Sean Connery

Bond, James Bond

Com Sean Connery morre um tipo de homem que os pais e as mães estão proibidos, agora, de dar à luz. E antes de ir ali e voltar quero corrigir: eu só vi, de relance, o escocês Sean Connery, uma vez, em Lagos, ia ele a subir uma rua que a Antónia e eu vínhamos a descer. Não é desse fugaz cidadão que estou a falar, turístico e quase de chinelo. Estou a falar do actor escocês, de irrepreensível peruca, penteadíssima e negra, que pedia dry martinis «shaken not stirred», anónimo, mas nada anódino, que em seis filmes, de Dr. No a Diamonds are forever, se apresentava com a inabalável confiança dos predestinados: «my name is Bond, James Bond».

Bond era o homem na plena confiança de ser homem. Seguro, por seguro estar de ser o seu lado o lado do bem. Sem dúvidas existenciais sobre o seu mundo, por ter a certeza de o seu mundo ser o mundo bom e justo.

O resto, a agilidade, a serena e bem medida coragem física, a inteligência fina e disruptiva, a confiança progressista na tecnologia e nos artefactos, esse misto de Ulisses e Aquiles sem cóleras, esse «resto», comecei a dizer quando este parágrafo era só uma criança, era só a sua forma genuína de ser, por que outra coisa pode, se não for isso, ser um homem? E pode. Um homem pode ser mais do que isso: ele, Bond, James Bond, era também estarrecedoramente sedutor, um lago de nenúfares sobre a qual as mulheres pairavam como libelinhas, atraídas pelo ligeiro trejeito de lábios, pela cintilação de um dos seus olhos (qual?), pelo seu humor de benigna altivez.  

Há uma palavra, só uma, que resume as 114 palavras que usei para o tentar explicar no parágrafo anterior: Ora vejam: masculinidade. Sean Connery exsudava masculinidade. Mesmo quando regressou, mais Bond do que nunca, pela mão de Steven Spielberg em Indiana Jones e a Última Cruzada, a chamar Júnior a Harrison Ford, que ficará para a eternidade como seu filho, era ainda, nos seus sessenta anos, essa masculinidade que lhe perfumava o chapéu, casaco e calças anti-nazis.

Morreu, agora, no mundo do não-desejo, o homem que era a casa a que se acolhia ou vinha aninhar o desejo. O desejo e a aventura. Bond, James Bond.

Os mortos aritméticos

Federico Garcia Lorca

Às oito da noite, os pivots dos telejornais vêm trémulos de excitação recitar os “números”. É o espectáculo obsceno da morte anónima. Replicam o ritual profano da Direcção Geral de Saúde, que para si reservou o meio-dia, num Angelus de algarismos desumanos e sem rosto. O poeta Federico Garcia Lorca cantou a morte do matador Ignazio Sánchez Mejías, atravessado pelos cornos de um touro – Eran las cinco en punto de la tarde. Os pandémicos anti-Lorca, em Portugal e no mundo, anunciam os mortos aritméticos e estatísticos – a pasmadas horas certas. Morte infectada, anódina por transmissível.

A história desta humanidade macaca a que pertencemos ensina-nos: nunca morrem mil pessoas, morre um homem, uma mulher de cada vez. Tenho nostalgia dessa morte pessoal, insubstituível e intransmissível. Actéon morreu rasgado e devorado pelos seus cães. O gigante Diómedes, por estranho que pareça, pelas suas éguas carnívoras. Ao glorioso almirante inglês e abominável pirata Francis Drake, comeu-o o mar e os peixes e caranguejos que nele habitam.

Ninguém morre para ser mais um algarismo nas mortes por milhão de habitantes. Edith Piaf tinha 47 anos e alguns séculos de vida, álcool, drogas, insónias e dores, quando morreu, na casa de campo de Grasse. O jovem marido, o pálido Theo Sarapo, actor e cantor, veio a correr de Paris. Theo, na sua delicadeza grega, queria que a morte dessa mulher mais velha, que o apaixonava, tivesse o fausto e a grandeza que a escassa casa de campo não tem. Agarrou no cadáver amado, meteu-o numa ambulância e trouxe-o para Paris. Um médico compreensivo assinou a certidão de óbito e Piaf morreu segunda vez, na Paris onde nascera.

E vejamos o guerrilheiro Ernesto Che Guevara. Ferido, rendeu-se às tropas bolivianas. Não responde aos militares oficiais que o tentam interrogar. Só fala com soldados rasos, o povo, sal da terra. Um oferece-lhe tabaco para o cachimbo. E veio uma professora primária de aldeia dar-lhe de comer. É já a sua morte que ele desenha, porque o Che sabe o que é a morte. Mandou matar uma centena de pessoas em julgamentos revolucionários. Ele mesmo veio assistir aos fuzilamentos. Quando, no dia seguinte, o sargento Mario Terán, de 27 anos, entra no quarto onde está de mãos amarradas, o Che diz-lhe: “Vieste para me matar!”  Terán estremece e o Che descansa-o: “Não tenhas medo. Aponta bem. Não vais matar senão um homem.”

Morremos como o sol nasce todas as manhãs, por hábito e para não defraudar a natureza. Às vezes, por delicadeza. O astrónomo dinamarquês Tycho Brahé passou um dia com o imperador Rudolfo, num banquete e a viajar no seu coche real. Não querendo confessar uma certa e prosaica aflição, morreu por retenção da urina que lhe causou o rompimento da bexiga. Eis um alerta para as mais longas reuniões de Conselhos de Ministros ou mais ainda, atendendo à média de idades, do nosso Conselho de Estado.

O risível acidente espreita. No Verão de 1979, um mergulhador explorava o mar da Córsega. Veio um avião Canadair, de combate aos fogos, recolher mais água. Sorve o mergulhador e despeja-o no meio do incêndio na montanha. O homem será encontrado carbonizado, fato de mergulho, tubo e barbatanas.

O cómico horrível da situação rouba a dignidade da morte. Tal como a ladainha histérica dos números, essa aritmética com que se atropela o pensamento, cercando-o com a ameaça e o medo. Cada um de nós quer morrer na sua própria morte, de preferência cantado por Lorca, nessas terríveis cinco de tarde, em que já lutam a pomba e o leopardo.

Publicado no Jornal de Negócios

Glória ao livro e paz na terra aos leitores de boa vontade

São prendas. Da Guerra e Paz. Ia lá eu resistir! Até um livro meu, que hercúleo trabalho me deu, foi para aqui chamado. Façam o favor de ler.

É a maior campanha de Glória ao Livro e paz na terra aos leitores de boa vontade que a Guerra e Paz algum dia fez nos seus 14 anos de vida editorial. Estão 101 títulos da editora prontos para serem escolhidos, um a um, para adopção e apaixonada leitura pelos portugueses que gostam, melhor, não prescindem de ler.

Mas as estrelas que brilham na noite são as prendas especiais. Há nove conjuntos personalizados de livros que vão (já estão!) a fazer a alegria de muitos leitores. Hoje, queremos apresentar-lhe A Prenda que a História Dá. São três livros que, de modo diferente, nos levam pela mão, como se a mão fosse uma máquina do tempo, a momentos diferentes da História e nos fazem reflectir. Da escravatura à revolução bolchevista de Outubro, passando pela filosofia da História que subjaz aos romances e ao pensamento de Tolstoi. Um grande clássico, O Ouriço e Raposa, de Isaiah Berlin, um marco histórico, que se viria a tornar terrível, espelhado em Revolução de Outubro, Cronologia, Utopia e Crime, descrito por Manuel S. Fonseca, com capa dura e fotografias, e um dos momentos mais trágicos da vida da humanidade, o tráfico transatlântico de escravos, contextualizado em Escravatura por João Pedro Marques.

É caro, pergunta o leitor interessado? Estes três livros da Prenda que a História Dá custavam 56,90€. Custam nesta campanha apenas 30€: paz na terra aos leitores de boa vontade.

Sonda o meu coração no meio da noite

Já se sabe que eu – sabe Deus porquê – não resisto às iniciativas da Guerra e Paz editores. E esta é uma iniciativa de crowdfunding que visa a publicação de uma recolha de cartas e mensagens de despedida de vítimas do Holocausto aos que lhes eram mais queridos. Um livro que a língua portuguesa e os leitores dela que nós somos, merece conhecer. Ora leiam a mensagem do organizadores:

O Instituto de Estudos Avançados em Catolicismo e Globalização – IEAC-GO, está a promover uma campanha de crowdfunding, com o apoio da Guerra e Paz Editores, para a publicação do livro «Sonda o Meu Coração no meio da Noite. Cartas de Despedida e Anotações da Resistência ao Terceiro Reich (1933-1945)». Trata-se de uma antologia de textos de vítimas do holocausto, que inclui cartas de despedida, ano recolhidos por Dietrich Bonhoeffer, Anne Frank, Edith Stein, Kaj Munk.

Para levar a cabo esta edição, o IEAC-GO precisa do seu apoio e do seu contributo. Apoie esta edição, até ao próximo dia 30 de Novembro, com a aquisição antecipada da obra, no valor de 15€, e receba de oferta: «O Principezinho» + um dos três exemplares constantes do flyer abaixo. Para mais informações consulte o site do IEAC-GO, em: https://bit.ly/37SU2f8

Fu Fu, marechal-em-chefe

Fu Fu foi o mais fofo marechal-em-chefe da Força Aérea tailandesa. Fu Fu é o caniche do príncipe Maha Varijalongkorn, hoje por hoje, rei da Tailândia. E neste exemplo, sim, é que o velho PAN, com todo o seu pedigree, devia ter-se lambido.

O príncipe, iludindo a raivosa discriminação e ignominiosa desigualdade que os execráveis humanos dedicam à raça animal, comemorou a promoção castrense do caniche convidando para um jantar de gala a nobreza Tai e os diplomatas acreditados. Fu Fu sentou-se a essa mesa. Veio de negríssimo smoking, luvas brancas nas suas quatro patinhas de marechal-em-chefe, e com a graça que assiste a esses seres que, como dizia a minha avó, “caem em graça, que é bem melhor do que serem engraçados”, passeou-se pela mesa, lambendo pratos e bebericando com delicadeza de todos os copos, a começar pelo do embaixador do ex-imperialismo americano.

Vejam, John Oliver, o paródico protagonista do programa televisivo Last Week Tonight, com aquela intolerável incapacidade de empatia própria do macho americano branco, ridicularizou este evento solene e hierático. A rotunda felicidade do nosso tempo é que este tipo de impunidade acabou. Um documento secreto do serviço militar Tai, profusamente divulgado na Imprensa e afins, que é o que se espera dos documentos secretos, acusa o rasteiro americano de lesa majestade, susceptível, por isso, de 15 anos de prisão e alguns mimos e bónus na cárcere, logo que os militares à ordem de Fu Fu lhe ponham a patinha em cima.

E, se não minto, estou pelo menos a omitir: Fu Fu entretanto morreu. Tombou com a dignidade de um pequeno mas peludo guerreiro. Da Força Aérea Tai, claro, com o céu por limite. O príncipe Maha Varijalongkorn decretou que lhe fosse prestada homenagem e se seguissem os quatro dias de rituais fúnebres budistas – embora a admirável reserva de Fu Fu sobre as suas convicções deixe os biógrafos incertos e perplexos quanto à sua piedade e inclinação metafísica.

Divaguei, mas quem não se perde, enternecido, com Fu Fu? Ora, eu queria era falar do rei Maha Varijalongkorn. Herdou o trono do seu pai, que talvez o tenha arrebatado dando um só tiro de Colt.45 – one shot, à Robert De Niro, em “O Caçador” – ao herdeiro, seu irmão.  Ou não. Talvez tenha sido um acidente, ou talvez o irmão tenha sido assassinado pelos dois criados do palácio que, acusados da matança, tiveram execução limpinha. Do pântano nasce a flor:  Bhumibol, o pai de Maha, guiou a Tailândia à democracia e ganhou o coração e a mente do povo.

Nas ruas de Banguecoque, o povo, em crime de lesa majestade, ergue hoje a sua voz incendiada contra o novo rei. Gritam “Abaixo o feudalismo” com muito mais convicção do que o nosso querido e geriátrico pê cê grita “Abaixo a reacção”.

Maha é um rei lúbrico. Nem é tanto o segundo casamento com uma actriz soft-porno, que depois escorraçou e perseguiu, espalhando no palácio cartazes a chamá-la adúltera, e obrigando-a a refugiar-se no quinto dos infernos que é a América. E nem será só o facto de ter criado o posto de Nobre Concubina Real para a amante, três meses depois de ser coroado e de casar com a rainha. Agora, na pandemia, abandonou a Tailândia, fechando-se num hotel alemão com um harém de 20 concubinas, que são levadas a uma, não se sabe se bem ou mal denominada, sala dos prazeres, para deleite de Sua Majestade. No harém, as concubinas, têm todas o mesmo nome, Sirivajirabhakdi, a mesma roupa, o mesmo corte de cabelo, e uma inescapável patente militar. Da Força Aérea, claro, nostalgia do imortal Fu Fu.

Publicado no Jornal de Negócios

Tenha Prazer: Dê!

Há algum prazer mais genuíno do que o prazer de dar? A Guerra e Paz quer ajudá-lo a sentir esse sabor simples e amoroso. Tenha prazer: dê! Mas não deixe que esse prazer seja prejudicado por não corresponder à pessoa agraciada. Dê e personalize a sua oferta.

A Guerra e Paz abre hoje oficialmente uma campanha com 9 prendas personalizadas – cada uma com três livros e com um homérico desconto. A Guerra e Paz tem prendas em verso, prendas na ponta da língua, prendas transgressoras ou de luxo, mesmo prendas que riem ou prendas que a História dá. Estão em exclusivo, apenas no nosso site.
Ah, quer saber o que é um desconto homérico? Com uma coragem de Aquiles, do custo original de 106,50 € passámos a prenda de luxo para 40€. Por prazer. E três das prendas personalizadas – sempre com três livros cada – custam apenas 20€.

Mas os leitores que querem apenas um livro, têm à sua disposição, aqui, estes 101 livros, com preços a começar nuns liliputianos 6€, de um álbum de Picasso à Tabacaria, que o senhor Pessoa escreveu escondido dentro de Álvaro de Campos.

Ilumine estes tempos sombrios, liberte este Natal vigiado: dê a ler e leia. A Guerra e Paz quer ajudá-lo a sentir o sabor simples e amoroso de dar. Faça-nos o favor de ter prazer: dê!

O romance de Pedro Bidarra

– Conheces o gajo?
– Não.
– Ele diz que só sai em troca de duas gramas.
– Dois.
– Dois?
– Ya. Grama é um nome masculino. Já se pedisses três não havia problema de concordância.
– Ok. E tens três gramas?
– Eu? Estás‑ma estranhar, ó pula. Tenho cara de dealer só porque sou preto?

Vamos ser claros: este livro não é para flores de estufa. Há livros que nos agitam, enervam, excitam ou revoltam. Há livros angustiantes, há livros carregadinhos de emoção e outros epifânicos. Azulejos Pretos agita, enerva, excita, revolta, angustia, emociona e, se não desagua numa epifania, talvez desagúe numa antiepifania.

Sejamos ainda mais claros: Azulejos Pretos é um romance de Pedro Bidarra. Começa assim: «A porta é preta, a retrete é preta, o tampo é preto, o papel higiénico é preto.» Neste cenário, uma casa de banho, está o narrador que vai viver, e os leitores com ele, uma noite de reencontros, de surpresas inóspitas, de acidentes sulfúricos e de memórias revisitadas. Numa Lisboa fora de horas e fora de sítio, entre a arte e a vida, o tempo e a memória, a porta abre-se e, na casa de banho preta, entram e ajoelham-se modelos de vestido preto e justo, poetas, dealers, criativos, gestores, artistas, até um padre. Figuras reais da noite de Lisboa.

Sim, também é um roman à clef, mas a torrente inventiva de Pedro Bidarra oferece às suas personagens doses generosas de um realismo que descarta o circunstancial e lhes dá universalidade. Sendo o romance de um convulso anti-herói, Azulejos Pretos é um fresco cínico, satírico, ácido, mas também escondidamente enternecido das últimas quatro décadas da nossa vida. Contadas e rememoradas numa só noite, numa casa de banho de azulejos pretos.

Voltemos a ser claros, a ver se nos entendemos: este não é um romance do passado, este é um romance que mete os dentes no presente e o morde com uma coloquialidade tempestuosa rara no romance português.

– Falaram de cu?
– Falaram.
– São tão parvas.
– Elas nunca tinham experimentado
– O quê? Cu?
– Não, coca.
– Normalmente cheiram K. Já ninguém cheira coca – disse a Beatriz. Afirmação que contradizia a minha experiência e os dados da Organização Mundial da Saúde e do Observatório da Droga.
– Nunca experimentei – disse‑lhe.
– O quê, cu?
– Não, K.
– E queres?

O anti-herói de Azulejos Pretos bate de cabeça no presente, neste novo mundo em que vivemos, com um cepticismo vagamente nostálgico e desencantado. Dos novos comportamentos, da galeria de novos protagonistas que pululam na cidade, dá-nos um retrato cru e impiedoso, com uma mancha gritante de humanidade. Azulejos Pretos é, para sermos claríssimos, um romance contemporâneo politicamente incorrecto. Muito. Um romance que, como todo o escândalo, anseia pela sobriedade.

Eis o povo de Azulejos Pretos: pulas e blacks, gays e falsos gays, um padre, um polícia e o seu amante, um poeta, o Günther, artista sem obra, «que vive no meio do meio», um assistente de realização, o Dantas, que «tem os cordelinhos todos atados aos dedos», vegans e lésbicas, a heterossexual Madalena, deitada de costas sobre a mesa da sala de jantar.

Este é um romance de cheiro, com o sexo em fundo, o som do «Once in a Lifetime» dos Talking Heads a derramar-se debaixo da porta duma casa de banho. Rigorosamente preta, que o preto nunca cansa. «Estava um tipo todo mamado, fechado na casa de banho.» Terá redenção?

Azulejos Pretos é um romance de Pedro Bidarra, editado pela Guerra e Paz editores, que chega às livrarias no dia 3 de Novembro. Tem 176 páginas, em papel Coral Book 80 gramas, composto em caracteres Sabon Next. Fomos lá roubar estes excertos:

1.– Olha o Camões, coitado, a quantidade de nobres cus que lambeu em éclogas, odes e oitavas, sempre com a esperança que lhe caísse alguma prata. Hoje, claro, lambe‑se o cu dos colegas e, sobretudo, o cu dos mortos.
– O cu dos mortos?! – exclamou o Joel, enojado, provavelmente sentindo o diafragma a reclamar com tanta metáfora escatológica.
– Claro. Haverá cu mais lambido nesta Terra que o do Pessoa e o do Saramago, pelos da prosa, ainda mais que o cu do Camões? São cus platónicos que o poeta lambe para ser lambido ainda em vida.

2. Quando fui para a universidade, a extravagância passou a ser o gay e o negro. Não havia festa que não tivesse um gay abertamente fora do armário, numa época em que os armários eram robustos, de mogno, nogueira ou carvalho e fechados à chave.[…]
Agora foi o padre que saiu do confessionário. O que está bem visto. Afinal, nada há de mais contrastante no meio de tanto gay, agarrado, mentiroso, artista, empresário e putanheiro, de tanta alma à deriva, do que um membro do clero, uma ovelha branca no meio do grande rebanho de ovelhas negras que hoje anima esta festa.

3. Naquela tarde, ajoelhado no altar improvisado na sala de jantar da casa do Chico, intuí o universo, o Yin e o Yang, o nirvana, o sentido da vida, a biologia e todas as religiões. E quando a Madalena, deitada de costas na mesa da sala de jantar, de pernas abertas e joelhos flectidos, sem nunca parar de falar, separou os pequenos lábios com os dedos delicados e nos deixou olhar para dentro da vagina propriamente dita, senti‑me levado num incontrolável fluxo libidinoso e transportado em viagem pelo elíptico canal até ao interstício uterino, onde finalmente explodi em cores e fluidos quentes e húmidos que se misturavam e dispersavam ao som dos Yes.

4. Não há religião ou ideologia que impeça o impulso da violência. Antes pelo contrário, religião e ideologia são mijo, mijo neurolinguístico, e é pelo cheiro a mijo que uma seita distingue a outra; e é por causa do cheiro que uns expoliam, expulsam, matam e maltratam outros que mijam um outro cheiro. O pregador da paz (o velho humanista na versão benigna, antes das fogueiras) acredita que falando o mundo muda, que os ditadores caem com o verbo, que a desigualdade se cura com parágrafos e páginas tantas, mas não é o que nos diz a História. O maior justiceiro, o maior equalizador, o maior repositor da equidistância é o par de estalos e a cabeçada.

5. Queriam dar um cheirinho para experimentar.
– Não façam isso – aconselhei‑as. – Olhem que isso pode ser o princípio de uma interminável espiral de degradação física e psicológica.
– Oh, tio, é só para experimentar – disseram em uníssono, sorrindo bela e impenitentemente.
Pedi‑lhes o BI. Elas riram e disseram que não tinham trazido. Perguntei‑lhes a quantos graus fervia a água e em que ano tinha sido a revolução de Abril.
– 90 °C – respondeu uma.
– Em Maio de 68 – respondeu outra.

Caem mulheres do céu

Adeline Grey

Procura a delicada diferença, a mulher que cai do céu

Amigos, eis por que ando sempre de cara levantada ao firmamento: estou à espera de ver uma mulher descer dos céus. Reparem, a 13 de Maio de 1917, uma Senhora surge, assim, do atónito nada, em cima de uma azinheira. Um mês antes, Lenine faria uma revolução com uma prosaica chegada de comboio a São Petersburgo. Lenine, como qualquer trangalhadanças de calças, chegou numa onda de CO2, uma fumarada ferroviária e operária; já a Senhora, luminosa como o Sol, pairava a metro e meio do intocado solo, o inefável pé aflorando as ecológicas folhas de uma árvore. Eis o que os meus olhos procuram no céu: essa delicada diferença.

Há quanto tempo descem mulheres do Céu? No último ano do século XVIII, uma francesa, Jeanne-Geneviève Garnerin desceu majestosa da celeste abóbada, de uma altura, diga-se, muito superior ao metro e meio da azinheira da Senhora de Fátima. Jeanne-Geneviève mergulhou de 900 metros acima do solo e tocou incólume a cara espantada e parva da terra.

E eu já devia ter dito que ela foi já a primeira mulher a pilotar um balão a hidrogénio. Fora aluna e, por serem as nuvens e o céu propícios, logo mulher de André-Jacques Garnerin, um pioneiro das viagens de balão de ar quente. Quando André-Jacques anunciou que levaria uma mulher na cesta do seu balão, oh, oh, a França logo lhe moveu uma providência cautelar. Essa erecta e aérea proximidade de dois seres sexualmente diferentes tinha implicações morais. Um preclaro juiz estabeleceu, porém, que tendo-as, não eram nem mais, nem menos do que as implicações morais de um homem e uma mulher se montarem juntos numa carruagem.

Mas levantem a cabeça para os céus de França, lá vem Jeanne-Geneviève a descer, uma ampla abóbada de pano enfunada sobre a sua cabeça, fios firmes a segurá-lo à cesta onde ela se mantém, sem alarme, de pé e serena. Saltou, a 12 de Outubro de 1799, de paraquedas de seda antes do paraquedas ter sido inventado. Os Garnerin, marido e mulher, registariam a patente da invenção e a sobrinha, Elisa, seria a primeira paraquedista profissional, herdando de ambos a intrepidez: de França a Espanha, da Itália à Alemanha, vinda do céu, apareceu 39 vezes aos trémulos e sarapantados pastorinhos que todos os humanos eram no começo do século XIX, se é que não os continuamos a ser, dois séculos depois.

E peço que concordem comigo: como é irresistível a atracção dos céus. Menos de um século depois da senhora Garnerin, outra mulher, a americana Mary Breed Hawley Meyers, mais conhecida por Carlotta, a Dama Aeronauta, faz a sua 180.ª viagem de balão e algo corre mal. Destemida, corta todas as amarras e agarra-se às cordas do balão, transformando-o num improvisado paraquedas. Viaja assim 15 quilómetros descendo lentamente até deslizar pela estupefacta terra com os seus sapatos de cetim.

A 4 de Julho de 1888, em Los Angeles, Jenny Rumary Van Tassel, escapou a um detective que trazia a ordem de proibição. Subiu num balão, estabilizou-o a quase dois mil metros, segurou num paraquedas e saltou.  Os primeiros metros são uma vertigem; não é, jurou ela, como uma ave ou um anjo, mas como roçar-se pela sensação de voar. E durante 5 minutos e quinze segundos, assim veio do céu, esta mulher alta, bela, decidida e loira.

Adeline Gray já é outro exemplo. Estavam todos os homens americanos em guerra, em 1942, sem a seda do Japão com que se faziam os paraquedas: era preciso caçar com gato e fez-se o paraquedas de nylon. Adeline ofereceu-se para o primeiro salto real. Veio do céu, muito mais bela do que uma medusa, e caiu, com uma graça de Nureyev, à frente dos narizes de 50 majores e generais americanos, sem lhes pisar os calos.

Levantemos os olhos bem alto: centenas, milhares de mulheres caem, há três séculos, do céu.

Publicado no Jornal de Negócios