A Feira do Livro da Guerra & Paz

Um vírus desviou-nos da Feira do Livro no Parque Eduardo VII. Nesta altura, a poucos dias do que seria o começo da Feira já estaríamos a esfregar as mãos para ir ao encontro dos livros com que passámos o ano a sonhar. E veio o raio do vírus. E agora?

Não é um vírus que nos vai vencer, a nós editores, aos nossos autores, aos nossos leitores. Tal como muito outros editores, a Guerra e Paz vai a casa dos leitores e leva ao colo os livros dos nossos autores. E começamos até mais cedo a nossa Feira do Livro fazendo-a coincidir com  a comemoração, no próximo dia 22, do Dia do Autor Português. De 20 a 27 de Maio, todas as obras de poetas e romancistas portugueses, os livros de Jorge de Sena, de Agustina, de José Jorge Letria, os poemas de Eugénia de Vasconcellos ou João Moita, os livros de Luís Osório, de Fernando Pessoa, de Eça de Queiroz. São 72 livros a preços que até fazem chorar de emoção os jacarandás que agora invadem o mês de Maio.

A compra mínima é de 10€, mas ao leitor que faça uma compra de 20€ a 29€ oferecemos um exemplar do magnífico Nacional e Transmissível de Eduardo Prado Coelho, livro de texto intimista e de um grafismo apetitoso, nacional e transmissível. E a quem faça uma compra de 30€ ou mais damos a nossa bela edição da Moby Dick, de Herman Melville. Entregamos-lhe os livros em sua casa, portes por nossa conta,e entregamos mesmo muito depressa e em segurança.

Não se esqueça, sexta-feira, no dia 22, às 17:00, está convidado para uma tertúlia. Assista e participe à conversa em directo entre José Jorge Letria, Eugénia de Vasconcellos, Luís Osório e Carlos Taveira, moderada por Manuel S. Fonseca. Uma conversa de amor ao livro, ao romance, à poesia, à maravilhosa vagabundagem da escrita e da nossa língua, a nossa bela língua errante.

Poesia romena

Os trabalhos e os dias de um editor
Manuel S. Fonseca

Vamos sempre parar a casa de quem gostamos. Esta aventura  – fazer uma antologia contemporânea da poesia romena – começou com um telefonema do poeta Dinu Flamand. Publiquei-o antes, depois de um telefonema de António Lobo Antunes, que me o apresentou com generosidade e apaixonada graça. Dine e António são casas de que se gosta e a que apetece voltar.

O Dinu falou-me, então, desse projecto ambicioso do Instituto Cultural Romeno. E eu deixei-me levar pela irresistível voz dele. Publiquei esta monumental Antologia que reúne 27 poetas romenos e gostava muito de a ver em casa de cada um dos leitores da Guerra e Paz. Por estas simples razões:

Por ser um livro lindíssimo, com uma capa que fomos roubar a Brancusi, à sua Mesa do Silêncio.

Por reunir 27 poetas e por estar a poesia romena habitada por uma vitalidade que é rara na literatura contemporânea, com traços da resistência ao comunismo totalitário, com uma ironia amarga que se roça por sonhos selvagens, quase exóticos, sempre autênticos.

Por estar admiravelmente traduzida, num belíssimo português, por Corneliu Popa.

Por ter dois dias – apenas dois dias, como numa sessão de lançamento, para a levar para casa com 50% de desconto.

O Instituto Cultural Romeno – o meu incansável amigo Gelu Savonea – pediu-me que fizesse um vídeo de telemóvel lendo um poema. Não resisti e aventurei-me. Ora vejam.

O erotismo segundo a Pontifícia Universidade de São Tomás de Aquino

O professor Victor Correia é um autor sui generis da Guerra e Paz. Anima-o um amor desinteressado pela literatura a que é impossível um editor resistir. Depois de reunir pequenos e pequeníssimos contos, mais raros e pouco lidos, de autores portugueses no livro Pequenas Histórias dos Grandes Clássicos da Literatura Portuguesa, um livro que merecia ter tido outra recepção crítica e maior adesão dos leitores (isto sou eu a chorar-me, carregadinho de razão), Victor Correia entregou à Guerra e Paz um bestseller, um verdadeiro campeão de vendas e de popularidade.

Estou a falar dos Poemas Eróticos dos Cancioneiros Medievais Galego-Portugueses. A fortuna deste livro começou, logo, no programa Governo Sombra, quando João Miguel Tavares o propôs como livro da semana e cada um dos outros intervenientes, Pedro Mexia, Ricardo Araújo Pereira, Carlos Vaz Marques leu versos ardentes de um dos poemas eróticos. E a verdade é que a fortuna deste livro começa na escolha e na abordagem de Victor Correia. Ele escolheu poemas de autores galegos e portugueses (que nem saberiam se eram galegos ou portugueses) escritos na língua que também não se sabia se era só galega ou se já era também portuguesa, isto para seguirmos o que o mestre Fernando Venâncio nos ensina. Victor Correia frequentou a Pontifícia Universidade de São Tomás de Aquino, em Roma, e logo, lendo este livro, ficamos a pensar nas belas coisas que ali se ensinam, mas não ficou preso a fórmulas canónicas e estritas: é que seleccionou os poemas com critérios académicos, mas depois fez o abençoado sacrilégio de os traduzir para o português contemporâneo, pondo-os ao alcance do leitor comum. Ou seja, deu-lhes vida. O mesmo que, recentemente, o escritor Andrés Trapiello fez em Espanha, “traduzindo” para espanhol contemporâneo o Don Quixote, pondo-o assim ao alcance dos espanhóis que, ao contrário dos portugueses, franceses, ingleses, não podiam ler (e não liam!) o livro no idioma contemporâneo, desistindo muitas vezes perante a barreira do espanhol do século XVII.

Foi o que fez Victor Correia. Fez bem, fez serviço público, como podem ler no excerto que oferecemos. Estes poemas eróticos, a roçar por vezes o escatológico, tratando de casamentos, adultérios, poligamia, incesto, e outras heterodoxias sexuais, são de uma franqueza, de uma candura, diria eu, cristalina, mas não sem ironia e sem um pendor lúdico que nos solidariza com esses humanos que viveram há oito ou nove séculos antes de nós. Eis aqui, na ligação em baixo, a nudez que nos une.

Poemas Eróticos dos Cancioneiros Medievais

2019, balanço poético guerra & paz

Vamos ser injustos. Vamos eleger e beijar mais uns filhos do que outros. Vamos encher de ternura e carinhos os livros que ainda se publicam de poesia. Este ano, por razões tão diferentes, há três edições que me deixam, a mim, o editor da Guerra e Paz, felicíssimo.

Publiquei, logo em Janeiro, Guardados numa Gaveta Imaginária, da autoria de Tchiangui Cruz. Poeta angolana, sensível à tradição poética angolana do século XX, e em particular à poesia de Viriato da Cruz, Tchiangui estreou-se com «pedaços de mim esquecidos num canto escuro», numa poesia que cruza o passado angolano e a contemporaneidade de Lisboa, Luanda, Cabo e Bahia, tudo se convertendo em oração oração para ser rezada na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, igreja de um dos seus versos. Este foi um livro de estreia, feminino, de uma perplexa angolanidade aberta ao mundo.

Em Maio, a Guerra e Paz encontrou-se com um grande poeta, que eu não sei se, como editor, mereço. Falo de João Moita, de quem publiquei Uma Pedra sobre a Boca. Velho e novo livro, reunindo, mas retrabalhando à maneira de Herberto Helder, a seleccionada obra poética anterior, acrescentada de novos poemas. Este é o livro de um ainda jovem poeta, cantor da anti-profecia, como nos avisa: «Poucas vezes mais farei esta viagem.» Porém, encontra-se também nele uma harmonia do mundo e uma aceitação serena dos dias. Basta lê-lo assim: «A erva cresce com o trigo, as flores desabrocham, as árvores segregam resina e dão sombra à terra ressequida. Os campos estão lavrados, o gado pasta ordeiramente, o rio segue amordaçado. Há pássaros invisíveis no horizonte e outros escondidos em ramos longínquos. Feras ocultas em recantos sombrios, a lentidão da seiva sob a descarnação do sol.»

Agora, em Novembro, editada quase em silêncio, fizemos chegar às livrarias uma  Antologia da Poesia Romena Contemporânea, com tradução magnífica de Corneliu Popa.  Reunimos aqui o melhor dos últimos 50 anos da poesia romena, uma poesia que balança entre uma firme vontade de autenticidade, hostil à metáfora, e um frémito nostálgico mais imaginativo do que passadista.

São três livros. Ficaram, tenho de o dizer mesmo que pareça mal, tão bonitos! E eu, se acreditam em mim, gostava muito que os lessem. Bem entendido, sempre que compram um livro ajudam a minha Guerra e Paz, mas não é essa caritativa ajuda ao livro e à poesia em extinção que vos peço. É mesmo o prazer da leitura e o encontro com a suavidade ou a violência do verso que vos recomendo.

Livros Amarelos e um argumento de bolso

amarelos

Dizem-nos que é a única colecção comparativista do mundo. Talvez seja – senão a única pelos menos uma das raras colecções em que, no mesmo livro, se juntam e comparam textos de autores diferentes. Chama-se Os Livros Amarelos. As capas, como podem ver na imagem, são amarelas, e amarelas e pintadas à mão são as faces do miolo. Na capa há um cortante que a rasga obliquamente deixando ver a cor das guardas. O que eu, como editor, vos quero dizer é que os livros, de pequeno formato, têm uma graça ágil, uma beleza serena, quase humilde. Pousam-nos sossegados na palma da mão como pássaro primaveril.

E aqui está o mais importante: são livros para ler. A colecção tem já oito livros e inclui contos, poemas, pequenos ensaios, Walt WhitmanMelvilleMark TwainKiplingOscar WildeJoyce, os portugueses PessoaEçaManuel LaranjeiraJorge de Sena ou textos bíblicos como O Canto dos Cânticos e O Apocalipse.

Em cada livro há dois textos de autores diferentes. Por exemplo, o maravilhoso conto que é A Célebre Rã Saltadora do Condado de Calaveras, de Mark Twain é logo seguido de um conto de Kipling, Rikki-Tikki-Tavi. O que cada Livro Amarelo faz é pôr estes textos a falar uns com os outros, mostrando como esses textos se relacionam ou rejeitam, se amam ou se odeiam, o que fica demonstrado através de ensaio de um autor contemporâneo – por exemplo, os professores Jeronimo Pizarro ou Ricardo Vasconcelos, mas também Helder Guégués e eu mesmoeste editor que vos escreve.

Quando lançámos esta colecção – a que mais elogios nos valeu, sobretudo vindos de professores de literatura de universidades estrangeiras – dissemos que cada Livro Amarelo era um paparazzo: por desvendar as relações comprometedoras e clandestinas que os textos de diferentes autores e de diferentes épocas mantinham sem que o leitor se dê conta.

Já são muitas razões para ter na sua mão não um, mas todos os oito Livros Amarelos:

– são deliciosamente bonitos;

– têm o descaramento de mostrar a literatura a fazer amor;

– são livros amantes carregados de emoções e de humor;

– são os únicos livros de leitura dupla, como disse Jeronimo Pizarro, o que Jorge Luis Borges confirma: lê-se o segundo texto para confirmar e desviar sensivelmente a leitura do primeiro;

– são a prova de vida de textos de diferentes épocas e de diferentes literaturas.

Decidimos que era altura de juntarmos um argumento de bolso às razões para ter e ler, não um, mas todos os livros da colecção: eis que estamos praticamente a oferecê-los.

A sensibilidade não tem preço, mas neste caso, pelo preço de um grande livro (40€ não é?), leva oito pequenos livrosde gigantes da literatura.

Oh que amor tão calado que é o da morte

Bécquer
A 22 de Dezembro de 1870, assistia a atónita Espanha a um total eclipse do sol, morreu Gustavo Adolfo Bécquer. O seu Romantismo tardio fundou a moderna poesia espanhola, mérito que partilha com Rosalia de Castro, poeta galega sua contemporânea. Escreveu: “Oh que amor tão calado que é o da morte! / Que sono o do sepulcro tão tranquilo!”.

As suas “Rimas” são de uma elegância e de um refinamento inultrapassáveis. Como neste curto poema (“La mejor poesia escrita, es la que no se escribe”), esplendidamente irónico e subtil:

Asomaba a sus ojos una lágrima,
y a mi labio una frase de perdón;
habló el orgullo y se enjugó su llanto,
y la frase en mis labios expiró.

Yo voy por un camino, ella por otro;
pero al pensar en nuestro mutuo amor,
yo digo aún: “¿Por qué callé aquel día?”
Y ella dirá: “¿Por qué no lloré yo?

Ou seja, e mal vertido para português

Assomava a seus olhos uma lágrima,
a meus lábios uma frase de perdão;
falou o orgulho e enxugou-se o seu pranto,
e a frase nos meus lábios expirou.

Eu vou por um caminho, ela por outro;
mas ao pensar no nosso mútuo amor,
digo ainda “Por que me calei aquele dia?”
E ela dirá: “Por que não chorei eu?

Um poeta cai ao mar

Cheguei a gostar muito de William Carlos Williams. Nasceu a 17 de Setembro de 1883. Fui reler e tomara que tudo resistisse assim ao tempo:

LANDSCAPE WITH THE FALL OF ICARUS
According to Brueghel
when Icarus fell
it was spring

a farmer was ploughing
his field
the whole pageantry

of the year was
awake tingling
near

the edge of the sea
concerned
with itself

sweating in the sun
that melted
the wings’ wax

unsignificantly
off the coast
there was

a splash quite unnoticed
this was
Icarus drowning

 

Bruerghel
Paisagem com a queda de Ícaro, Brueghel o velho

LIBERTAD! IGUALDAD! FRATERNIDAD!
You sullen pig of a man
you force me into the mud
with your stinking ash-cart!

Brother!
–if we were rich
we’d stick our chests out
and hold our heads high!

It is dreams that have destroyed us.

There is no more pride
in horses or in rein holding.
We sit hunched together brooding
our fate.

Well–
all things turn bitter in the end
whether you choose the right or
the left way
and–
dreams are not a bad thing.

Servidões, Herberto Helder

Texto escrito no dia 15 de Junho de 2013, poucos dias depois da saída deste penúltimo livro de Herberto Helder. A quente. Sem rede.

Servidões

 

Sem­pre houve morte na poe­sia dele, nunca tanta como em “Ser­vi­dões”. Em 10 pági­nas de inclas­si­fi­cá­vel prosa, a que se somam outras 98 com 73 poe­mas, escreve-se um homem e a sua morte.

As dez pági­nas de prosa, esses pas­sos em volta antes da con­vulsa cor­rida dos poe­mas, são insis­tente e desa­fi­a­do­ra­mente auto­bi­o­grá­fi­cas. E, não obs­tante, estão aquém e além da bio­gra­fia. “Ser­vi­dões”, o livro que Her­berto Hel­der publi­cou em Maio de 2013, dois anos antes da sua morte, começa na infân­cia, num relato de perda de ino­cên­cia que nos pre­para para a via-sacra de esta­ções em que o poeta encara, com natu­ra­li­dade, que a morte esteja agora, sobe­rana e apa­ren­te­mente sem pressa, a observá-lo. Morte fera e benigna, farta de saber que a presa não lhe fugirá. Que me lem­bre, só um resig­nado e estóico poema de Lar­kin, “Aubade”, nos tinha dado, da morte, esse tão sereno, certo e seguro olhar. Em Her­berto, como o car­teiro de Lar­kin, um arma­zém espera pelo corpo que há-de che­gar num saco um pouco maior do que o seu tamanho.

Ser­vi­dões” é uma auto­bi­o­gra­fia, se uma auto­bi­o­gra­fia não for des­file de acon­te­ci­men­tos. Auto­bi­o­gra­fia, se uma auto­bi­o­gra­fia puder ser a visu­a­li­za­ção e ver­ba­li­za­ção simul­tâ­nea do mundo e dos pro­ces­sos que um corpo usa para perceber, receber e rea­gir a esse mundo.

Na maior parte da arte con­tem­po­râ­nea o mundo é vazio. Se não o mundo, a repre­sen­ta­ção dele. O mundo da poe­sia – e da prosa – de Her­berto Hel­der é um mundo ple­tó­rico, cheio de ani­mais, medos e ale­grias pri­mi­ti­vas, as gran­des coro­las dos giras­sóis, basal­tos, mêns­truo e espumas.

Povo­a­dís­simo de coi­sas, ani­mais e pes­soas, “Ser­vi­dões”, como a “Poe­sia Toda” de mais de 50 anos que a pre­cede, é o livro de uma escrita à pro­cura da radi­cal ver­dade do humano e, como há muito tempo se dizia, da sua con­di­ção. No poema de aber­tura (ou se pre­fe­ri­rem na prosa de aber­tura) o poeta estende um porco sel­va­gem na mesa da cozi­nha, ani­mal que o poema logo reta­lha a cute­los e faca­lhões. Fecha­mos os olhos – na poe­sia de Her­berto Hel­der fecha­mos mui­tas vezes os olhos – e res­pi­ra­mos, abas das nari­nas bem aber­tas: há um odor a bar­bá­rie, um sau­doso odor a san­gue e bar­bá­rie em que nos reco­nhe­ce­mos e, por voca­ção ani­mal, nos revol­ve­mos. É um cheiro que vem da infân­cia, dessa nossa obs­cura, per­dida e funda infân­cia. Cheiro da cru­el­dade orgâ­nica de um miúdo que, sem nojo, mexe no que da vida é vis­ce­ral. Um cheiro de um entu­si­asmo des­con­tro­lado, o mesmo de uma “cri­ança de cabeça zoo­ló­gica” que des­co­bre a calei­dos­có­pica e ale­a­tó­ria magia.

É ape­nas um livro, pala­vras, a intrin­cada ari­dez da gra­má­tica, que usa explo­si­va­mente a orto­gra­fia que, agora, mangas-de-alpaca jul­gam pertencer-lhes. Só que, como desde “O Amor em Visita”, e como na melhor poe­sia que já se escre­veu, de Vil­lon a Rim­baud, de Rilke a René Char, de Yeats a Dylan Tho­mas, em “Ser­vi­dões”, a riqueza ver­bal, as sur­pre­sas semân­ti­cas, uma certa pro­di­ga­li­dade meta­fó­rica e meto­ní­mica, meta­bo­li­zam as emo­ções, rein­ven­tam e redi­men­si­o­nam o real. A pala­vra carne é mais do que a pala­vra carne e os ver­sos enchem-se de incon­ti­dos cinco litros de san­gue, dez metros de san­gue, de mães lou­cas que nunca dei­xa­ram de habi­tar a obra de Her­berto, de um orva­lho que pre­nun­cia a última manhã. A abe­ce­dá­ria poe­sia assalta o real, confundindo-se e não se con­fun­dindo com ele,.

Enquanto espera a noite, a amarga noite, que há-de vir e há-de des­fa­zer, a memó­ria con­ti­nua a fazer o seu tra­ba­lho e estende-se na cama a sau­dade da pequena puta dei­tada. E as pala­vras de Her­berto, que em pó, poeira, poa­lha ali­te­ram a morte, abrem-se à fêmea oferecendo-lhe outra, dife­rente, bila­bial ali­te­ra­ção: branca, brusca, brava, encar­nada. Só Sena e Drum­mond aflo­ra­ram assim, em abe­ce­dá­ria lín­gua por­tu­guesa, a carne tré­mula, essa carne em que “eu sei quanto depressa morro”.

Nos ver­sos ou na prosa de Her­berto Hel­der cami­nha­mos entre ritos mági­cos e bár­ba­ros. Como se toda a his­tó­ria do humano fosse um poema, “Ser­vi­dões” é o cálice de uma tra­di­ção. Um cálice de sacri­fí­cio san­grento e de êxtase, de uma longa insó­nia de tabu e incesto. Saí­mos de um tor­por antro­po­ló­gico. Os poe­mas de “Ser­vi­dões” con­tam his­tó­rias. Remo­tas e actu­ais. His­tó­rias ances­trais em que as árvo­res devo­ram cadá­ve­res ou a his­tó­ria de um poeta con­tem­po­râ­neo, órfão de Rim­baud, a quem ape­nas sobra a mise­ri­cór­dia de um tiro na cabeça. Há, houve sem­pre, uma África a insinuar-se na poe­sia de Her­berto. Neste seu livro, escuta-se a lenda afro-carnívora, a soli­dão majes­tá­tica do imbon­deiro na inter­mi­ná­vel estepe. Pressente-se o elo­gio de uma certa per­sis­tên­cia vege­tal e, com a escas­sez de um haiku, as folhas de uma welwits­chia escon­dem “no deserto entre as for­na­lhas” uma japo­nesa gota de orvalho.

Ser­vi­dões” é tam­bém um livro à pro­cura da radi­cal ver­dade do poema e do poeta. Poema e poeta sabem que dis­cor­rer sobre o mundo, sobre a sua ordem, é menos do que nomear. Esse conhe­ci­mento con­fere vozes dís­pa­res e ambas se escre­vem neste livro: uma leveza his­trió­nica, uma angús­tia monás­tica. Tal­vez a alma não exista, mas esse obs­curo fré­mito que nos chega a fazer pen­sar que a alma existe, está, menos do que nome­ado, na peque­nina frac­tura ou ferida que separa o gesto cómico do mes­tre Zen que tan­tas vezes é o poema, e a reli­gada e lúcida tor­rente ver­bal, “cor­dão de san­gue à volta do pes­coço”, que sufoca poema, poeta e leitor.

A escrita de Her­berto foi sem­pre devo­ra­dora de tudo, da carne, cama e mundo. Em “Ser­vi­dões” apodera-se dela, por vezes, uma sere­ni­dade romana. Escrevem-se mais deva­gar os poe­mas. Mas as anti­gas explo­sões, a ver­ti­gem ver­bal de “A Máquina Lírica” ou “Antro­po­fa­gias” regres­sam ainda, nuas, cruas, sexu­ais, lumi­no­sas, nos 32 ver­sos que, irmãos huma­nos que depois de mim vive­reis, invo­cam Vil­lon, ou quando, na página 97 e seguin­tes, tomado por uma dor faulk­ne­ri­ana, no mais orgás­tico e xamâ­nico momento deste livro, o poema se entrega a um con­solo de antes o inferno do que nada, para se cer­rar no mais belo post scrip­tum que já se ofe­re­ceu à lín­gua por­tu­guesa: “meu amor, o inferno é o teu corpo foda a foda alcan­çado.

Este é o poeta, o que deva­gar tomou o poema em suas mãos e, dando gra­ças, o repar­tiu dizendo: tomai, e lede todos, fazei isto em memó­ria de mim.