Meus kambas: Pedro Bidarra

Já disse duas vezes, aqui e aqui, que Meus Kambas é uma varanda pequenina com porta para a cozinha, onde recebo os amigos. Não é fácil sentar o Pedro Bidarra nessa varanda, como não é fácil sentar o Pedro Bidarra em lugar nenhum. Ninguém em seu perfeito juízo tenta sentar o Pedro Bidarra, porque ele é energia instável, movimento em estado puro, insentável. Nem a escrita dele, imitando-o, se senta, inquieta, em busca, como sabem todos os que o leram, no Escrever é Triste ou no romance (e não seria, por indefinível transumância de géneros, uma novela?) que dele publiquei, Rolando Teixo de seu título, emergentes ramos e raízes escondidas no seu conteúdo. Leiam agora este texto que ele me mandou, excerto de uma narrativa mais vasta em gestação.

cisne
Leda e o Cisne, Paolo Veronese

Os deuses em trânsito
Pedro Bidarra

7.

Os deuses e as deusas, que na persecução dos seus enredos divinos tomam corpos mortais e neles habitam enquanto e como querem, para seu gozo e prazer, no fim abandonam-nos cruelmente, deixando-lhes apenas memórias do tempo em que aquela carne foi tocada pelo divino.

       Sobre o cisne que Zeus encarnou para comer a Leda nada mais se soube depois de consumado o acto e do rei dos deuses se ter posto a andar de volta ao Olimpo. Podemos apenas especular que terá retomado a sua existência meramente aviária, grasnando estonteado atrás do bando pelos jardins e lagos do palácio do rei Tíndaro, tentando contar-lhes os quinze minutes, se tanto, de êxtase e glória; da sorte que lhe havia calhado quando, ao fugir de uma águia, caiu nos braços da Leda toda nua; e como depois foi só comê-la, estando ela, como estava, pronta e desconsolada pela negligência do consorte — quiçá motivada pelos sempre prementes assuntos do estado ou, talvez, pelas putas. Terá o desacreditado cisne levado o resto da vida a contar aos outros que era pai da Helena e dos Dioscuros? Por ventura. É claro que nenhum cisne, no seu bom senso aviário, terá crido em tão inverosímil narrativa; muito menos a companheira que, com toda a certeza, o terá para sempre olhado como o gabiru e ido fazer ninho com outro, talvez um cisne preto, para sublinhar a negrito o despeito e a vingança. Se foi assim que as coisas se passaram — o que terá uma probabilidade, no mínimo, tão grande quanto um cisne ter comido a Leda — só podemos especular.

       E o que dizer do caso que envolve Anquises, Afrodite e uma anónima e princesa virgem que Afrodite encarnou para seduzir o bonito apascentador de cavalos? Sobre a princesa encarnada, e depois de consumada a união com Anquises, pouca história reza. Houve um parto, isso é certo, e a deusa, também é certo, ter-se-á desinteressado do assunto como é mister dos divinos. À pobre princesa terá restado um corpo com estrias, um ventre proeminente do alargamento que a gravidez sempre provoca, mamas descaídas e maltratadas pelas mordidas do bebé Eneias e tudo um pouco flácido; corpo que Anquises terá trocado, a fazer fé em hábitos que são de hoje e de sempre, por outras mais novas e frescas conquistas; até ser fulminado por um raio de Zeus, quando resolveu dar-se ares e, mesmo avisado, se pôs a contar o assunto à rapaziada: “Vocês sabem lá, eu comi uma deusa.” Quem não contaria? Ficou manco, o desbocado, rezam os mitos.

       Afrodite é a mais cruel de todos e todas. Hoje habita a Beatriz, como outrora habitou a Madalena e a Patrícia. As artes da Beatriz são as mesmas artes, os mesmos truques hipnotizantes com que a Patrícia e a Madalena outrora me derreteram. Mas olhe-se a Madalena de hoje e veja-se toda a crueldade de Afrodite; encarna um corpo por uns tempos, uns anos na melhor das hipóteses, dá-lhe inelutáveis poderes de sedução, uma presença etérea, uma aura principesca, a capacidade de caminhar quase sem tocar o chão, uma autoconfiança que resulta da inconsciência da efemeridade, e depois farta-se, desencarna e resulta a velha Madalena. Como, a seu tempo, resultará a velha Beatriz. No caso da Madalena, como em tantos outros que todos tão bem conhecemos, os corpos abandonados pela deusa são por fim tomados por Harpias estridentes que debicam a paciência das vítimas até à cirrose, ao AVC, ao cancro ou à loucura. Mas até lá, enquanto Afrodite as habita, não há como resistir-lhes.

       A Beatriz estava no meio das mulheres. Mais uma vez, sentindo a minha presença, virou a cabeça sobre o ombro e olhou-me como a Kalipigos. Depois virou-se e avançou na minha direcção, sorridente, fresca, muito bela, sem tocar com as sandálias no chão, deixando atrás de si a entourage alcoviteira a mirar-me dos pés à cabeça. Senti-me pegar fogo. Ainda sim, e pela primeira vez, consegui articular uma palavra na sua presença:

       — Olá — disse.

       — Olá tio.

       O cumprimento escorreu como balde de água fria lançado sobre o fogo que acabara de atear. Mas um homem feito não foge; fica posto e aguenta a humilhação. Sorri o meu mais jovial sorriso.

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Leda e o cisne, François Boucher

Este não é o calcanhar de Aquiles

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Com a devida vénia à amada e venerada BTV,  roubei a imagem que nos deixa ver um centésimo do que, de facto, se passou no Estádio da Luz, no clássico Benfica versus FCP. Houve uma disputa e um corte que fez sair a bola, em balão, pela linha lateral. Rui Vitória, esse treinador tão contestado como Aquiles o foi nas duras batalhas de Tróia, viu o esférico vir pelo ar, deu um passo atrás e rodou, como o compacto e bailarino Gene Kelly rodaria, e tocou a redondinha, devolvendo-a ao relvado, com uma chulipa, um golpe de calcanhar como eu só vi no campo pelado de São Paulo, em Luanda, lá bem perto da igreja capuchinha de São Domingos, ou nos campos traseiros do Liceu Salvador Correia, em jogos nos quais o resultado era sumptuário e o que verdadeiramente movia corações e mentes era o perfume tropical do gesto hábil e da finta circense dos meus irmãos caluandas. Uatobo, uatobuéee, meu irmão.

E perdoem-me se, falando de futebol, falando do jogo, o comparei à guerra de Tróia. Fui criado na ideia de que este é o jogo por excelência, combinação de ética e de estética. Nada o aproxima da guerra, e muito menos da cruel guerra de Tróia, como aliás bem se viu: o admirável calcanhar de Rui Vitória não tem a debilidade do calcanhar de Aquiles.