As pestanas de Anna

É tão, tão bonita a Anna Karina. E as pestanas? Bem sei, a canção de Aznavour, esse hino à flacidez e desencanto, também ajuda. Muito. Ah, que bom é estufar o amor a beleza e depressão.

O filme, do maravilhoso Godard dos anos 60, chama-se Une Femme Est Une Femme. Ao lado de Anna senta-se Jean-Paul Belmondo, o tipo das moedas para juke-box.

 

Assaltar bancos

B&C

Bica Curta servida no CM , 3.ª feira, dia 13 de Agosto

Há 52 anos, estreou-se “Bonnie e Clyde”, filme com os ainda razoavelmente vivos Faye Dunnaway e Warren Beatty. O filme conta as aventuras de um par amoroso, belo e cruel, que assaltou bancos, nos anos 30, com uma violência, que não há cá bica curta. A lenda fez deles tão heróis e rebeldes como Che Guevara. Ela escrevia poemas suicidários e deixou filmes e fotos que fariam agora furor no Instagram.

Mataram sem piedade, mas tinham um modo de assaltar bancos, que o povo amava e temia: arriscavam o canastro de pistola na mão. O assaltante de hoje é sórdido e de gabinete: morde e branqueia pela calada. É um deslavado burocrata.

Eis o verdadeiro nome de Bruno Lage: campeão

 

bruno
Foto Record, com a devida vénia

Já sabia, com uma certeza de menino, que íamos ser campeões. Os minutos que tive de esperar pelo centésimo golo deste campeonato – rotação de cento e oitenta graus de Seferović e bola a casar, metafórica, com a rede –, foi só o sereno e atempado acerto dos ponteiros da realidade universal com o relógio ansioso da minha sonhadora subjectividade. Aliás, num gesto de indigna agiotagem, tentei criar uma bolha: convidei a família e amigos a apostar em quem marcaria o primeiro golo e adiantei logo o nome dos dois pés do goleador suíço.

Mas deixem-me voltar ao menino, à minha certeza de menino, que é de meninos e da certeza dos meninos que quero falar. Wittgenstein já não era menino quando escreveu as notas do livrinho a que se deu por título Über Gewissheit, que dito em português se traduziria por Sobre a Certeza. A filosófica certeza de Wittgenstein está nos antípodas da minha rubra certeza de menino. A certeza de Wittgenstein é céptica e epistemológica. A minha certeza é cândida e de um radioso optimismo. E é, porém, uma certeza behaviorista, decorrente da cristalina sucessão dos factos e dos comportamentos. Já falei do golo do bósnio-herzegovino Seferović. Deixem-me falar do segundo golo. O seu autor, João Félix, tal como o Tolstoi de Guerra e Paz, o Cervantes do Quixote, não sacrificou, nessa jogada, um átomo de estética, de rutilante beleza, a uma pretensa eficácia. Um tecnocrata “chuta já”, um calculista “enfia-lhe um biqueiro”, se algum anjo do mal soprou essas ignomínias ao ouvido juvenil de João Félix, foi como opor um castelinho de areia à intravável liberdade das ondas do mar. O interesseiro óbvio bem pode ulular que João Félix está, a começar pelo seu pé direito, apaixonado pela beleza. O pé direito de Félix puxou a bola como se fosse um jogo de futebol do meu bairro de Luanda, e o defesa… uatobo*… aterrou na relva, buelo* de perplexidade, se me perdoam a redundância luso-angolana. E logo o pé esquerdo, numa fracção einsteiniana, ilude o tempo e o espaço de outro defesa e do guarda-redes, inventando um ângulo alto, limpo, vasto por onde a bola viaja, em luxo, volúpia, clamorosa harmonia e pulcritude. Os dicionários chamam-lhe golo. O povo chama-lhe golaço, fogo, golão.

 Mas peço-vos que acreditem em mim. A minha certeza de menino não segue a canónica cronologia. A minha certeza não é de causa a efeito. A minha certeza de que seríamos campeões fundou-se no que sabia que aconteceria e aconteceu: nas lágrimas profusas, adultas, cheias de gratidão e felicidade do camisola 10, Jonas, à espera de entrar, junto à linha lateral. A minha certeza de menino decorre da íntima antecipação da alegria dos abraços, do gigante Jardel a correr aos saltinhos como uma menina de liceu, depois de passar a taça a um companheiro. A minha certeza de menino já sabia que Eliseu voltaria com estilo e banga na sua resplandecente lambreta e que Gabriel havia de segurar no ar o menino que é Rafa, pegando-lhe pelos cueiros e pela inrasgável camisola vermelha.

E peço-vos que acreditem, a minha certeza campeã, a minha certeza de menino nada tem que ver com as vitórias do passado, tem tudo que ver com a certeza das vitórias do futuro. Quando vejo e ouço Bruno Lage vejo outra vez um futebol menino, o futebol do prazer de jogar, o prazer de abraçar o adversário, o prazer de dizer o nome do adversário, o Futebol Clube do Porto, o Sporting Clube de Portugal, com a certeza de que a nossa vitória é inútil se eles não forem também grandes.

Eu sei que as certezas de menino são descartáveis como fraldas sem nome, mas hoje, a acrescentar à velocíssima beleza das pernas de Rafa, à socrática maiêutica com que Samaris aborda a batalha de meio-campo, à generosidade gigante de André Almeida, à forma como a as nossas leis fecham os olhos permitindo a presença em campo de putos de infantário como o Rúben, Ferro, Florentino, Gedson, Félix ou Jota, Bruno Lage deixou cair um pingo de História no título de campeão. Lage convidou-nos a dizer o nome do adversário. É um gesto que faz dele ainda mais campeão. Lage, hoje, engrandeceu o futebol. Restitui-o à sua condição de desporto, um divertimento cuja nobreza radica no fair-play dos seus praticantes.

Eis a minha certeza de menino: já sabia que íamos ser campeões, mas não sabia que, com Bruno Lage, era todo o futebol português que seria campeão com o Sport Lisboa e Benfica.

Foto paulo calado record
Foto Paulo Calado, Record, com a devida vénia

* Uatobo – exclamação de gozo; solta-se batendo com a mão na boca; o mesmo que “és parvo!”
Buelo – diz-se de quem fica mesmo espantado, de boca aberta.

Insensatez: músicas negras

toledo e bonfá
Toledo e Bonfá

Há coisas de que gosto com lentidão e espessura. Gosto de Maria Helena Toledo. Um dia, em Nova Ior­que, e espero que o ano de 1963 não me des­minta, ela gra­vou a bonita, mesmo muito bonita can­ção a que Tom Jobim e Vini­cius cha­ma­ram “Insensatez”. Luiz Bonfá, o marido de Maria Toledo, acompanhou-a no vio­lão. E ouçam, o tenor sax que sofre deli­cado a amar-lhe a voz é de Stan Getz. O pró­prio Jobim estava ao piano. Era uma noite de Inverno, nesse mês de Feve­reiro de que já se ouvem os passos, e o calor da sala, espesso, de cheiro a café, um certo fumo, pare­cia Verão.

Infe­liz­mente, o vídeo que encon­trei, perturba-me e confunde-me. Não sei se deixe deslargar-se-me o cora­ção  direitinho aos ouvi­dos para bei­jar a voz de Maria e o sax de Getz ou o deixe ir, ao meu cora­ção, digo eu, roçar-se pela tão insustentável e perdida beleza de Romy Schneider, num rival corpo a corpo com Alain Delon.

E que bonito era o som de Getz e tão transcendente a música brasileira.