Se, depois do que vou dizer, acharem bem, podem ficar com os meus olhos. Não é grande dádiva: já vão durar pouco. Vou dizer-vos como vejo e julgo um jogo de futebol.
Começa um jogo de futebol e os meus olhos transformam-se em dois berlindes lúdicos. Rodam-me nos olhos e só param quando encontram o brinca na areia. No primeiro jogo profissional que vi na vida, em Luanda, Eusébio, Coluna, Simões, Águas e José Augusto bateram a Selecção de Luanda, no Estádio dos Coqueiros, pelos mesmo 5 a 3 com que, meses antes, tinham esmagado o totalitário Real de Madrid. Eu tinha 8 anos e o que menos me interessou foram os golos. As fintas, ua-la-lá, aquele gritado uatabo, que abria as pernas aos defesas e os deixava buelos, eram a minha festa e continuaram a ser até aos 15 anos, a idade em que deixei de me sentar na bancada de madeira do peladíssimo campo de São Paulo, onde ia ver os juvenis e juniores das equipas de Luanda.
Resumo. A primeira vez que vi Adel Taarabt jogar, estava eu de férias, na praia algarvia, e começava, há uns 4 ou 5 anos, sei lá bem, uma nova temporada do SLB. O marroquino esteve meia-dúzia de minutos no campo. O pé dele amaciou a bola com aquele “eu amo-te” que só certos pés, perversos e sexualíssimos, conseguem sussurrar ao esférico. Depois, ao marroquino, apagou-o uma tempestade de areia, tão elegíaca como a que em Bitter Victory, de Nicholas Ray, serve de mortalha a Richard Burton, herói mordido por um escorpião, que um camarada traidor, Curd Jürgens, lhe viu subir pela perna das calças, não o avisando.
A sorte de Adel Taarabt foi que Bruno Lage, seu recente treinador, tem a nobreza de Johnny Guitar, outra personagem de Nick Ray, e está nos antípodas de Jürgens. Lage avisou Taarabt do perigo e Taarabt matou o escorpião.
Deixo-me de sermões e analogias, que se há uma coisa que não sou é profeta, e volto aos meus olhos. Eu quero ver em campo, sempre e só, o pé que toca no esférico e brinca na areia. Se a esse pé se juntar a graça poética ou épica de uma redenção, como a de Taarabt pela mão de Bruno Lage, o meu coração junta-se aos berlindes dos meus olhos e é a orgia perfeita.
Hoje, como na jornada anterior da Liga, Taarabt foi o melhor em campo. Os pés dele, na confiança do drible, no impulso do passe longo e profundo, rimam com o primeiro, o segundo e as centenas de jogos que os meus jovens olhos viram, sem me lembrar de quem os ganhou e por quanto, mas sem jamais me esquecer do pé dúctil que passava bolas descobrindo o buraco de agulha entre as pernas do adversário, ou do pé inteligente que descobria os mais curtos 30 metros até ao pé de quem aparecesse nas costas dos defesas. O marroquino Adel Taarabt tem esses dois pés. Pode omiti-los se quiser, mas quando o amor do jogo o inunda e arrasta, os pés de Taarabt transformam-no num poeta andaluz de hoje, mestre na deambulação, no improviso e na rima. Que bonito.