Por pudor ou liberdade, Herberto Helder diz na capa que são poemas mudados para português. O livro chama-se, uma imagem felicíssima, “O Bebedor Nocturno”. Nele se reunem poemas mexicanos e canções indonésias, enigmas maias e haikus japoneses. Em todos perpassa a língua portuguesa naquela forma única que ganha quando Herberto a escreve ou diz. É um livro que paira num lugar inlocalizável: está acima da cultura, da literatura, da academia, situando-se na nómada curva da alegria.
Volto a lê-lo, em meias-horas de volúpia silenciosa, tão diferente e tão igual ao riso com que, no primeiro ano da década de 70, entre Luanda e a barra do Kwanza, o lia aos gritos na areia a ferver das praias do km 36 ou, Jesus Cristo sobre as ondas, no kayak a deslizar sozinho pelas águas quase rasas dos mangais.
Por exemplo, tão bonito este enigma asteca:
– Uma coisa que vai pelos vales fora, batendo as palmas das mãos como uma
mulher que faz tortilhas?
– A borboleta voando.
Ou então este haiku:
Libélula vermelha.
Tira-lhe as asas:
Um pimentão.
Foi o que, corrigindo a natureza, escreveu Kikaku. Mas logo o sábio Bashô lhe corrigiu a correcção:
Pimentão vermelho.
Põe-lhe umas asas:
Libélula.
E é Busson que, pela mão, põe a minha felicidade de leitor na sua verdadeira casa:
Ah, o passado.
O tempo onde se acumularam
os dias lentos.