Crónica escrita há uns anos. Talvez dois. Eram anos Mitroglou. Embora, em boa verdade, os anos que sempre contam sejam os anos de Eusébio da Silva Ferreira.
O pé esquerdo de Eusébio é a mão direita com que escrevo esta crónica. Escrevo à mão, aparo da caneta a raspar o papel, como o pé de Eusébio a aflorar, veloz manso e forte, a relva. Escrevo ao vivo como o pé de Eusébio chutava no paraíso que é, ao vivo, um jogo de futebol. É desse estádio cheio, da multidão que ulula, da multidão que venera, da multidão que canta, que eu hoje quero falar. Falar o quê?! Falar coisa nenhuma, deixem-me é incensar o prazer da multidão que canta.
Não há prazer comparável. Dizem-me que há multidões azuis e verdes. Mas a minha multidão é religiosa: vai à Catedral e, entre Céu e Terra, fica ali cantando como quem reza, vestida de vermelho.
Já ouço o político e o académico que rosnam o seu temor à multidão. A multidão é má. A multidão atropela-se. Imaginem a multidão no Louvre: as mil bocas da sua respiração embaciam os quadros, os mais gigantones tapam a vista da Mona Lisa aos mais baixinhos. A multidão de museu é uma multidão que faz de cada um o anão de si mesmo.
No estádio… quero dizer, na Catedral, a multidão é gloriosa. Canta toda para o mesmo lado, é toda da mesma altura, o que faz com que cada um veja com os olhos de todos. Quando Eusébio marcava um golo, ou agora Jonas ou Mitroglou, a multidão é rasgada pelo mesmo frémito estético. Não é igual à beleza superficial das montras da Avenida da Liberdade, é mais como a beleza feiticeira e sanguínea de Macbeth, como o sentimento épico dos primeiros versos de Os Lusíadas. E, de resignada e incorrespondida paixão, a multidão estremece quando os caprichos dos deuses fazem a bola embater com estrondo no poste da baliza adversária.
A desfraldada multidão vermelha da Catedral é carinhosa. A primeira vez que levei a minha filha a ver o SLB, tinha ela 6 anos. Baptismo na Catedral. Acontecesse o que acontecesse no relvado, a minha filha não parava de gritar. Expliquei-lhe: “Filha, só gritas quando a bola estiver nos pés dos nossos rapazes vermelhos, e só depois de passarem aquela linha de meio-campo, ao aproximarem-se da linha da área adversária.”
Era muita linha e a minha filha ficou confusa. A bola já estava nos pés de João Vieira Pinto, menino de ouro da minha filha, e ela perguntou: “Pai, posso começar a gritar?” A multidão virou para mim um olhar crítico e regalou a minha filha com um sorriso protector. Eram velhos benfiquistas com anos de estádio, com doutoramento de multidão, e disseram num clamor: “Amigo, não seja ditador, deixe gritar a miúda! Grita, princesa, grita sem medo.” Foi a mais bela censura da minha vida: o coração chorava-me de alegria a cada vermelho grito da minha filha.