Hoje, os seguidores, amigos e leitores dos livros e dos autores da Guerra e Paz, têm um belo fim de tarde garantido e uma meia-noite excitante. Comecemos, então, pelo sunset. Ora vejam, às 18:00, na sala da UCCLA, a Sofia Cochat Osório, apresenta o seu livro de estreia na Guerra e Paz editores, O pequeno livro dos grandes heróis.
E quando começarem a bater as badaladas da meia noite, na RTP 2, a poeta Eugénia de Vasconcellos vai emergir do tão bom escuro das letras e das artes e dar início ao primeiro de dos seus 13 programas com o título Mil palavras não fazem uma árvore. Com um convidado de grande renome, o poeta, escrito, ensaísta e académico brasileiro Marco Lucchesi.
Eu, se fosse aos meus amigos, não perderia nenhum destes eventos. Vão ser coisas lindas.
Vem aí um programa de televisão que começa logo por nos sobressaltar com o título: Mil palavras não fazem uma árvore. Eu tenho, é claro, de fazer declaração de interesses: a autora do programa é minha autora na Guerra e Paz editores.
É já na próxima 5.ª feira, na RTP 2, à meia-noite em ponto. A Eugénia de Vasconcellos fará nesse dia a primeira de 13 entrevistas a personalidades ligadas à cultura portuguesa.
Falamos na 5.ª para combinarmos ver juntos.
Não fora um centímetro a mais na largura e seria um enorme quadrado, de 33 por 33 centímetros. Assim, por um centímetro é um livro de 33×34, metamorfose do quadrado em rectângulo. Não fora um poema da portuguesa Eugénia de Vasconcellos e Like a Tree Let the Dead Leaves Drop seria um livro com a pintura da sul-africana Jacqueline Alma, tão marcada pela vivência, enquanto criança, com a proximidade aos animais selvagens da imensa África.
A Pequena Ordem do Meu Mundo, Amigo Demócrito, o poema de Eugénia de Vasconcellos, autora da Guerra e Paz, ocupa oito páginas do livro, metade na versão portuguesa, metade na versão inglesa, traduzida por Margaret Jull Costa, tradutora também de Sophia de Mello Breyner Andresen, de António Lobo Antunes e de José Saramago.
Há, no poema de Eugénia de Vasconcellos uma aceitação da vida de um sereno dramatismo, olhar tão lúcido como céptico para o fluxo dos seres e das coisas, esse rio dos dias em que a poeta e nós habitamos. E cito:
E Eva saí de manhã
vi um lobo na varanda,
dois tigres na estrada:
fazemo-nos domésticos por amor,
fazemo-nos pequenos para seja grande
o que o nosso amor ilumina:
um filho, um homem, uma cidade,
uma ideia, uma obra, uma civilização.
Como a dádiva do Lobo ao Homem,
fê-lo dono, fê-lo amo, fez-se cão.
Ou, em inglês:
And I, Eve, set out early
and saw a wolf in the balcony,
and two tigers in the road:
we make ourselves domestic out of love,
we make ourselves small so that
what our love illuminates can be big:
a child, a man, a city,
na idea , a work of art, a civilization.
Like the gift the Wolf gave to Man,
made him his lord, made him his master, and made himself dog.
Recebi este livro e no livro um poema. Um poema bastaria a Eugénia de Vasconcellos, sobretudo este poema de conversa com o mistério do mundo. Mas não. Eugénia tem também, a “um verso de cada vez”, dois livros maiores publicados na Guerra e Paz editores, O Quotidiano a Secar em Verso e Sete Degraus sempre a Descer. Vem o terceiro a caminho.
Eu já tinha dito, aqui, que Meus Kambas era uma varanda pequenina, com porta para a cozinha, que eu arranjei aqui, na Página Negra. Tenho hoje, a minha segunda visita, a poeta Eugénia de Vasconcellos. Não vem sozinha. Traz Veneza com ela. E bastava que trouxesse o perfume da sua escrita, sofisticada, riquíssima sempre, tão inovadora e desabrida como a de O quotidiano a secar em verso, tão contida e às vezes de um agónico êxtase, como a de Sete degraus sempre a descer, os seus dois últimos livres de poemas, que são da melhor poesia dos últimos anos publicado em Portugal. É um orgulho sentá-la a esta mesa.
UM PASSO AO LADO Eugénia de Vasconcellos
Veneza. Turistas em corrente infinda em grupos de dezenas avançam pelas ruas, as malas de quatro rodas low cost batem nas pedras e degraus. Todo o dia. E tomam conta das pontes e das praças para incontáveis selfies de canal à frente, canal ao lado, no centro do canal, da praça, ao centro da sala do palácio, da torre, da tela, da gôndola. Têm gorros com um enorme pompom e usam ténis. Fazem fila.
Há uma fila de cinquenta japoneses, alguns de máscaras hospitalares, para entrar no Florian.
Um passo lado, do outro lado, se fossem à salinha pequena do Gran Quadri, à esquerda de quem entra, quatro mesas e um balcão, não teriam máscaras, só café moído na hora – a melhor bica da minha vida e isto não é dizer pouco. Forte. Creme espesso. A perfeição das manhãs em chávena pequena.
E os restaurantes venezianos nas ruas de maior trânsito… são chineses. Pizza e pasta intragáveis de gordura pré-cozinhada. Basta olhar para perceber. E os menus com fotografias dos pratos plasmados nos vidros das janelas.
Mas um passo lado. Ruas vazias. Roupa nos estendais. Pombos dormentes. E filas só de copos altos de spritz, ao balcão do fim da tarde, nenhuma outra língua para além do italiano, nem um gorro de pompom maior do que o rabo de um coelho, nem um, as mulheres usam kubankas de raposa ou do que for, Laras Antipovas com Zhivagos a tiracolo ou de serviço, deslizam de saltos altos e casacos compridos de deixar a PETA à beira de um ataque de nervos.
À direita e à esquerda, tudo é belo. Até o estaleiro de gôndolas, acidental e fechado, longas pranchas de madeira amontadas a tomar nevoeiro como se fora sol.
Uma igreja aberta há mais de doze séculos, caída e levantada como nós, pias cheias de água benta, água suficiente para tanto mal, e nem um crente nem um visitante, e mesmo assim um mistério de velas acesas. Um passo ao lado, colado, viveu um alquimista e sobreviveram-lhe as pedras inscritas a claros símbolos enterradas nas paredes amarelas. Vielas estreitíssimas e decadentes. Belas na sombra húmida que nenhuma luz rasga. Pátios inesperados atrás de portões altos. Belos ao céu descoberto do tempo.
Nos edifícios, medalhas a torto e a direito: aqui viveu x, ali escreveu y, ali morreu z. As pessoas passam, as casas ficam. As ruas. Morrer, antes, parecia-me um escândalo, tinha a cabeça formatada em Cesário Verde, ai se eu não morresse nunca e eternamente buscasse a perfeição das coisas. Merda para isso. A eternidade não precisa de mim para nada.
Nem há Bach suficiente para nos salvar por muito que aqui cresça na acústica perfeita das igrejas. A beleza não salva ninguém nem quando os Tintoretto são mais do que os pintores de rua e as gaivotas se passeiam, de asas fechadas, passo a passo, a cabeça altiva, como orgulhosos cães sem dono.
Porém, na casa onde Peggy viveu, ainda está uma Maiastra de Brancusi. Essa ave cujo canto, não há romeno que o não saiba, resgata da escuridão quem a ouça.
Das edições que já fiz na minha lamentável vida de editor, esta é uma das que me é mais querida. Caiu-me nas mãos um livro francês, Le Bordel des Muses, de Claude Le Petit. Foi logo tiro e queda. Mas não era mesmo nada líquido que o livro francês pudesse dar um livro português. Não se publica poesia em Portugal — é praticamente proibido por lei. E ainda menos se publica um francês. Muito menos um francês do século XVII.
A minha sorte e a sorte de Le Petit é que ele foi queimado na fogueira por obscenidade. Ora isso é logo uma carta de nobreza. Pensei que se arranjasse mais uns títulos nobiliárquicos a coisa se podia arranjar. Fui à cata de aristocratas. Primeiro, para lhe dar forma poética em português, descobri a Eugénia de Vasconcellos. É poeta e palpitou-me fortemente que ela era capaz de dar aos arroubos obscenos de Le Petit uma equivalência em língua de Pessoa que fosse irmã humana da poesia francesa. Depois, bati à porta de outro artista, João Cutileiro, e pedi-lhe que reinventasse este Le Petit em desenho. Cutileiro não o ilustrou, preferiu ir descobrir-lhe a gentileza que está sempre por trás da pornografia quando ela é poética.
O que a Eugénia e o João fizeram é tão bonito que me comove. E o tanto que me comoveu e exaltou pode ver-se nos materiais em que este livro está feito, no grafismo, no papel. Não me chegou. Não quis ficar de fora na festa de sentidos que este livro já era. Escrevi um texto, até para dizer quem era este Le Petit que agora, assim, entra na língua e na edição portuguesas. É um aperitivo. Para que leiam, inteirinho, este (tão bonito, não é?) o Bordel das Musas ou as nove donzelas putas, do grande Le Petit.
Para ler inteirinho, um poeta de outro lado a entrar na nossa língua
Claude Le Petit foi queimado vivo no primeiro dia de Setembro de 1662, na Praça de Grève, em Paris. Diga-se: com 23 tenros anos de idade. A fogueira onde ardeu era cartesiana: queimaram-lhe o corpo por causa dos pecados da alma.
Filho de um alfaiate, Le Petit tinha na escrita o seu maior talento. Um talento transbordante, irreverente, físico, carnal. Escreveu desalmadamente, mas as hipóteses de publicação foram escassas e mal pagas. A estudar Direito em Paris, com uma reles bolsa paterna, Le Petit deixou-se seduzir pelos meios e convívio libertinos. Numa França de Luíses, o XIII e o XIV, de poder ferreamente centralizado, o libertino – transgressivo e a roçar-se filosoficamente pelo ateísmo – é um livre-pensador que faz passar a liberdade de espírito pela prova do deboche e dissolução do corpo. É por isso lógico que, para Le Petit, o magnífico corpo humano, falo, cona e cus, juntamente com o tinir das moedas, e sobretudo a ominosa falta de cheta, sejam as obsessões maiores.
Não admira que, sem desmerecer a paixão, tenha escrito por dinheiro. A primeira vez que lhe pagaram foi por um poema. Outro autor, Michel Millot, divertira-se a escrever um diálogo obsceno, L’École des filles ou la philosophie des dames. Pediram a Le Petit que redigisse,como ao tempo era hábito, um elogio ao autor do livro, para a abertura. Le Petit escreveu o madrigal cujo primeiro verso reza «Autor fodido de um livro fodido…» que os leitores desta Página Negra poderão ler se comprarem o livro. Um desentendimento entre editores e tipógrafos pôs o livro nas lavadas mãos das autoridades, que o proscreveram como ímpio, tendo Millot, seu autor, sido condenado à morte na fogueira, de que escapa, fugindo para sempre de Paris. Quase por milagre e por não estar assinado o seu madrigal tão esplendidamente foditivo, Le Petit passou como um anjo por este incidente. Nem foi identificado ou preso, nem se castrou.
De pena pistoleira, pronta para ser alugada, foi então convidado a escrever numa gazeta, La Muse de la Cour,dirigida pelo livreiro Alexandre Lesselin. Era mal pago, mas era pago, e Le Petit, a troco de quatro ou cinco pistolas, edificante nome de uma moeda da época, de 1 de Setembro a 28 de Outubro de 1656, foi o prolífico autor de oito números dessa gazeta. Um sangrento incidente interrompeu a confortável e curtíssima carreira. Le Petit travou forte relação com um jovem frade agostinho. Fosse qual fosse a desconhecida natureza da relação, sobre a qual as crónicas guardam silêncio de santo, houve uma briga de alto lá com ela entre os dois. Le Petit não foi de intrigas. Escondido, esperou que o frade viesse preparar a igreja do convento para as matinas e espetou-lhe uma faca, matando-o como a um cevado. Dormiu ao lado do cadáver na igreja fechada e, quando os frades a vieram abrir de manhã, escapuliu-se sem ser visto. Temendo a investigação policial, o poeta assassino exilou-se. O périplo de exílio começa em Espanha e passa por Itália, pela Boémia, Alemanha, Holanda e Londres. Advertido de que o assunto do defunto frade fora arquivado pela polícia, regressa a Paris. Tinham passado pouco mais de três anos, estava-se em Fevereiro de 1661.
Volta aos meios libertinos, conjugando o amor da carne com a devoção católica, apostólica e romana, e volta à penúria do costume. Ora, toda a gente sabe que é muito chato ser pobre em França. Vendo que a poesia não rendia, consta que Le Petit estaria já na disposição de abandonar a vaidade e as misérias do mundo laico e ir misticamente rezar as vésperas para um convento, tese à qual dá consistência o livro Les plus belles pensées de saint Augustin, que nessa altura se dizia ter escrito. Mas é sabido que, num ora foda-se, o diabo aparece e as tece quando e onde menos se espera. Estava Le Petit em recolhimento, na Abadia de Saint-Germain-des-Prés, e vem desinquietá-lo um tal Chabat com uns mais isto e mais aquilo e que era uma pena que o olvido e a gaveta ou as cinzas sepultassem para todo o sempre a virilidade das satíricas rimas de um livro como O Bordel das Musas. Diz estas verdades todas e tira do bolso cinquenta pistolas – o que a prata e o ouro brilham à luz mortiça de uma igreja! – dizendo publico-to eu.
Le Petit não resistiu. Um ano antes dedicara um soneto a Jacques Chausson, maiúsculo sodomita que a tentativa de violação de um mocinho nobre levara aos acrimoniosos tribunais seiscentistas. Chausson fora condenado à fogueira, na Praça de Grève, local em que a amena população parisiense se reunia para ver assar ateus, ímpios, violadores e mais gente com inclinação para uma desnaturada rebaldaria. O cheiro do episódio chaussoniano e a memória do milagre com que Deus o despendurou da associação ao enforcado Millot deviam ter avisado Le Petit que talvez não fosse avisado forçar a sorte. Mas Le Petit não era capaz de resistir a cinco moedas, quanto mais a cinquenta. E disse que sim ao insidioso Chabat, mandando que se fizesse a priápica e clandestina edição. Em homenagem a Théophile de Viau, luminária da poesia libertina, assinaria, com o pseudónimo de Théophile Le Jeune, este Bordel das Musas, de que agora temos nas mãos os poemas que sobreviveram.
O que tinha de correr mal correu evidentemente mal. Fosse porque Chabat tinha a língua comprida – é o que diz Frédéric Lachèvre, no seu sério e majestoso estudo Les Oeuvres Libertines de Claude Le Petit –, fosse pelas fortuitas circunstâncias que sempre favorecem censores e inquisidores, a obra foi estatelar-se debaixo do olho rigoroso e circunspecto da polícia de costumes parisiense. Poupo-vos a pormenores. Claude Le Petit era o meio mendicante filho de um paupérrimo alfaiate, o que em nada o recomendava – a filha da puta da pobreza nunca salvou ninguém. A arrebatada e túrgida elevação dos seus versos escapava ao racional dos seus censores e só o enterrava mais. Em menos de um fósforo, se assim se pode dizer, a célere justiça francesa condenou Le Petit à fogueira. Deveria, antes, ser-lhe cortada a mão direita pelo punho, julga-se que em alusão à prática da escrita, embora nunca se saiba lá muito bem o que passaria pela grave cabeça de magistrados daqueles.
Assim foi. A 1 de Setembro de 1662, Claude Le Petit ardeu na fogueira. Mas ao arder, já ardeu morto. Por piedade, crê-se, foi-lhe concedido o mimo de ser estrangulado antes.
Cutileiro foi descobrir-lhe a escondida gentileza
O poeta Claude Le Petit integra uma corrente filosófica e literária – os libertinos – cuja tradição tem raízes em Ovídio, ganhando expressão maior em França, no século xvii. Essa corrente teve o seu principal expoente na obra poética de Théophile de Viau.
Estribados num cepticismo epicurista e também, mas não necessariamente, num ateísmo convicto, os libertinos do século XVII francês foram um exemplo de anticonformismo e de erudição, que expressaram em obras satíricas, profanas, de grande liberdade de costumes.
Tudo isso, acrescido de uma virulência extrema, que faz dele um príncipe do obsceno, está na poesia de Le Petit. E, não obstante, os seus versos não se podem reduzir ao estrondo dessa obscenidade. Os versos que escreveu são também interrogação, por vezes escarnecida, sobre a condição humana e a permanente mudança do mundo e das coisas. A escrita de Le Petit, saborosamente erudita, informada por uma vasta cultura clássica e por uma muito política atenção à História e ao século, é uma escrita que combina ironia e sarcasmo, por vezes um toque abjeccionista. Com uma imagética desbordante, os seus poemas são o exemplo do bom uso de uma certa arte da repetição – uma palavra, uma expressão criam um ritmo encantatório –, no que se poderá ver uma herança de Le Viau (e de Villon?).
Já se disse que os libertinos casam epicurismo, materialismo, umas pinceladas de filosófico maquiavelismo, com um ateísmo militante. Mas a repressão violenta, passando pela morte na fogueira, a que alguns membros da corrente foram sujeitos, fez emergir uma duplicidade teatral no movimento. Muitos libertinos assumiram uma máscara pública que os protegesse da iminente violência. Todo o libertino passou a ser um actor. Terá sido assim com Le Petit? Terá o seu catolicismo sido uma máscara pública para ocultar a poderosa afirmação da carne, do sexo, que a sua poesia exibe, caminhando em estado de arrogante erecção sobre a Cristandade?
Se, antes da publicação do seu Bordel das Musas, parecia estar dividido entre o catolicismo e o ideal libertino ao ponto de ter escrito um devoto Les plus belles pensées de saint Augustin, também sabemos que, já conhecendo a sentença que o condenava à fogueira, pediu para falar com o barão de Schildebeck, seu amigo dos tempos de exílio alemão, e lhe disse onde estava escondido o que conseguira salvar de Le Bordel des Muses. Arrancou ao amigo alemão a promessa de que salvaria esse original e o publicaria, o que o alemão cumpriu, publicando-o dois anos depois, em Leyden, na Holanda.
Nessa conversa com o fiel alemão, Le Petit, salvando o seu livro, garantiu a eternidade. Quando, a caminho da fogueira, parou em frente à Igreja de Notre-Dame e, de rojo na imensa praça, fez a oração de arrependimento que o tribunal determinara, quem se arrependia era o católico que de facto havia nele ou a máscara libertina que o século exigia? Mas se era actor, de que maneira é que o actor pode fingir, a não ser deveras sentindo as dores, mesmo as dores católicas, que o actor representa?
As crónicas dizem que avançou com serenidade exemplar para a fogueira que, em plena Praça de Grève, o esperava. Já estava morto quando o queimaram – fogo que ardeu sem que ele o sentisse.
Um dos mais belos pensamentos de Santo Agostinho
Gostava de vos convidar a irem em duas diferentes direcções. Bem sei que vos estou a pedir para se partirem ao meio, mas há momentos na vida em que, se queremos arrebatamento ou mergulhos no mais fundo que de fundo a transcendência tenha, temos de arriscar o corpo para ganharmos a alma.
Peço-vos que deixem metade do vosso corpo ir atrás dos poemas com que Eugénia de Vasconcellos armadilhou um livro a que chamou Sete Degraus sempre a Descer. Descobrirão que, estando em páginas de livros que se fazem em tipografias, a poesia é outra coisa, porque
A poesia não é coisa das páginas dos livros – não se faz na tipografia. Ainda que seja nas páginas dos livros que se fixa depois de a tipografia lhe dar um corpo de papel – é sempre de amor que se faz um corpo, é por amor que um corpo se dá. A poesia é da vida. É de quem tem. A dor é de quem tem. O amor é de quem? A alegria? De quem tem.
E peço-vos que, esse «coração já rico em fogo», deixem que as vossas veias se deslarguem do vosso corpo e corram a ouvir a voz, o rio de palavras, que um grande escritor brasileiro contemporâneo, poeta e romancista, ensaísta e académico, quis generosamente juntar aos poemas de Eugénia. O poeta do outro lado do Atlântico chama-se Marco Lucchesi e da poesia de Sete Degraus sempre a Descer disse:
«Sete Degraus sempre a Descer é um livro de alta poesia. Alta, porque marcada pelo descenso, ensaio de ousadia, pacto de sangue dos happy few. A viagem de Alceste e Orfeu pertinaz, solitária, ao longo de uma incontornável cerimónia de adeus. Como um rito de passagem, a descida de Eugénia coincide com a noite dos sentidos, de Al Berto e João da Cruz, as Moradas de Teresa e o de mundo et partibus de Adélia Prado. Baixar sete degraus, como no Purgatório: eis aqui a génese da transmutação, a travessia da selva escura, enquanto Eugénia espera a iminência da aurora, aunque es de noche.»
E sentimos a suspensão de Lucchesi, respiração travada de quem ganha fôlego, para logo a seguir, um parágrafo à frente, a torrente encantada voltar:
«Eugénia possui uma poesia sísmica, de larga magnitude, mesmo quando parece dizer o contrário, mesmo quando voluntariamente arrefece, no intervalo dos versos, no rumor de fundo que organiza seu canto, ao sabor de uma unidade descontínua, nas ligaduras, que soltam e amarram seus fragmentos, as falhas geológicas, o incessante vulcanismo de lava e lapíli.
Eugénia de Vasconcellos é detentora de uma voz profunda e cristalina, livre e rigorosa, humilde e altiva, filha e mãe das leituras que a atravessam, convocadas pela vida, estratos e camadas de presente, como o mármore de Bernini para Teresa em Santa Maria della Vittoria.»
Por vezes, quando nela há grandeza (que é tentação do abismo) e vida (que é um sereno roçar pela morte), a poesia é física, fusão da palavra, símbolo e metáfora com uma carne exposta, com um corpo inquieto, de insatisfeita satisfação. A poesia de Eugénia de Vasconcellos é essa poesia.