Esta Bica Curta foi servida no CM no dia 8 de Abril, há meia eternidade, portanto
Elogio do pecado
Peço perdão: estou farto de virtude. No Sermão da Montanha, Cristo chamou aos perseguidos e injuriados o sal da terra. Pois eu, que não sou digno de lhe tocar a fímbria do manto, proclamo que o pecado é o sal da vida. O confinamento rói a alegria da rua, o gosto do consumo. Apetece-me ir comprar o kamasutra à livraria do bairro, beber dez bicas curtas no café da esquina, e que venha a Primavera, os jacarandás, as saias curtas das raparigas.
O abominável vírus é moralista até à quinta casa, chato como a potassa. Prende-nos o corpo para nos matar o espírito. Morra o vírus. Que o pecado nos devolva a liberdade do corpo e do espírito.
Por pudor ou liberdade, Herberto Helder diz na capa que são poemas mudados para português. O livro chama-se, uma imagem felicíssima, “O Bebedor Nocturno”. Nele se reunem poemas mexicanos e canções indonésias, enigmas maias e haikus japoneses. Em todos perpassa a língua portuguesa naquela forma única que ganha quando Herberto a escreve ou diz. É um livro que paira num lugar inlocalizável: está acima da cultura, da literatura, da academia, situando-se na nómada curva da alegria.
Volto a lê-lo, em meias-horas de volúpia silenciosa, tão diferente e tão igual ao riso com que, no primeiro ano da década de 70, entre Luanda e a barra do Kwanza, o lia aos gritos na areia a ferver das praias do km 36 ou, Jesus Cristo sobre as ondas, no kayak a deslizar sozinho pelas águas quase rasas dos mangais.
Por exemplo, tão bonito este enigma asteca:
– Uma coisa que vai pelos vales fora, batendo as palmas das mãos como uma mulher que faz tortilhas? – A borboleta voando.
Ou então este haiku:
Libélula vermelha. Tira-lhe as asas: Um pimentão.
Foi o que, corrigindo a natureza, escreveu Kikaku. Mas logo o sábio Bashô lhe corrigiu a correcção:
Era mais fácil falar das pernas de Angie Dickinson, mas vou obrigar-me a só olhar para o cinturão, coldre e colt de John Wayne. Sei do que falo, xerife foi a primeira coisa que fui na vida, revólver à cintura, uma longa cana de mamoeiro a fazer de Winchester. Também fui índio e bandido, mas xerife era a minha devoção, meio John Wayne, meio Buck Jones, insofismável semi atestado da minha caretice infantil.
O cinturão de Wayne, de que não tiro os olhos, atravessa em lento bamboleio o “Rio Bravo”, que Howard Hawks filmou, em 1959, a fechar a década em que um vivíssimo amarelo, mais amarelo do que o “Cristo Amarelo”, de Gauguin, se derramava nos melhores westerns. Amarelíssima era a camisa de Joan Crawford em “Johnny Guitar” e do mesmo glorioso amarelo era a blusa de Feathers, personagem de Angie Dickinson que, em “Rio Bravo”, mostra os negros collants a Wayne.
Mas não é dos collants e das pernas louva-as Deus de Angie Dickinson que venho falar. Se tenho palavras é para o cinturão, coldre e colt que cingem as vastas ancas de Wayne. Foi por causa desse xerife e do sólido andar dele que Hawks fez o filme.
“Rio Bravo” foi a arma de que Hawks puxou para abater Fred Zinnemann, autor do célebre “High Noon”. Medíocre, como quase todos os filmes célebres, pensou Hawks. “High Noon” tinha um xerife, Gary Cooper. Prendera um poderoso facínora e um regimento de fora-da-lei vinha atacar o acossado xerife e resgatar o seu führer ou secretário-geral. Gary Cooper ia, de porta em porta, tentando montar a sua geringonça. Todos lhe viravam as costas, até a branca e radiosa noiva, Grace Kelly.
Ouçam a zanga épica de Hawks: “Um bom xerife não vai pela cidade, como galinha tonta a pedir ajuda a toda a gente para ser salvo no fim pela noiva quaker.” Os heróis de Hawks são profissionais e estão sentados nas suas angústias: Wayne na solidão, Dean Martin na bebida, Walter Brennan na perna coxa, os 18 anos de Ricky Martin num “que-se-lixismo” inocente. Buscam a redenção individual, encontram-na no grupo, salvando a cidade cercada, num filme quase sem grandes planos.
Para xerifes diferentes, filmes diferentes: os planos de “High Noon” estão cheios de significado, os de “Rio Bravo” estão cheios de alegria; os enquadramentos de Zinnemann são a régua e esquadro, os de Hawks são uma festa de cor.
Ah, no Lloyds of London, um milhão de dólares segurava as pernas de Angie Dickinson.
Bica Curta servida no CM (mesmo ao pé do Estádio da Luaz, na 5ª feira, dia 25 de Abril
O pé direito de João Félix é ainda do século XX: nasceu no fim de 1999. É esse pé, do século de Pelé, Maradona e Eusébio, que faz o génio de Félix. O futebol do século XXI, todo tiki taka, é geométrico e táctico. Menos João, que é um vadio. Lá vai Jesus Cristo, onde estão os discípulos? Também João, peregrino, aparece por milagre onde ninguém o espera. Bebe a bica, multiplica os pães: e é cá cada pão! Mesmo a bola, certinha com os outros jogadores, ao cheirar o pé dele logo se converte, romântica, numa Maria vai com o Félix.
Há um puto vadio no estádio: faz o que gosta, chora, ri e saca tempo para dar beijinhos ao irmão.