Foi a primeira Bica Curta de 2020. Dia 1 de Janeiro. No CM
Há Deus e Diabo no nosso futebol. Deixem-me falar só de Deus. Treinadores e jogadores portugueses triunfam por mérito em todo o mundo. Não foi só Mourinho e Ronaldo, ou agora Jesus, novo Pedro Álvares Cabral do Brasil. Vejam Nuno Espírito Santo e a meia-dúzia de jogadores portugueses que fazem do Wolverhampton um caso de admirável competência. Soltos e livres num ambiente de competição justa e saudável, entregues à sua iniciativa e inteligência, Nuno e os seus lobos lusitanos até comem a relva e dão espectáculo. Eis o que é excepcional no futebol português: a formação de jogadores e a nossa escola de treinadores. São gigantes.
Bica Curta servida no CM, 4.ª feira, dia 18 de Setembro
Jesus está com o povo. Falo de Jorge, profeta português que treina o Flamengo e o pôs a jogar como o povão brasileiro gosta, começando por proibir aos jogadores o uso de telemóveis às refeições: só depois da bica curta.
Jesus nunca treinaria o Fluminense, rival carioca, clube dos grão-finos. Há cem anos, o Flu nem jogador negro ou mulato tinha. Diz a lenda que o primeiro que jogou, entrou de rosto pintado de pó-de-arroz. É lenda, mas ainda hoje o Flu, jogadores e claque se chamam a si mesmos pó-de-arroz. Se Pelé jogasse no Flu teria de se maquilhar para jogar? Quanto estúpido preconceito os pés do jogador negro não fintaram já!
Eusébio da Silva Ferreira morreu a 5 de Janeiro de 2014. Fará seis anos, daqui a três meses. Eu é que não consigo esperar e quero já deixar aqui o texto que escrevi mal soube da sua morte. Já o publiquei até num livro. Mas tem de ficar aqui, aconchegado, nesta Página Negra.
Se Eusébio morreu hoje, como dizem as infatigáveis notícias, morreu hoje o que restava dos meus anos 60 e o que restava de Portugal ter sido um império.
E embora morrendo hoje, como dizem as indesmentíveis notícias, as cores do mito – esse belo negro da sua pele, esse vermelho vivo da sua camisola – não deixarão nunca morrer Eusébio. E nem é preciso dizer aqui a palavra Benfica, porque a palavra Eusébio e a palavra Benfica beijam-se, fundem-se, são uma combinação amorosa de que a gramática tem ciúmes.
Eusébio era feito da mesma terra vermelha dos heróis. A força de pernas de um Hércules, veloz como Ulisses, o joelho onde Aquiles tinha o calcanhar. Há romance, mistério e aventura em toda a sua vida. Vejam como, da cidade colonial de Lourenço Marques, o trazem para Lisboa.
Numa noite de trópicos, um jipe leva-o à porta do avião. Clandestino quase. E em Lisboa escondem-no da bruxa má. Tudo porque Eusébio, personificação da bondade, fez o que um filho deve fazer, a vontade à sua mãe. O clube onde jogava queria mandá-lo à experiência para outro clube. Mas a mãe, como todas as mães, decidiu pela vontade do filho: recusar vir à experiência porque, como todos os verdadeiros humildes, Eusébio sabia o que valia.
E o que valia Eusébio? Outros dirão muito melhor do que eu. Eu conto-vos só as minhas perplexidades. Eu nunca conseguia saber se era o seu pé esquerdo, se o seu pé direito que chutava. Porque, em boa verdade, não era ele que chutava. A velocidade rematava por ele. E já estou a mentir ou a enganar-me, porque, em boa verdade, foi com Eusébio que a velocidade aprendeu a jogar à bola. Num tempo em que os carros tinham quatro velocidades, Eusébio já tinha a sexta.
Deixem deliciar-me vergonhosamente no vício das minhas recordações. Estou a vê-lo, em Amsterdão, alinhado com Águas, Coluna, Simões, antes da final com o Real Madrid começar. Está perfilado, a carapinha cortada quase rente, a cabeça redonda de menino, preciosamente desenhada e bonita, a pele negra brilhante, nobre, africana. E era, menino de Moçambique, o melhor jogador português. E eu tenho muito orgulho em que o melhor jogador português seja um africano, raio de um ex-império que nem um deputado negro consegue ter.
Nesse jogo, marcou dois golos, os dois, juram-me, e eu não teria tantas certezas, com o pé direito. Puskas, Gento e o semi-deus que era Di Stefano caíram aos seus pés. Eusébio, herói compassivo, foi ao chão buscar a camisola de Di Stefano. Pediu-lha, a esse semi-deus abatido. Di Stefano deu-lha, consolado por aquele pedido de menino, e Eusébio guardou-a, porque Eusébio é o guardião de todos os símbolos.
Eusébio foi o primeiro futebolista a justificar os 110 metros de comprimento de um campo de futebol. Se não fossem já essas as medidas, o campo teria de ser esticado. Eusébio comia com alegria metros de relva. Eusébio era um bicho dos grandes espaços, uma pantera que queria savana. Foi com ele que o futebol descobriu que a África existia.
Corria em linha recta ou em elipse, fazendo meias-luas, rápidas mudanças de direcção, reinventando a velocidade, baixando-a, subindo-a. Percebia-se assim, finalmente, por que razão um campo de futebol deve ter 75 metros de largura, uma área de 8250 metros quadrados. Corria e nas pernas dele corria a palavra Benfica. Mas também a palavra Portugal.
Foi em 1966, não dou novidade nenhuma a ninguém. Mas vejam outra vez as cores do mito a pintar Eusébio. Houve um sorteio dos números das camisolas. Saiu-lhe o 11, ao pequenino e maravilhoso Simões o 13. Simões queria jogar com o seu habitual 11 e, com a verdade, deu a volta a Eusébio: “Já viste o que é, se jogares com o 13 e fores, como vais ser, o melhor marcador e o melhor jogador do mundo?” E foi, com esse número que devia ser fatídico, com esse número da feiticeira Circe, o melhor marcador, o melhor jogador, o Melhor. As cores do mito, os números do mito, escolhem-no, querem-no como filho dilecto.
Vi o segundo golo dele ao Brasil num filme exibido no cinema Império, em Luanda. Uma obra de arte gigantesca em que potência e explosão se enlaçam. Um golo que ajoelhou o Brasil, esse império romano do futebol. De novo e sempre as cores do mito: com esse golo, aos pés alados de Eusébio, caía Pelé, uma lança espetada no flanco.
No jogo com a Coreia do Norte, Eusébio carregou, como Hércules, o mundo aos ombros. Ainda nem a meio da primeira parte íamos e a Coreia, abalando a ordem do céu e terra, de mares e ares, ganhava por três a zero. Eusébio reconstituiu minuciosamente a ordem do mundo, todo o universo. Agarrou nos destroços e com perseverança juntou as partes. Correu, driblou, foi atingido violentamente, mas triunfou. Quatro golos foram os trabalhos de Eusébio nessa tarde de glória que acabaria, dias depois, nas lágrimas de Wembley, momento mais bonito, mais lírico ou elegíaco do que qualquer vitória. Lágrimas de Eusébio que a camisola de Portugal recolhe e esconde. Nenhum outro gesto, outras lágrimas, poderão ser testemunho de mais amor.
Morreu hoje Eusébio da Silva Ferreira, meu Deus.
Se, depois do que vou dizer, acharem bem, podem ficar com os meus olhos. Não é grande dádiva: já vão durar pouco. Vou dizer-vos como vejo e julgo um jogo de futebol.
Começa um jogo de futebol e os meus olhos transformam-se em dois berlindes lúdicos. Rodam-me nos olhos e só param quando encontram o brinca na areia. No primeiro jogo profissional que vi na vida, em Luanda, Eusébio, Coluna, Simões, Águas e José Augusto bateram a Selecção de Luanda, no Estádio dos Coqueiros, pelos mesmo 5 a 3 com que, meses antes, tinham esmagado o totalitário Real de Madrid. Eu tinha 8 anos e o que menos me interessou foram os golos. As fintas, ua-la-lá, aquele gritado uatabo, que abria as pernas aos defesas e os deixava buelos, eram a minha festa e continuaram a ser até aos 15 anos, a idade em que deixei de me sentar na bancada de madeira do peladíssimo campo de São Paulo, onde ia ver os juvenis e juniores das equipas de Luanda.
Resumo. A primeira vez que vi Adel Taarabt jogar, estava eu de férias, na praia algarvia, e começava, há uns 4 ou 5 anos, sei lá bem, uma nova temporada do SLB. O marroquino esteve meia-dúzia de minutos no campo. O pé dele amaciou a bola com aquele “eu amo-te” que só certos pés, perversos e sexualíssimos, conseguem sussurrar ao esférico. Depois, ao marroquino, apagou-o uma tempestade de areia, tão elegíaca como a que em Bitter Victory, de Nicholas Ray, serve de mortalha a Richard Burton, herói mordido por um escorpião, que um camarada traidor, Curd Jürgens, lhe viu subir pela perna das calças, não o avisando.
A sorte de Adel Taarabt foi que Bruno Lage, seu recente treinador, tem a nobreza de Johnny Guitar, outra personagem de Nick Ray, e está nos antípodas de Jürgens. Lage avisou Taarabt do perigo e Taarabt matou o escorpião.
Deixo-me de sermões e analogias, que se há uma coisa que não sou é profeta, e volto aos meus olhos. Eu quero ver em campo, sempre e só, o pé que toca no esférico e brinca na areia. Se a esse pé se juntar a graça poética ou épica de uma redenção, como a de Taarabt pela mão de Bruno Lage, o meu coração junta-se aos berlindes dos meus olhos e é a orgia perfeita.
Hoje, como na jornada anterior da Liga, Taarabt foi o melhor em campo. Os pés dele, na confiança do drible, no impulso do passe longo e profundo, rimam com o primeiro, o segundo e as centenas de jogos que os meus jovens olhos viram, sem me lembrar de quem os ganhou e por quanto, mas sem jamais me esquecer do pé dúctil que passava bolas descobrindo o buraco de agulha entre as pernas do adversário, ou do pé inteligente que descobria os mais curtos 30 metros até ao pé de quem aparecesse nas costas dos defesas. O marroquino Adel Taarabt tem esses dois pés. Pode omiti-los se quiser, mas quando o amor do jogo o inunda e arrasta, os pés de Taarabt transformam-no num poeta andaluz de hoje, mestre na deambulação, no improviso e na rima. Que bonito.
Ele era a antítese de Marilyn Monroe. E repare-se, nem sequer estou a falar de beleza, mas só da insignificância a que chamamos confiança em si mesmo. A confiança de Carlos Kaiser em si mesmo esgotaria a lotação de qualquer estádio. Mesmo a do Maracanã.
Kaiser e Marilyn tinham em comum o mesmo ardor, amavam incendiadamente o que faziam: ela, o cinema; ele, o futebol. Separava-os um rubicão de talento. Damos o nome de Marilyn a esse sumptuoso revestimento humano pelo qual vadiava a erotíssima personagem que, mal lhe punham uma câmara à frente, florescia e irradiava. Sem a câmara Marilyn era um rio de descrença. Vejam o dia em que o futuro marido, o escritor Arthur Miller, a leva a conhecer a mãe, moradora num estreito T1 de Brooklyn. Marilyn quer agradar, multiplica sorrisos, delicadezas, força-se a ser perfeita, já bebeu um litro de chá. Precisa de ir à casa de banho, separado da sala por um magro tabique. Teme soltar algum ruído impertinente. Abre, por isso, todas as torneiras e faz o que liquidamente tem a fazer. No dia seguinte, Miller telefona à mãe: “Então o que achaste dela?” “É encantadora – diz a mãe – é um anjo. Mas mija como um cavalo!”
Foi a fusão dela com essa câmara amorosa que sentou Marilyn no colo de milhões de cinéfilos, até no meu inquieto colo português. A bola é a câmara do futebol. Entre a bola e os pés, cabeça, cintura, pernas de Pelé, de Maradona, de Eusébio, agora Messi, amanhã João Félix, há uma alquimia comovente: o inteiro estádio vê e soluça, corre uma lágrima de êxtase mesmo no olho do mais empedernido torcedor. Carlos Raposo, nascido em Porto Alegre, não tinha um grão da estranha alquimia dos deuses atrás citados, mas tinha, num arrebatamento de Fernando Pessoa, a ousadia do fingimento.
Não interessa quando Kaiser começou a fingir. Interessa que tinha a estampa e a personalidade de um Beckenbauer, a quem roubou o cognome, e interessa que fingia tão completamente que era futebol a dor que sentia, que o futebol deveras começou a sentir como suas as dores dele.
Explico-me: Carlos Kaiser fez uma divina carreira de futebolista sem nunca ter jogado um único jogo de futebol. Um. Unzinho. Contratou-o o Botagofo, o Bangu, tanto o Fla como o Flu. Mesmo o Vasco da Gama. Ou seja, a elite dos clubes do Rio de Janeiro. Kaiser firmou com cada um destes clubes um contrato de craque. Sempre contratos de curta duração. Chegava, como agora Mattia Perin, já lesionado. Ou com infecção e atestado médico do seu dentista.
Mas tinha o que tinha o Pacheco, se se lembram da personagem do Fradique de Eça. O Pacheco tinha essa calva e pensativa inteligência de quem se senta na primeira fila e nem precisa de abrir a boca. Kaiser alegrava um balneário e exsudava perfume de driblador, um riso que era promessa de assistências e golos que humilhariam o adversário.
Quando o calado Pacheco morreu, Portugal celebrou-o descobrindo atónito que ele nunca fizera nada, o dedo mindinho de um discurso que fosse. O invisível, mas imenso talento de Kaiser estabeleceu uma reputação a que se rendeu o resto do mundo: foi jogador no México, Estados Unidos, em França, até no nosso Louletano. Em lugar algum fez um jogo sequer, mas isso são minudências com que se distraem espíritos mesquinhos e invejosos.
Um dia, no Bangu, o presidente deu, da bancada, ordem ao treinador para o meter. Kaiser, em pânico, vai aquecer. Provoca os espectadores com a sua cabeleira de Marilyn. Chamam-lhe Lili ou coisa assim. Kaiser atira-se a eles. Foi expulso, sem ter entrado em campo.
Já sabia, com uma certeza de menino, que íamos ser campeões. Os minutos que tive de esperar pelo centésimo golo deste campeonato – rotação de cento e oitenta graus de Seferović e bola a casar, metafórica, com a rede –, foi só o sereno e atempado acerto dos ponteiros da realidade universal com o relógio ansioso da minha sonhadora subjectividade. Aliás, num gesto de indigna agiotagem, tentei criar uma bolha: convidei a família e amigos a apostar em quem marcaria o primeiro golo e adiantei logo o nome dos dois pés do goleador suíço.
Mas deixem-me voltar ao menino, à minha certeza de menino, que é de meninos e da certeza dos meninos que quero falar. Wittgenstein já não era menino quando escreveu as notas do livrinho a que se deu por título Über Gewissheit, que dito em português se traduziria por Sobre a Certeza. A filosófica certeza de Wittgenstein está nos antípodas da minha rubra certeza de menino. A certeza de Wittgenstein é céptica e epistemológica. A minha certeza é cândida e de um radioso optimismo. E é, porém, uma certeza behaviorista, decorrente da cristalina sucessão dos factos e dos comportamentos. Já falei do golo do bósnio-herzegovino Seferović. Deixem-me falar do segundo golo. O seu autor, João Félix, tal como o Tolstoi de Guerra e Paz, o Cervantes do Quixote, não sacrificou, nessa jogada, um átomo de estética, de rutilante beleza, a uma pretensa eficácia. Um tecnocrata “chuta já”, um calculista “enfia-lhe um biqueiro”, se algum anjo do mal soprou essas ignomínias ao ouvido juvenil de João Félix, foi como opor um castelinho de areia à intravável liberdade das ondas do mar. O interesseiro óbvio bem pode ulular que João Félix está, a começar pelo seu pé direito, apaixonado pela beleza. O pé direito de Félix puxou a bola como se fosse um jogo de futebol do meu bairro de Luanda, e o defesa… uatobo*… aterrou na relva, buelo* de perplexidade, se me perdoam a redundância luso-angolana. E logo o pé esquerdo, numa fracção einsteiniana, ilude o tempo e o espaço de outro defesa e do guarda-redes, inventando um ângulo alto, limpo, vasto por onde a bola viaja, em luxo, volúpia, clamorosa harmonia e pulcritude. Os dicionários chamam-lhe golo. O povo chama-lhe golaço, fogo, golão.
Mas peço-vos que acreditem em mim. A minha certeza de menino não segue a canónica cronologia. A minha certeza não é de causa a efeito. A minha certeza de que seríamos campeões fundou-se no que sabia que aconteceria e aconteceu: nas lágrimas profusas, adultas, cheias de gratidão e felicidade do camisola 10, Jonas, à espera de entrar, junto à linha lateral. A minha certeza de menino decorre da íntima antecipação da alegria dos abraços, do gigante Jardel a correr aos saltinhos como uma menina de liceu, depois de passar a taça a um companheiro. A minha certeza de menino já sabia que Eliseu voltaria com estilo e banga na sua resplandecente lambreta e que Gabriel havia de segurar no ar o menino que é Rafa, pegando-lhe pelos cueiros e pela inrasgável camisola vermelha.
E peço-vos que acreditem, a minha certeza campeã, a minha certeza de menino nada tem que ver com as vitórias do passado, tem tudo que ver com a certeza das vitórias do futuro. Quando vejo e ouço Bruno Lage vejo outra vez um futebol menino, o futebol do prazer de jogar, o prazer de abraçar o adversário, o prazer de dizer o nome do adversário, o Futebol Clube do Porto, o Sporting Clube de Portugal, com a certeza de que a nossa vitória é inútil se eles não forem também grandes.
Eu sei que as certezas de menino são descartáveis como fraldas sem nome, mas hoje, a acrescentar à velocíssima beleza das pernas de Rafa, à socrática maiêutica com que Samaris aborda a batalha de meio-campo, à generosidade gigante de André Almeida, à forma como a as nossas leis fecham os olhos permitindo a presença em campo de putos de infantário como o Rúben, Ferro, Florentino, Gedson, Félix ou Jota, Bruno Lage deixou cair um pingo de História no título de campeão. Lage convidou-nos a dizer o nome do adversário. É um gesto que faz dele ainda mais campeão. Lage, hoje, engrandeceu o futebol. Restitui-o à sua condição de desporto, um divertimento cuja nobreza radica no fair-play dos seus praticantes.
Eis a minha certeza de menino: já sabia que íamos ser campeões, mas não sabia que, com Bruno Lage, era todo o futebol português que seria campeão com o Sport Lisboa e Benfica.
Foto Paulo Calado, Record, com a devida vénia
* Uatobo – exclamação de gozo; solta-se batendo com a mão na boca; o mesmo que “és parvo!” Buelo – diz-se de quem fica mesmo espantado, de boca aberta.
Bica Curta servida no CM (mesmo ao pé do Estádio da Luaz, na 5ª feira, dia 25 de Abril
O pé direito de João Félix é ainda do século XX: nasceu no fim de 1999. É esse pé, do século de Pelé, Maradona e Eusébio, que faz o génio de Félix. O futebol do século XXI, todo tiki taka, é geométrico e táctico. Menos João, que é um vadio. Lá vai Jesus Cristo, onde estão os discípulos? Também João, peregrino, aparece por milagre onde ninguém o espera. Bebe a bica, multiplica os pães: e é cá cada pão! Mesmo a bola, certinha com os outros jogadores, ao cheirar o pé dele logo se converte, romântica, numa Maria vai com o Félix.
Há um puto vadio no estádio: faz o que gosta, chora, ri e saca tempo para dar beijinhos ao irmão.
Com a devida vénia foto do Evening Standard /Reuters
Eis o que é o VAR: um tira tesão. Como hoje viu quem quis ver um grande jogo de futebol e pôs os olhos no Manchester City contra o Tottenham. Estava 4 a 3 e o City precisava de um golo para assegurar a passagem às meias finais da Champions. E marcou. Os jogadores explodiram de alegria. Encostado à linha lateral, Pep Guardiola, o treinador do City, saiu de si mesmo, arrebatado, como quem acabasse de ver a face de Deus. Correu, saltou, um rosto eléctrico, relâmpago de felicidade. E veio o VAR. E agora veja-se, e só me sai esta analogia de carácter, digamos, sexual. Nem é bem dizer que “ai, ai, ai, tira, tira, tira”. O VAR supõe, e quer forçar-nos a acreditar com pretensão científica, que nunca esteve onde esteve o que já esteve lá dentro. É o anti-clímax, a negação da emoção, uma imposição contra-natura.
Não me azucrinem os ouvidos com a verdade. Um cagagésimo de Aguero estava offside, num instante em que nem o avançado do City, nem os defesas do Tottenham, previam que voltasse a eles a bola que já ia para o meio do campo do City. Aquele cagagésimo de Aguero, o mais esticado dos seus pêlos púbicos, não interferiram verdadeiramente na jogada, cuja verdade, diga-se, é a beleza da coisa, a arquitectada emoção do ressalto e a combinação que se segue – quando Aguero e os defesas adversários reagem já não há o fora de jogo que tecnicamente existiu quando eles estavam fora de acção.
Qual é então a verdade?A verdade do futebol tem de ser igualzinha à verdade da poesia. Que raio de verdade é que há nestes versos, “Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher. / Seus ombros beijarei, a pedra pequena/ do sorriso de um momento”? Ou nestes “April is the cruellest month, breeding / Lilacs out of the dead land”? Uma só verdade: uma danada e inexplicável emoção que resulta da fricção das palavras. A emoção do futebol é a sua fricção. O VAR é uma vaselina a posteriori. Valha-me Deus, não se negue o que, ganha a posição, perna a dobrar outra perna, carne na carne, já esteve lá dentro.