha feito no ano anterior, catrapum-zás-trás, arrebenta, estoira, estrancilha de novo a bela cristaleira italiana.
Voltou o Bénard à Embaixada de Itália? Voltou, mas dois adidos, o cultural e o comercial, ladearam-no, vigiando rigorosamente a distância dele ao mobiliário, oferecendo o corpo a gestos mais largos e destravados, que a Embaixada de Itália não é propriamente a arena de um rodeo americano.
E ainda me lembro de ter almoçado com o João e a Claudia Cardinale. No fim do almoço, ala para o aeroporto, que a Cardinale estava à justa para o avião. No aeroporto, a Cardinale descobre que perdeu o bilhete. No balcão, o João pede atenção especial à térrea hospedeira e diz-lhe: “É uma VIP. É a Cardinale.” E logo, a prestável e informadíssima menina: “A Cardinale? A do circo?”
Não se riam, a menina tinha razão: ou alguém acha que a Cardinale não era uma fera?!
Ouçam, para começar, a voz rouca do Manolo Bello, meu amigo galego, mais português do que qualquer português. Eu estou no fim da escala dos amigos dele. Vejam, à cabeça dos seus amigos está o José Afonso, o Zeca, cantor dos “Filhos da Madrugada” e da “Grândola”. O Manolo jura, e é verdade que ele sabe, que a primeira vez que o Zeca cantou em público o “Grândola” foi na Galiza e não em Portugal.
Mas o Zeca também ia ao cinema e, tal como se percebe por alguns versos seus, gostava dos surrealistas. Em Madrid, foi ver um filme do Buñuel, a um cinema com 6 ou 7 salas. Estava com a Zélia, sua mulher, e com o Suso Iglesias, jornalista, galego como o Manolo. Foram ver esse filme vanguardista, repleto de um absurdo que rejeita qualquer linearidade, chamado “O Charme Discreto da Burguesia”. Lembram-se? É a história de seis pessoas da alta burguesia que se reúnem para jantar: e nunca mais jantam, sempre a mudar de sala, e com alguns a sair até pela janela. Também o Zeca teve de sair um minuto, a correr, para ir à casa de banho. Volta e para não incomodar ninguém senta-se no primeiro lugar à mão. Estranha as voltas surrealistas que o filme dá e pensa: “Este Buñuel é arrojado: parece outro filme.” Termina a sessão e procura a Zélia e o Suso. Viste-os? Nem ele! Fica zangadíssimo e vai directo a casa.
Zélia e o amigo estão na sala onde se projecta “O Charme Discreto”. O filme acaba e procuram o Zeca. Até debaixo das cadeiras. Nada. Pensam: “Queres ver que se chateou com o filme e foi para casa?” Procuram um telefone. Ligam. O Zeca atende-os irritado. Já está em casa há vinte minutos: Onde é que se meteram? Foram jantar sem ele?
“Mas o filme só acabou agora”, diz-lhe a Zélia. E é, então, que o Zeca, a Zélia e o Suso descobrem que, a voltar da casa de banho, trocou as salas. Nem sabe qual era o outro meio filme que viu na sala errada. Riem-se tanto como se teria rido o magnífico Buñuel, se tivesse conhecido este episódio. Na sua supina distracção, Zeca fez a maior das homenagens ao cineasta que, no seu último filme, “O Obscuro Objecto do Desejo”, muda a meio a actriz principal sem que a maior parte dos espectadores dê conta disso.
E ainda é o Zeca, mas agora quem conta é outro amigo, o Manuel Cavaco. O Manel foi um dos actores que representou, no Teatro Aberto, um estrondoso êxito, “O Círculo de Giz Caucasiano”, de Brecht. O papel do Manel era de desgaste físico. Suava as estopinhas, lembra-se o Manel, que saía do palco a correr para ser o primeiro a tomar banho. Uma noite, sai do banho e está o Zeca, tímido, lavado em lágrimas, à espera para o louvar e abraçar. E foram, logo ali, dois a chorar. Noutra noite, o Manel, fim da peça, está a vir do banho pós-brechtiano, e vai para o camarim, toalha enrolada à volta do corpo. Avança para ele um homem com um séquito atrás. O Manel reconhece o homem e grita, “Olha o Álvaro Cunhal!” E levanta os braços deixando cair a toalha. Era mesmo o Cunhal. E ali estava, à sua frente, o meu amigo Manel Cavaco, em nu brechtiano, sem artifícios, com toda a oficina à mostra. E aqui, Cunhal e eu estamos de acordo: esta nudez não pode ser castigada.
Querer, querer, querer. Hoje trago livros de bem querer a quem muito bem quero. São os meus dez livros de Março, todos bem-me-quer, nenhum mal-me-quer
Os meus livros de Março os queridos livros de Jorge de Sena
Eu quis, eu queria, eu quero. Estes são os meus mais queridos livros, livros de muito e bem querer: os de Jorge de Sena.
Sei, Senhor, que não sou digno, mas sou agora editor de Jorge de Sena: de toda a sua ficção, dos seus ensaios. Antes, rocei-me por umas correspondências, beijei um deus ou diabo prodigioso, umas verrinosas dedicácias, mas agora vou poder publicar tudo, menos a poesia, com as ultrajantes capas novas, que podem ver ali em cima.
Começo com perambulações demoníacas, Andanças do Demónio, ficções de louvor à mais pura imaginação, pégasos que estilhaçam o enfadonho território português. E salto logo para outro diabo, que se desespera invisível sobre outro corpo, no sensual (lúbrico?) OFísico Prodigioso. E a maior surpresa é o terceiro livro, Amor, um ensaio que é publicado pela primeira vez em edição isolada e individual: visita à explosão do amor, do erótico, do obsceno na literatura portuguesa. Livro delicioso, impuro e pecaminoso. Desmintam-me, se puderem. Mas não me desmintam sem o ler.
Há um dos meus livros de Março, um livro que não se rende, que Sena gostaria de ter lido. Falo de ADestruição do Espírito Americano, de Allan Bloom, o livro que pressentiu e adivinhou toda a execrável panóplia de proibições e cancelamentos woke a que hoje assistimos: Bloom canta os grandes livros e os grandes autores com coragem, encanto e exaltação. Publico-o e a Fundação António Manuel da Mota e a Mota Gestão e Participações vão doar um exemplar a cada uma das bibliotecas da rede pública nacional.
Entre os dez livros de Março, tenho um Atlas – a minha colecção está cada vez mais linda – é o Atlas das Fronteiras e bastaria a Ucrânia para se perceber a útil urgência. Vejam também um livro prático, nos Livros CMtv, que se chama Tenho um Animal de Estimação. E Agora? Escreveu-o uma médica veterinária, Sara Calisto, para cuidarmos bem dos nossos cães e gatos, mas também, se formos ousados para os ter, de canários, furões ou répteis.
José Jorge Letria trocou-me as voltas: A Última Valsa de Chopin é uma biografia, mas não posso dizer que seja não-ficção. É uma biografia romanceada, a mão de Letria a fugir para o poético: e não podia ser mais factual e verdadeira!
Fecho com três romances. Remissão, do português Carlos Guedes, é um romance-rio de culpas à procura do perdão, com três mulheres como protagonistas. Kim, de Rudyard Kipling, parece ter só um herói, o espião adolescente que dá título ao livro, mas tem na Índia o verdadeiro herói, tanto que Salman Rushdie bem avisou: «Nenhum outro escritor ocidental compreendeu a Índia como Kipling.» E acabo com Jesus, o herói solitário de Sede, romance pungente, elegante e irónico de Amélie Nothomb. É um Jesus solitário, está na cruz e desabafa. Sacrilégio? Blasfémia? Ao ouvido, Amélie disse-me: «É o romance da minha vida!»
São os meus dez livros, três vêm pintados pela turbulenta liberdade erótica de Jorge de Sena. O bem que eu lhes quero.
A morte é sincera. A morte chegou cedo ao ouvido de Dolores Duran, ainda Dolores Duran não era sequer Dolores Duran, e disse-lhe, vou levar-te comigo. Antes já a morte lhe roubara o pai: tão depressa que ela nem chegou a conhecê-lo.
Essa mesma senhora dona Morte, na forma de febre reumática, tomou a pequena Dolores nos braços. Chamava-se então Adiléia Silva da Rocha, tinha apenas o peso pluma de uma andorinha mulata: com pena, a morte tirou-lhe só parte do coração e, à condição, deixou-a a viver no Rio de Janeiro.
Ora vejamos, não havia, em 1949, cidade do mundo em que melhor se vivessem as 24 horas de cada santo dia. E corrijo: em particular as pecadoras horas nocturnas que faziam de Copacabana o mais glorioso e evanescente antro de perdição. Eram as mais langorosas e destiladas wee hours que o mundo já conheceu. As saudades que eu tenho de nem sequer as ter vivido: do Beco das Garrafas ao Baccará, culminando no Vogue, a noite de Copacabana pintava-se de escarlate, tanta buáte, tanto uísque, tanto desejo, mesmo tanto pecado, se houvesse pecado do lado de lá do Equador.
E vamos aos pecados de Dolores Duran. Tinha 19 anos e foi a sua voz e um casal rico (o que seria desta vida sem um casal rico), que lhe abriram as portas das longas noites de Copacabana. O que a noite gostou dela. Veio Ella Fitzgerald ouvi-la cantar “My Funny Valentine”, viria mais tarde Charles Aznavour. E o que interessa é que vinha ouvi-la, inteirinho, o Rio de Janeiro boémio. Se entrarmos na sala da buáte Vogue, apesar da nuvem de fumo rasgada a lamentos de piano, guitarra, o sopro de um saxofone, vemos ao fundo a silhueta de Dolores. Do chão ao tecto reverbera a voz dela a cantar dores e mágoas de amor, canções de dor de cotovelo, que eu me atreveria a chamar canções de dor de corno.
Ainda se lembram do que contei atrás? A morte levou-lhe meio coração, quando Dolores era só Adiléia. Ficou no peito de Dolores só a metade apaixonada do coração. Quantos homens amou Dolores? Os que quis, como quis, quando quis. Casou e descasou. Amou mesmo, tinha 21 anos, um rapazinho de 17, João Donato, com quem teve casamento aprazado: roubou-lho a família dele mais rica, que não o quis casado tão cedo. Por ela ser mais velha e livre? Ou (ai, meu Brasil, brasileiro) só por ela ser mulata? Ai, essa solidão vai acabar comigo.
Era mulata e mulher e rasgou ao meio um universo musical masculino. Dolores não só cantava como compunha. Um dia, veio ter com ela Tom Jobim. Tocou ao piano uma canção nova. Dolores sentou-se, puxou do lápis de retocar os olhos – ou foi com o stick do baton? – e escreveu os versos de “Por Causa de Você”. Jobim, siderado, nem lhe disse que a canção já tinha versos, os do imenso Vinicius. Mas Vinicius logo achou que eram melhores os de Dolores.
Aos 25 anos teve um enfarte. Resistiu e seguiram-se quatro anos de mais uísque, lá pelas três da manhã “duas cafiaspirinas, uma colher-de-açúcar em um cálice e meio de água”, e bora lá mais madrugadas de amor e separação. Dolores deixou 35 canções que são o sangue que leva do samba-canção à bossa nova. Bastava que tivesse composto e cantado “A Noite do Meu Bem”. Aos 29 anos.
Foi o que a morte pensou. Ainda a canção não era disco, a morte veio mansa cantar-lhe ao ouvido: “Hoje eu quero a rosa mais linda que houver /e a primeira estrela que vier / para enfeitar a noite do meu bem.” O fino ouvido de Dolores ouviu. Eram sete da manhã e disse à empregada: “Não me acorde. Estou cansada. Vou dormir até morrer!” Quem ousará acordá-la?