
Pode alguém regalar-se com a fragrância da sua própria flatulência? O poeta W.H. Auden, autor do sublime “Funeral Blues”, jurava e somava: “Muitas pessoas deliciam-se com a sua própria caligrafia tanto como se deliciam com o cheiro dos seus peidos.”
É a peculiaridade de cada humano que quero, hoje, louvar. Imaginem que eram três da tarde, cruzavam a Avenida de Berna, em frente à vetusta Gulbenkian, e desaparecia a peculiaridade do ser humano, toda a humanidade espancada por uma igualdade indiferente e atroz. Mesmo o jardim e museu da Gulbenkian se ruborizariam de indignação. É por isso que a verdade de George Orwell é falsa: toda a distopia falece à boca da singularidade. Vejam os velhinhos que arrastam os pés na patética marcha. O que é comovente é que cada um os arrasta à sua maneira.
Nenhum dramaturgo foi mais peculiar do que Samuel Beckett. Amigo de Joyce, amante da filha dele, a peculiaridade de Beckett tinha até o pé boto do anómalo. Um dia, encenavam uma peça – não interessa qual, era uma das suas peculiares criações e tinha reticências. O actor fez no ensaio a paragem que as reticências ditavam. E agora ouçam o escândalo. Um Beckett ultrajado e impetuoso grita ao actor: “Estás a representar e a fazer uma paragem de dois pontos, ora no texto estão três!”
O meu ouvido distingue o passo cansado do vizinho do terceiro andar do passo ofegante do vizinho do segundo, mas o ouvido rútilo de Beckett distinguia mesmo cada um dos três pontos da perplexa reticência.
Julgo que Beckett nunca roçou ombros, para usar a cantabile expressão inglesa, com a jovial, repentista e imprevisível escritora americana Dorothy Parker, expulsa, ainda menina, da escola de freiras por ter, judiciosa, sugerido que o doce mistério da Imaculada Conceição seria, afinal, um fenómeno de “combustão espontânea”. Era uma autora de um tempo corrido a igualitárias máquinas de escrever e eis a peculiaridade de Miss Parker: quando a fita da máquina chegava ao fim, comprava outra – seria uma Remington, uma Olivetti? – por não saber mudar a fita.
E vou dizer do que gostava Percy Shelley, esse ser permissivo e promíscuo a quem sempre deverei a exaltação da sua “Defesa da Poesia”. Talvez por não ter sido ainda inventada a máquina de escrever, Shelley tinha a tonítrua paixão das tempestades. Com uma pérfida peculiaridade. Num arroubo anti-PAN, Shelley, por odiar gatos, respondia a cada descomandada tempestade de relâmpagos e trovões prendendo um gato a um papagaio de papel que lançava, desafiando os céus, e esperando que um raio fulminasse o bichano voador. Insolente e encristado viajou de barco, em Itália, de Pisa para Livorno, desafiando a inclemência de uma tormenta anunciada. Gatos e os deuses de todos os felinos devem ter-se juntado e afundaram-lhe o barco, afogando-o. O mar rejeitou-o, atirando-lhe o ímpio cadáver para a praia. Tinha no bolso um livro do trágico Sófocles, se a “Electra” ou “Édipo Rei” é que não sei.
Ralph Waldo Ellison, que foi engraxador, criado de hotel, porteiro de dentista, mas seria o autor de “O Homem Invisível”, que lhe levou seis anos a escrever, explicou: “Todos os romances são sobre minorias. O individuo é uma minoria.” Ele próprio era uma minoria dentro da minoria negra a que pertencia. Eis porque, raivosa do indivíduo, não pode haver arte soviética ou nazi Já cheguei, entretanto, ao Jardim da Gulbenkian e laguinho, bambus, patos reais, os corpos que se espreguiçam na relva, tudo canta a peculiaridade, o minoritário individuo, essência de toda a arte. Deus seja louvado.
Ámen.
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Também acho.
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Este texto é peculiar… 🙂
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