Cuidado com o açúcar

atwood

Bica Curta servida no CM, 5.ª feira, dia 14 de Novembro

Gosto da bica sem açúcar. Se por um velho automatismo deito açúcar na chávena, o café passa a mistela e é intragável. É ao que me sabe, quando nela tropeço, a paternal condescendência. Tenho ouvido homens a tecer públicos louvores açucarados à “mulher”. A “mulher” é, dizem, muito mais inteligente e verdadeira do que o homem e de uma sensibilidade, ui, meu Deus!

E há mulheres que aplaudem a demagogia. Não deviam: nenhum dos sexos é melhor do que o outro. Foi o que jurou a escritora Margaret Atwood: “As mulheres não são anjos sem defeitos, nem dizem sempre a verdade.” Falando do #MeToo, disse Atwood: “Surpresa, às vezes mentem.”

Call center

central phone

“Olá, fala a Marta…” A frase foi popular, mas só a repito porque –  fez em Setembro 141 anos — aconteceu uma pequena revolução. O Boston Telephon Dispatch, sob a asa do senhor Bell, que, ouvi dizer, é um discutível inventor do telefone, foi o primeiro operador a criar uma central telefónica. Eram rapazes que se ocupavam de tudo, do telégrafo e dos telefones. Mas se no telégrafo eram ágeis e imbatíveis, ao telefone mostravam-se irritadiços, sempre prontos a praguejar, já para não falar na tentação de mandar para o Bujumbura quem só queria ir até Luanda.

Tocou uma campainha na cabeça do senhor Bell e ele revolucionou: entrevistou e contratou Emma Nutt, fazendo dela a primeira telefonista do mundo. A voz de Emma, suave,  a sua paciência, uma prodigiosa memória que lhe permitia saber de cor todos os números do directório de Boston, ditaram o futuro: o triunfo das telefonistas, a maravilhosa associação do telefone à voz feminina. O telefone é uma mulher: é por isso que é fácil falar com ele, dar-lhe beijinhos, prometer-lhe ternuras e, claro, mentir-lhe com um bocadinho de vergonha.

Homem na Lua

Neil-Armstrong

 

Eu devia ter publicado este post no dia em que se comemoraram os 50 anos da ida do homem à Lua. Mas a história tem um final meio amargo e não quis estragar o enlevo a ninguém. Vai agora, que os festejos já passaram.

Quando Neil Armstrong pisou pela primeira vez a lua, além da famosa frase “one small step for a man, one giant leap for mankind”, o astronauta acrescentou, quase em surdina, como se falasse só para o vizinho do lado: “Good luck, Mr. Gorsky!

E estava mesmo a falar com o vizinho. Quando era miúdo, Neil ouvira Mr. Gorsky implorar à senhora Gorsky um estranho favor que a senhora rejeitou, sem apelo, com um “sexo oral? queres? só quando o miúdo aqui do lado for à lua”.

Seria glorioso, se a história tivesse acabado aqui. Mas era boa de mais para ser verdadeira. Vivi anos na crença sólida de que a história era verdadeira e que Armstrong a contara num encontro com jornalistas em Tampa Bay. Mas descobre, depois, que tudo fora magnificamente forjado, com pormenores de conferência de imprensa, datas, nomes de vizinhos e afins, por “net con-artists”, ou seja, e em razoável português, por “manipuladores da rede”. Odiei saber a verdade. Já não volto, nunca mais, a olhar para a lua com a mesma sonhadora ternura.

 

O VAR

Guardiola
Com a devida vénia foto do Evening Standard /Reuters

Eis o que é o VAR: um tira tesão. Como hoje viu quem quis ver um grande jogo de futebol e pôs os olhos no Manchester City contra o Tottenham. Estava 4 a 3 e o City precisava de um golo para assegurar a passagem às meias finais da Champions. E marcou. Os jogadores explodiram de alegria. Encostado à linha lateral, Pep Guardiola, o treinador do City, saiu de si mesmo, arrebatado, como quem acabasse de ver a face de Deus. Correu, saltou, um rosto eléctrico, relâmpago de felicidade. E veio o VAR. E agora veja-se, e só me sai esta analogia de carácter, digamos, sexual. Nem é bem dizer que “ai, ai, ai, tira, tira, tira”. O VAR supõe, e quer forçar-nos a acreditar com pretensão científica, que  nunca esteve onde esteve o que já esteve lá dentro. É o anti-clímax, a negação da emoção, uma imposição contra-natura. 

Não me azucrinem os ouvidos com a verdade. Um cagagésimo de Aguero estava offside, num instante em que nem o avançado do City, nem os defesas do Tottenham, previam que voltasse a eles a bola que já ia para o meio do campo do City. Aquele cagagésimo de Aguero, o mais esticado dos seus pêlos púbicos, não interferiram verdadeiramente na jogada, cuja verdade, diga-se, é a beleza da coisa, a arquitectada emoção do ressalto e a combinação que se segue – quando Aguero e os defesas adversários reagem já não há o fora de jogo que tecnicamente existiu quando eles estavam fora de acção.

Qual é então a verdade?A verdade do futebol tem de ser igualzinha à verdade da poesia. Que raio de verdade é que há nestes versos, “Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher. / Seus ombros beijarei, a pedra pequena/ do sorriso de um momento”? Ou nestes “April is the cruellest month, breeding / Lilacs out of the dead land”? Uma só verdade: uma danada e inexplicável emoção que resulta da fricção das palavras. A emoção do futebol é a sua fricção. O VAR é uma vaselina a posteriori. Valha-me Deus, não se negue o que, ganha a posição, perna a dobrar outra perna, carne na carne,  já esteve lá dentro.

 

A nova burca

 

burka

O dedinho espetado é coisa que me chateia. Mesmo a segurar a bica curta. Mas vá um pobre de Cristo por onde vá, hoje há dedos espetados por todo o lado. Dedos acusadores esburacam a vida pessoal, o foro íntimo. Usando a “justiça social” como burca, os novos fundamentalistas primeiro reprimem, depois oprimem. O slogan “tudo é político” voltou em modo histérico e infesta o ambiente, a cama, a paisagem étnica.

Tudo é unilateralmente político e se alguém questiona os temas militantes, uma chusma de dedos culpabilizantes arrasa o recalcitrante, arrastando-o pelas amargas ruas da intolerância. A verdade já viveu melhores dias.

Bica Curta publicada no CM em 14 de Março

Meus Kambas: António Eça de Queiroz

O António Eça de Queiroz, meu amigo, e grande, não me cabe nesta varanda em que se entra pela porta da cozinha. Esta varanda é um lugar informal, de kambas, mas é tão estreito que o António tem de pôr uma perna para trás das costas, se quiser entrar, sentar-se e tomar um café. Quando eu imaginariamente o conheci, nessa vasta Angola que então buscava o futuro glorioso de quem se liberta das algemas, o António podia esticar as pernas e abrir os braços, correr pela savana e mandar sinais de fumo. Era tão grande que só nos conhecemos cá, na apertada distância com que se tenta separar Lisboa e Porto. E é como se nos conhecêssemos há um século. É tudo mentira e é tudo verdade, como ele, abaixo nos explica.

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Heurística para mentirosos
António Eça de Queiroz

Definição básica desta belíssima palavra que provém do grego antigo εὑρίσκω (tal como o hēúrēka do excelente Arquimedes), roubada sem dó nem piedade algures na net: «heurística pode ser considerada um “atalho mental” do pensamento humano, que o usa para atingir resultados em assuntos complicadas de forma rápida e fácil».

Tem um pequeno senão: nem sempre funciona, ou funciona apenas em parte.

Conheci esta palavra há umas décadas através da informática, mas fui mantendo no arquivo da minha ignorância a ideia de que era matéria exclusiva desse território específico (tal como “override”, “array”, ou outra qualquer terminologia dos manuais desta ciência e respectivas aplicações).

No entretanto, os alvores da sociedade da informação global, mais acirrados pelo surdo batuque do Tempo, permitiram-me com a disponibilidade dos seus vários “motores de busca” a descoberta de que a palavra “heurística” tinha raízes anteriores e bem menos decifradas no sentido mais “humano” do termo – que foi muito publicitado no fim da 2ª Guerra Mundial pelo matemático Húngaro George Pólya, no seu pequeno mas denso estudo intitulado “A arte de resolver problemas”.

Reconheço como perfeitamente legítima a apropriação do vocábulo pela informática, já que (tal como na “investigação operacional”) esta lhe atribui no seu mapa interior a nobre função de simplificar procedimentos – o que no mínimo agiliza a programação e poupa memória.

Espanta-me apenas a sua pouca divulgação como mecanismo decisivo no comportamento humano, que, na generalidade, ultrapassa (ou dispensa mesmo…) o que é meramente racional. E foi por isso que decidi formular uma breve conjectura sobre heurística elementar (ou para diletantes) tendo por base a exclamação interior, silenciosa mas imperial, que relampeja pelas sinapses de cada um de nós num qualquer momento que entendemos como perigoso, crítico ou apenas urgente: “Eu acho que!…”, com a afirmação a transformar-se em acto mais ou menos imediato.

Só posso utilizar exemplos simples – e, em boa verdade, já um pouco desactualizados pelo tumulto bisbilhoteiro que os telemóveis provocaram na Humanidade. Os manuais dizem que ela (a quase secreta mas sempre elegante heurística) é inconsciente ou consciente; mas eu, que sou chato como a potassa, acho que é sempre e apenas subconsciente – embora com dois padrões visivelmente distintos (mas claro que aqui não estou a falar de assuntos demasiado complexos, que podem demorar a resolver de forma consciente, mas tão só dos que exigem solução instantânea ou perto disso…):

– Heurística instintiva: por norma quase uma acção reflexa, semelhante ao movimento de auto-defesa que faremos inevitavelmente quando nos apercebemos que algo nos vai atingir – seja uma pedra, um murro, ou qualquer outra ameaça física do momento; no entanto, e igualmente no domínio defensivo mas não elementarmente (ou exclusivamente) físico, a heurística instintiva é o mecanismo mais utilizado pelas pessoas que não sabem elaborar uma mentira eficaz e necessitam dela (da mentira) com urgência…

Cada um com as suas necessidades, e a seu tempo.

– Heurística intuitiva: apesar da informação disponível ser bastante incompleta, somos circunstancialmente obrigados a agir com rapidez; há padrões disponíveis, gostos pessoais, memórias de outros, legendas dos dias, comportamentos anteriores com a sua credibilidade solidificada, mas…, o facto é que, no final das pesagens todas feitas à pressa, “eu acho que”… E esse “achar que” passa a ser a lei dominante, inexorável, rumo à vitória ou ao desastre total!… (ou nem tanto, já que nem tudo na vida será tão dramático ou exigente, nem nós somos todos políticos profissionais aperreados na nossa própria demagogia, valham-nos os deuses mais meigos).

Do ponto de vista mais racional, a heurística intuitiva parece a mais fiável – mas sei que devo a vida a alguns movimentos de puro instinto (afinal à outra heurística mais primária e, supostamente, mais tosca, mais pobre). Faz parte dos esquemas mais fundos do raciocínio, do comportamento e do próprio conhecimento. Mas saber que a matéria existe, que é assunto de estudos vários, serve para alguma coisa?

Talvez não ou talvez sim.

Em informática tem a validade do prazo, e não há “hacker” digno desse nome que não saiba o que é; já na vida comum tudo depende apenas daquilo que cada um de nós, num determinado momento e numa situação específica, “achar” que sim ou que não. Sobre o que a análise heurística pode desvendar de um discurso, narrativa, ou mera afirmação voluntarista, ou mesmo de um acto puro e duro, isso será sempre óptima matéria para ensaios e ficções da filosofia da linguagem. Mas quase tenho a certeza de que aquela que eu caracterizo de “instintiva” é a que melhor cor e ritmo dá ao provérbio transnacional, velho e experiente de séculos, onde se reza que “é mais fácil apanhar um mentiroso que um coxo” (sim, em várias línguas ou outros formatos, o provérbio é sempre o mesmo).

Tome-se como exemplo uma situação extrema de classicismo elementar pré-telemóvel: um marido é acordado bruscamente pela mulher que o questiona porque chegou tão tarde a casa; ele, o marido estremunhado e ainda enevoado pelos eflúvios da noite, reconhecendo-se apanhado em falta, responde instintivamente: “Estive a jantar com um amigo, o Manuel, lembras-te dele?… e ele, enfim…, olha! embebedámo-nos a recordar velhos tempos…”

Resposta pronta da mulher: essa tem piada…, o Manuel ligou para cá às 21h30, que precisava muito de falar contigo – que estava em Lisboa mas que hoje estará cá…

Podemos dizer sem medo: fraca heurística!

Outra situação, mas exactamente o mesmo contexto: o marido diz que tinha assistido a um acidente violento (que realmente viu de passagem), e mais diz que teve de ajudar, e que depois foi à polícia dar o nome como testemunha, e que depois, três horas mais tarde, se ofereceu para levar um dos condutores, que “miraculosamente não se ferira”, a casa, e que pelo caminho tinham parado num restaurante, e… pronto!

Como se vê, na mentira intuitiva o actor supriu-se automaticamente de vários níveis de evasivas. Ou seja não é desmentido imediatamente pelos factos como acontece na mentira instintiva.

E isto tudo só para falar de maridos mentirosos – para as mulheres penso que seria necessário um compêndio (nada de juízos apresados: ocuparia mais espaço porque elas são muito mais imaginativas e inteligentes do que o homem, toda a gente sabe disso).

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