Eusé­bio da Silva Fer­reira, meu Deus

Eusébio da Silva Ferreira morreu a 5 de Janeiro de 2014. Fará seis anos, daqui a  três meses. Eu é que não consigo esperar e quero já deixar aqui o texto que escrevi mal soube da sua morte. Já o publiquei até num livro. Mas tem de ficar aqui, aconchegado, nesta Página Negra.

Eusébio

Se Eusé­bio mor­reu hoje, como dizem as infa­ti­gá­veis notí­cias, mor­reu hoje o que res­tava dos meus anos 60 e o que res­tava de Por­tu­gal ter sido um império.

E embora mor­rendo hoje, como dizem as indes­men­tí­veis notí­cias, as cores do mito – esse belo negro da sua pele, esse ver­me­lho vivo da sua cami­sola – não dei­xa­rão nunca mor­rer Eusé­bio. E nem é pre­ciso dizer aqui a pala­vra Ben­fica, por­que a pala­vra Eusé­bio e a pala­vra Ben­fica beijam-se, fundem-se, são uma com­bi­na­ção amo­rosa de que a gra­má­tica tem ciúmes.

Eusé­bio era feito da mesma terra ver­me­lha dos heróis. A força de per­nas de um Hér­cu­les, veloz como Ulis­ses, o joe­lho onde Aqui­les tinha o cal­ca­nhar. Há romance, mis­té­rio e aven­tura em toda a sua vida. Vejam como, da cidade colo­nial de Lou­renço Mar­ques, o tra­zem para Lisboa.

Numa noite de tró­pi­cos, um jipe leva-o à porta do avião. Clan­des­tino quase. E em Lis­boa escondem-no da bruxa má. Tudo por­que Eusé­bio, per­so­ni­fi­ca­ção da bon­dade, fez o que um filho deve fazer, a von­tade à sua mãe. O clube onde jogava que­ria mandá-lo à expe­ri­ên­cia para outro clube. Mas a mãe, como todas as mães, deci­diu pela von­tade do filho: recu­sar vir à expe­ri­ên­cia por­que, como todos os ver­da­dei­ros humil­des, Eusé­bio sabia o que valia.

E o que valia Eusé­bio? Outros dirão muito melhor do que eu. Eu conto-vos só as minhas per­ple­xi­da­des. Eu nunca con­se­guia saber se era o seu pé esquerdo, se o seu pé direito que chu­tava. Por­que, em boa ver­dade, não era ele que chu­tava. A velo­ci­dade rema­tava por ele. E já estou a men­tir ou a enganar-me, por­que, em boa ver­dade, foi com Eusé­bio que a velo­ci­dade apren­deu a jogar à bola. Num tempo em que os car­ros tinham qua­tro velo­ci­da­des, Eusé­bio já tinha a sexta.

Dei­xem deliciar-me ver­go­nho­sa­mente no vício das minhas recor­da­ções. Estou a vê-lo, em Ams­ter­dão, ali­nhado com Águas, Coluna, Simões, antes da final com o Real Madrid come­çar. Está per­fi­lado, a cara­pi­nha cor­tada quase rente, a cabeça redonda de menino, pre­ci­o­sa­mente dese­nhada e bonita, a pele negra bri­lhante, nobre, afri­cana. E era, menino de Moçam­bi­que, o melhor joga­dor por­tu­guês. E eu tenho muito orgu­lho em que o melhor joga­dor por­tu­guês seja um afri­cano, raio de um ex-império que nem um depu­tado negro con­se­gue ter.

Nesse jogo, mar­cou dois golos, os dois, juram-me, e eu não teria tan­tas cer­te­zas, com o pé direito. Pus­kas, Gento e o semi-deus que era Di Ste­fano caí­ram aos seus pés. Eusé­bio, herói com­pas­sivo, foi ao chão bus­car a cami­sola de Di Ste­fano. Pediu-lha, a esse semi-deus aba­tido. Di Ste­fano deu-lha, con­so­lado por aquele pedido de menino, e Eusé­bio guardou-a, por­que Eusé­bio é o guar­dião de todos os símbolos.

Eusé­bio foi o pri­meiro fute­bo­lista a jus­ti­fi­car os 110 metros de com­pri­mento de um campo de fute­bol. Se não fos­sem já essas as medi­das, o campo teria de ser esti­cado. Eusé­bio comia com ale­gria metros de relva. Eusé­bio era um bicho dos gran­des espa­ços, uma pan­tera que que­ria savana. Foi com ele que o fute­bol des­co­briu que a África existia.

Cor­ria em linha recta ou em elipse, fazendo meias-luas, rápi­das mudan­ças de direc­ção, rein­ven­tando a velo­ci­dade, baixando-a, subindo-a. Percebia-se assim, final­mente, por que razão um campo de fute­bol deve ter 75 metros de lar­gura, uma área de 8250 metros qua­dra­dos. Cor­ria e nas per­nas dele cor­ria a pala­vra Ben­fica. Mas tam­bém a pala­vra Portugal.

Foi em 1966, não dou novi­dade nenhuma a nin­guém. Mas vejam outra vez as cores do mito a pin­tar Eusé­bio. Houve um sor­teio dos núme­ros das cami­so­las. Saiu-lhe o 11, ao peque­nino e mara­vi­lhoso Simões o 13. Simões que­ria jogar com o seu habi­tual 11 e, com a ver­dade, deu a volta a Eusé­bio: “Já viste o que é, se joga­res com o 13 e fores, como vais ser, o melhor mar­ca­dor e o melhor joga­dor do mundo?” E foi, com esse número que devia ser fatí­dico, com esse número da fei­ti­ceira Circe, o melhor mar­ca­dor, o melhor joga­dor, o Melhor. As cores do mito, os núme­ros do mito, escolhem-no, querem-no como filho dilecto.

Vi o segundo golo dele ao Bra­sil num filme exi­bido no cinema Impé­rio, em Luanda. Uma obra de arte gigan­tesca em que potên­cia e explo­são se enla­çam. Um golo que ajo­e­lhou o Bra­sil, esse impé­rio romano do fute­bol. De novo e sem­pre as cores do mito: com esse golo, aos pés ala­dos de Eusé­bio, caía Pelé, uma lança espe­tada no flanco.

No jogo com a Coreia do Norte, Eusé­bio car­re­gou, como Hér­cu­les, o mundo aos ombros. Ainda nem a meio da pri­meira parte íamos e a Coreia, aba­lando a ordem do céu e terra, de mares e ares, ganhava por três a zero. Eusé­bio recons­ti­tuiu minu­ci­o­sa­mente a ordem do mundo, todo o uni­verso. Agar­rou nos des­tro­ços e com per­se­ve­rança jun­tou as par­tes. Cor­reu, dri­blou, foi atin­gido vio­len­ta­mente, mas triun­fou. Qua­tro golos foram os tra­ba­lhos de Eusé­bio nessa tarde de gló­ria que aca­ba­ria, dias depois, nas lágri­mas de Wem­bley, momento mais bonito, mais lírico ou ele­gíaco do que qual­quer vitó­ria. Lágri­mas de Eusé­bio que a cami­sola de Por­tu­gal reco­lhe e esconde. Nenhum outro gesto, outras lágri­mas, pode­rão ser tes­te­mu­nho de mais amor.

Mor­reu hoje Eusé­bio da Silva Fer­reira, meu Deus.

Eusebio
Eusébio tem capela cá em casa

 

Adel Taarabt

taarabtLUSA

Se, depois do que vou dizer, acharem bem, podem ficar com os meus olhos. Não é grande dádiva: já vão durar pouco. Vou dizer-vos como vejo e julgo um jogo de futebol.

Começa um jogo de futebol e os meus olhos transformam-se em dois berlindes lúdicos. Rodam-me nos olhos e só param quando encontram o brinca na areia. No primeiro jogo profissional que vi na vida, em Luanda, Eusébio, Coluna, Simões, Águas e José Augusto bateram a Selecção de Luanda, no Estádio dos Coqueiros, pelos mesmo 5 a 3 com que, meses antes, tinham esmagado o totalitário Real de Madrid. Eu tinha 8 anos e o que menos me interessou foram os golos. As fintas, ua-la-lá, aquele gritado uatabo, que abria as pernas aos defesas e os deixava buelos, eram a minha festa e continuaram a ser até aos 15 anos, a idade em que deixei de me sentar na bancada de madeira do peladíssimo campo de São Paulo, onde ia ver os juvenis e juniores das equipas de Luanda.

Resumo. A primeira vez que vi Adel Taarabt jogar, estava eu de férias, na praia algarvia, e começava, há uns 4 ou 5 anos, sei lá bem, uma nova temporada do SLB. O marroquino esteve meia-dúzia de minutos no campo. O pé dele amaciou a bola com aquele “eu amo-te” que só certos pés, perversos e sexualíssimos, conseguem sussurrar ao esférico. Depois, ao marroquino, apagou-o uma tempestade de areia, tão elegíaca como a que em Bitter Victory, de Nicholas Ray, serve de mortalha a Richard Burton, herói mordido por um escorpião, que um camarada traidor, Curd Jürgens, lhe viu subir pela perna das calças, não o avisando.

A sorte de Adel Taarabt foi que Bruno Lage, seu recente treinador, tem a nobreza de Johnny Guitar, outra personagem de Nick Ray, e está nos antípodas de Jürgens. Lage avisou Taarabt do perigo e Taarabt matou o escorpião.

Deixo-me de sermões e analogias, que se há uma coisa que não sou é profeta, e volto aos meus olhos. Eu quero ver em campo, sempre e só, o pé que toca no esférico e brinca na areia. Se a esse pé se juntar a graça poética ou épica de uma redenção, como a de Taarabt pela mão de Bruno Lage, o meu coração junta-se aos berlindes dos meus olhos e é a orgia perfeita.

Hoje, como na jornada anterior da Liga, Taarabt foi o melhor em campo. Os pés dele, na confiança do drible, no impulso do passe longo e profundo, rimam com o primeiro, o segundo e as centenas de jogos que os meus jovens olhos viram, sem me lembrar de quem os ganhou e por quanto, mas sem jamais me esquecer do pé dúctil que passava bolas descobrindo o buraco de agulha entre as pernas do adversário, ou do pé inteligente que descobria os mais curtos 30 metros até ao pé de quem aparecesse nas costas dos defesas. O marroquino Adel Taarabt tem esses dois pés. Pode omiti-los se quiser, mas quando o amor do jogo o inunda e arrasta, os pés de Taarabt transformam-no num poeta andaluz de hoje, mestre na deambulação, no improviso e na rima. Que bonito.

A multidão que canta

Crónica escrita há uns anos. Talvez dois. Eram anos Mitroglou. Embora, em boa verdade, os anos que sempre contam sejam os anos de Eusébio da Silva Ferreira.

Eusebio_

O pé esquerdo de Eusébio é a mão direita com que escrevo esta crónica. Escrevo à mão, aparo da caneta a raspar o papel, como o pé de Eusébio a aflorar, veloz manso e forte, a relva. Escrevo ao vivo como o pé de Eusébio chutava no paraíso que é, ao vivo, um jogo de futebol. É desse estádio cheio, da multidão que ulula, da multidão que venera, da multidão que canta, que eu hoje quero falar. Falar o quê?! Falar coisa nenhuma, deixem-me é incensar o prazer da multidão que canta.

Não há prazer comparável. Dizem-me que há multidões azuis e verdes. Mas a minha multidão é religiosa: vai à Catedral e, entre Céu e Terra, fica ali cantando como quem reza, vestida de vermelho.

Já ouço o político e o académico que rosnam o seu temor à multidão. A multidão é má. A multidão atropela-se. Imaginem a multidão no Louvre: as mil bocas da sua respiração embaciam os quadros, os mais gigantones tapam a vista da Mona Lisa aos mais baixinhos. A multidão de museu é uma multidão que faz de cada um o anão de si mesmo.

No estádio… quero dizer, na Catedral, a multidão é gloriosa. Canta toda para o mesmo lado, é toda da mesma altura, o que faz com que cada um veja com os olhos de todos. Quando Eusébio marcava um golo, ou agora Jonas ou Mitroglou, a multidão é rasgada pelo mesmo frémito estético. Não é igual à beleza superficial das montras da Avenida da Liberdade, é mais como a beleza feiticeira e sanguínea de Macbeth, como o sentimento épico dos primeiros versos de Os Lusíadas. E, de resignada e incorrespondida paixão, a multidão estremece quando os caprichos dos deuses fazem a bola embater com estrondo no poste da baliza adversária.

A desfraldada multidão vermelha da Catedral é carinhosa. A primeira vez que levei a minha filha a ver o SLB, tinha ela 6 anos. Baptismo na Catedral. Acontecesse o que acontecesse no relvado, a minha filha não parava de gritar. Expliquei-lhe: “Filha, só gritas quando a bola estiver nos pés dos nossos rapazes vermelhos, e só depois de passarem aquela linha de meio-campo, ao aproximarem-se da linha da área adversária.”

Era muita linha e a minha filha ficou confusa. A bola já estava nos pés de João Vieira Pinto, menino de ouro da minha filha, e ela perguntou: “Pai, posso começar a gritar?” A multidão virou para mim um olhar crítico e regalou a minha filha com um sorriso protector. Eram velhos benfiquistas com anos de estádio, com doutoramento de multidão, e disseram num clamor: “Amigo, não seja ditador, deixe gritar a miúda! Grita, princesa, grita sem medo.” Foi a mais bela censura da minha vida: o coração chorava-me de alegria a cada vermelho grito da minha filha.

Este não é o calcanhar de Aquiles

vitoriatoque

Com a devida vénia à amada e venerada BTV,  roubei a imagem que nos deixa ver um centésimo do que, de facto, se passou no Estádio da Luz, no clássico Benfica versus FCP. Houve uma disputa e um corte que fez sair a bola, em balão, pela linha lateral. Rui Vitória, esse treinador tão contestado como Aquiles o foi nas duras batalhas de Tróia, viu o esférico vir pelo ar, deu um passo atrás e rodou, como o compacto e bailarino Gene Kelly rodaria, e tocou a redondinha, devolvendo-a ao relvado, com uma chulipa, um golpe de calcanhar como eu só vi no campo pelado de São Paulo, em Luanda, lá bem perto da igreja capuchinha de São Domingos, ou nos campos traseiros do Liceu Salvador Correia, em jogos nos quais o resultado era sumptuário e o que verdadeiramente movia corações e mentes era o perfume tropical do gesto hábil e da finta circense dos meus irmãos caluandas. Uatobo, uatobuéee, meu irmão.

E perdoem-me se, falando de futebol, falando do jogo, o comparei à guerra de Tróia. Fui criado na ideia de que este é o jogo por excelência, combinação de ética e de estética. Nada o aproxima da guerra, e muito menos da cruel guerra de Tróia, como aliás bem se viu: o admirável calcanhar de Rui Vitória não tem a debilidade do calcanhar de Aquiles.