
Às oito da noite, os pivots dos telejornais vêm trémulos de excitação recitar os “números”. É o espectáculo obsceno da morte anónima. Replicam o ritual profano da Direcção Geral de Saúde, que para si reservou o meio-dia, num Angelus de algarismos desumanos e sem rosto. O poeta Federico Garcia Lorca cantou a morte do matador Ignazio Sánchez Mejías, atravessado pelos cornos de um touro – Eran las cinco en punto de la tarde. Os pandémicos anti-Lorca, em Portugal e no mundo, anunciam os mortos aritméticos e estatísticos – a pasmadas horas certas. Morte infectada, anódina por transmissível.
A história desta humanidade macaca a que pertencemos ensina-nos: nunca morrem mil pessoas, morre um homem, uma mulher de cada vez. Tenho nostalgia dessa morte pessoal, insubstituível e intransmissível. Actéon morreu rasgado e devorado pelos seus cães. O gigante Diómedes, por estranho que pareça, pelas suas éguas carnívoras. Ao glorioso almirante inglês e abominável pirata Francis Drake, comeu-o o mar e os peixes e caranguejos que nele habitam.
Ninguém morre para ser mais um algarismo nas mortes por milhão de habitantes. Edith Piaf tinha 47 anos e alguns séculos de vida, álcool, drogas, insónias e dores, quando morreu, na casa de campo de Grasse. O jovem marido, o pálido Theo Sarapo, actor e cantor, veio a correr de Paris. Theo, na sua delicadeza grega, queria que a morte dessa mulher mais velha, que o apaixonava, tivesse o fausto e a grandeza que a escassa casa de campo não tem. Agarrou no cadáver amado, meteu-o numa ambulância e trouxe-o para Paris. Um médico compreensivo assinou a certidão de óbito e Piaf morreu segunda vez, na Paris onde nascera.
E vejamos o guerrilheiro Ernesto Che Guevara. Ferido, rendeu-se às tropas bolivianas. Não responde aos militares oficiais que o tentam interrogar. Só fala com soldados rasos, o povo, sal da terra. Um oferece-lhe tabaco para o cachimbo. E veio uma professora primária de aldeia dar-lhe de comer. É já a sua morte que ele desenha, porque o Che sabe o que é a morte. Mandou matar uma centena de pessoas em julgamentos revolucionários. Ele mesmo veio assistir aos fuzilamentos. Quando, no dia seguinte, o sargento Mario Terán, de 27 anos, entra no quarto onde está de mãos amarradas, o Che diz-lhe: “Vieste para me matar!” Terán estremece e o Che descansa-o: “Não tenhas medo. Aponta bem. Não vais matar senão um homem.”
Morremos como o sol nasce todas as manhãs, por hábito e para não defraudar a natureza. Às vezes, por delicadeza. O astrónomo dinamarquês Tycho Brahé passou um dia com o imperador Rudolfo, num banquete e a viajar no seu coche real. Não querendo confessar uma certa e prosaica aflição, morreu por retenção da urina que lhe causou o rompimento da bexiga. Eis um alerta para as mais longas reuniões de Conselhos de Ministros ou mais ainda, atendendo à média de idades, do nosso Conselho de Estado.
O risível acidente espreita. No Verão de 1979, um mergulhador explorava o mar da Córsega. Veio um avião Canadair, de combate aos fogos, recolher mais água. Sorve o mergulhador e despeja-o no meio do incêndio na montanha. O homem será encontrado carbonizado, fato de mergulho, tubo e barbatanas.
O cómico horrível da situação rouba a dignidade da morte. Tal como a ladainha histérica dos números, essa aritmética com que se atropela o pensamento, cercando-o com a ameaça e o medo. Cada um de nós quer morrer na sua própria morte, de preferência cantado por Lorca, nessas terríveis cinco de tarde, em que já lutam a pomba e o leopardo.
Publicado no Jornal de Negócios
Pronto, vou repetir, encantam-me estes textos. Gloriosos.
Chocam-me mortes debitadas à mesa a olhar papéis, como parcelas de conta, preços de barras de sabão azul ou frascos de álcool, talvez. Nasceram pessoa e morrem número. Há qualquer coisa de idiota e macabro em quem pergunta quotidiano, “quantos foram hoje”, e eu não sei quantos foram em dia nenhum, mas sei que foram. Que alguém os chore como pertence, os lamente como manda o coração. Um a um. Porque a vida uma que viveram merece morte que a acompanhe.
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Olhe que coisas bonitas aqui disse, Bea, a começar, e agradeço-lhe, o que a mim me diz. Obrigado.
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