Texto escrito no dia 15 de Junho de 2013, poucos dias depois da saída deste penúltimo livro de Herberto Helder. A quente. Sem rede.
Sempre houve morte na poesia dele, nunca tanta como em “Servidões”. Em 10 páginas de inclassificável prosa, a que se somam outras 98 com 73 poemas, escreve-se um homem e a sua morte.
As dez páginas de prosa, esses passos em volta antes da convulsa corrida dos poemas, são insistente e desafiadoramente autobiográficas. E, não obstante, estão aquém e além da biografia. “Servidões”, o livro que Herberto Helder publicou em Maio de 2013, dois anos antes da sua morte, começa na infância, num relato de perda de inocência que nos prepara para a via-sacra de estações em que o poeta encara, com naturalidade, que a morte esteja agora, soberana e aparentemente sem pressa, a observá-lo. Morte fera e benigna, farta de saber que a presa não lhe fugirá. Que me lembre, só um resignado e estóico poema de Larkin, “Aubade”, nos tinha dado, da morte, esse tão sereno, certo e seguro olhar. Em Herberto, como o carteiro de Larkin, um armazém espera pelo corpo que há-de chegar num saco um pouco maior do que o seu tamanho.
“Servidões” é uma autobiografia, se uma autobiografia não for desfile de acontecimentos. Autobiografia, se uma autobiografia puder ser a visualização e verbalização simultânea do mundo e dos processos que um corpo usa para perceber, receber e reagir a esse mundo.
Na maior parte da arte contemporânea o mundo é vazio. Se não o mundo, a representação dele. O mundo da poesia – e da prosa – de Herberto Helder é um mundo pletórico, cheio de animais, medos e alegrias primitivas, as grandes corolas dos girassóis, basaltos, mênstruo e espumas.
Povoadíssimo de coisas, animais e pessoas, “Servidões”, como a “Poesia Toda” de mais de 50 anos que a precede, é o livro de uma escrita à procura da radical verdade do humano e, como há muito tempo se dizia, da sua condição. No poema de abertura (ou se preferirem na prosa de abertura) o poeta estende um porco selvagem na mesa da cozinha, animal que o poema logo retalha a cutelos e facalhões. Fechamos os olhos – na poesia de Herberto Helder fechamos muitas vezes os olhos – e respiramos, abas das narinas bem abertas: há um odor a barbárie, um saudoso odor a sangue e barbárie em que nos reconhecemos e, por vocação animal, nos revolvemos. É um cheiro que vem da infância, dessa nossa obscura, perdida e funda infância. Cheiro da crueldade orgânica de um miúdo que, sem nojo, mexe no que da vida é visceral. Um cheiro de um entusiasmo descontrolado, o mesmo de uma “criança de cabeça zoológica” que descobre a caleidoscópica e aleatória magia.
É apenas um livro, palavras, a intrincada aridez da gramática, que usa explosivamente a ortografia que, agora, mangas-de-alpaca julgam pertencer-lhes. Só que, como desde “O Amor em Visita”, e como na melhor poesia que já se escreveu, de Villon a Rimbaud, de Rilke a René Char, de Yeats a Dylan Thomas, em “Servidões”, a riqueza verbal, as surpresas semânticas, uma certa prodigalidade metafórica e metonímica, metabolizam as emoções, reinventam e redimensionam o real. A palavra carne é mais do que a palavra carne e os versos enchem-se de incontidos cinco litros de sangue, dez metros de sangue, de mães loucas que nunca deixaram de habitar a obra de Herberto, de um orvalho que prenuncia a última manhã. A abecedária poesia assalta o real, confundindo-se e não se confundindo com ele,.
Enquanto espera a noite, a amarga noite, que há-de vir e há-de desfazer, a memória continua a fazer o seu trabalho e estende-se na cama a saudade da pequena puta deitada. E as palavras de Herberto, que em pó, poeira, poalha aliteram a morte, abrem-se à fêmea oferecendo-lhe outra, diferente, bilabial aliteração: branca, brusca, brava, encarnada. Só Sena e Drummond afloraram assim, em abecedária língua portuguesa, a carne trémula, essa carne em que “eu sei quanto depressa morro”.
Nos versos ou na prosa de Herberto Helder caminhamos entre ritos mágicos e bárbaros. Como se toda a história do humano fosse um poema, “Servidões” é o cálice de uma tradição. Um cálice de sacrifício sangrento e de êxtase, de uma longa insónia de tabu e incesto. Saímos de um torpor antropológico. Os poemas de “Servidões” contam histórias. Remotas e actuais. Histórias ancestrais em que as árvores devoram cadáveres ou a história de um poeta contemporâneo, órfão de Rimbaud, a quem apenas sobra a misericórdia de um tiro na cabeça. Há, houve sempre, uma África a insinuar-se na poesia de Herberto. Neste seu livro, escuta-se a lenda afro-carnívora, a solidão majestática do imbondeiro na interminável estepe. Pressente-se o elogio de uma certa persistência vegetal e, com a escassez de um haiku, as folhas de uma welwitschia escondem “no deserto entre as fornalhas” uma japonesa gota de orvalho.
“Servidões” é também um livro à procura da radical verdade do poema e do poeta. Poema e poeta sabem que discorrer sobre o mundo, sobre a sua ordem, é menos do que nomear. Esse conhecimento confere vozes díspares e ambas se escrevem neste livro: uma leveza histriónica, uma angústia monástica. Talvez a alma não exista, mas esse obscuro frémito que nos chega a fazer pensar que a alma existe, está, menos do que nomeado, na pequenina fractura ou ferida que separa o gesto cómico do mestre Zen que tantas vezes é o poema, e a religada e lúcida torrente verbal, “cordão de sangue à volta do pescoço”, que sufoca poema, poeta e leitor.
A escrita de Herberto foi sempre devoradora de tudo, da carne, cama e mundo. Em “Servidões” apodera-se dela, por vezes, uma serenidade romana. Escrevem-se mais devagar os poemas. Mas as antigas explosões, a vertigem verbal de “A Máquina Lírica” ou “Antropofagias” regressam ainda, nuas, cruas, sexuais, luminosas, nos 32 versos que, irmãos humanos que depois de mim vivereis, invocam Villon, ou quando, na página 97 e seguintes, tomado por uma dor faulkneriana, no mais orgástico e xamânico momento deste livro, o poema se entrega a um consolo de antes o inferno do que nada, para se cerrar no mais belo post scriptum que já se ofereceu à língua portuguesa: “meu amor, o inferno é o teu corpo foda a foda alcançado.”
Este é o poeta, o que devagar tomou o poema em suas mãos e, dando graças, o repartiu dizendo: tomai, e lede todos, fazei isto em memória de mim.
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