Quando escrevi o que aqui escrevi sobre Manet e Ticiano, devia ter feito justiça ao modelo inicial, à primeira representação numa tela de larga escala (um metro e oito por um e setenta e cinco) de uma Vénus em total e abençoada nudez. Pintada por Giorgione, pintor que se funde coma Veneza do seu tempo.

Antes de Ticiano (que terá finalizado o quadro por morte de Giorgione), por mais que a mão tape, ou porque tanto a mão tapa, o que esta adormecida Vénus reclama é o nosso olhar. Mesmo que feche os olhos ou, por isso, fecha os olhos.
É Vénus, mas de Veneza, duma cidade rica, católica e insolente. Ainda é Vénus, como poderia ser a Virgem se a Virgem pudesse ser pintada nua. Ainda é Vénus mas já é o corpo de uma mulher. Ticiano, levando-a para o interior da casa, deitando-a no leito conjugal como dama despida, completou essa lavagem do olhar.
Mas sem Veneza, sem a sensualidade e liberdade de Veneza, “cidade das mil e uma noites do catolicismo” como Sollers a chamou, não teríamos aqueles olhos fechados, aquela Vénus adormecida. Madame de Pompadour terá perguntado a Casanova, numa noite de Paris, “Você, vem lá de baixo, não é?”. E Casanova, gentil “Veneza não é lá em baixo, é lá em cima, Madame!”