As duas metades de um corpo

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Quem cantou o Sexo Todo Poderoso foi Edna St. Vincent Millay. Cantou-o em verso e em público, na cama e fora da cama. A mãe dela, Cora, despachou um pai impertinente e, sozinha, criou Edna e as irmãs com hinos à natureza humana. Com a franqueza e sinceridade que nenhum ministro das finanças, nem mesmo o nosso heróico Centeno, há-de ter, Cora disse isto um dia: “Sou uma slut e criei as minhas filhas para serem umas sluts.” Ora bem, a semântica do português não faz justiça à gíria americana: slut está entre puta e vadia, termos moralizantes e depreciativos, que não honram o livre gosto do impreconceituoso amor desta mãe e filha, Cora e Edna, no começo do século XX, há cem anos.

Poeta amadíssima, como é raro acontecer a poetas, e logo mulheres, Edna era pequena, linda, duas destacadas colinas ao peito, um cabelo púrpura, e deslizava pelo mel do amor como hoje os louros adolescentes surfam as águas da Nazaré, em vertigem e a bater records. Dou um exemplo: Edmund Wilson, escritor, viril divulgador de Faulkner e Hemingway, de Rimbaud e T.S.Eliot, já tinha 25 anos e só uma ejaculação a ler um livro, o que o assustara e levara a consultar o médico, quando perdeu com ela a virgindade, assim descobrindo o esplendor e luz perpétua do sexo, do qual se tornou mais fanático do que eu pelo meu glorioso SLB.

 Edna deu a provar à língua de Wilson o delicado óbolo, logo lhe mostrando da moeda as duas faces. O escritor descobriu que, deitando-se com ele, Edna não deixava de se deitar com quem queria, em particular com o seu melhor amigo, outro poeta, John Peale Bishop, colega de universidade em Princeton, como ele soldado na I Grande Guerra. Terá havido estupefacção, como se chamava à surpresa em 1914, choro e ranger de dentes. Prefiro trazer aos meus leitores um momento de lânguida ternura.

Edna decidiu viajar para a Europa e despediu-se dos dois amados, a quem chamava “os meus meninos do coro do Inferno”. Com aquele mórbido gosto que todo o Casanova tem na ruptura, despediu-se deles no quarto. Deitou-se nos braços dos dois, oferecendo a Bishop o seu corpo da cintura para cima, a Wilson da cintura para baixo, pedindo que lhe prodigalizassem firmes gentilezas e a doce gota da cortesia, cada um devendo provar que tinha ficado com a melhor parte. Eis o que me parece ser um programa para um mundo melhor, pelo qual merecem erguer-se estandartes e sonhar amanhãs que cantam.

 Num dos seus mais belos poemas, Edna cantou essa amorosa dissolução: “Que lábios meus lábios beijaram, e onde, e porquê, / Já não sei, nem que braços repousaram / Sob a minha cabeça até amanhecer…” Procurava amantes muito jovens, cuidando que não se encontrassem à sua porta e rifando-os depois com magnanimidade. Chamava-lhes “frescos destroços de naufrágio” quando vinham uivar à sua janela. Muito gostando, para o resto da vida, de Wilson e de Bishop, sempres lhes reprovou que, por ela, não tivessem espatifado a sua amizade masculina.

Casou com um industrial holandês de café que amou e a amava com uma liberalidade que faz espécie a este nosso tempo de assexuada vigilância raivosa. Outro poeta, George Dillon, mais novo 14 anos, foi a sua última aventura. Traduziram juntos As Flores do Mal, de Baudelaire. Não invento, foi Edna que escreveu: beijar a boca de Dillon era tão macio como beijar o mamilo de uma rapariga. Mas Dillon fez o que só Edna podia fazer: rejeitou-a. Antes dos 40, Edna via desvanecer-se o seu prodigioso poder erótico. Nos últimos 20 anos de vida, morfina, álcool e drogas vieram dormir à sua cama.

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Publicado na minha coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

Jorge de Sena, minha guerra, minha paz

Ontem, a Cinemateca Portuguesa convidou-me para falar de Jorge de Sena, na sessão de inauguração do ciclo de cinema comemorativo do centenário de Jorge de Sena. Por ter sido eu, em 1987, o organizador de um livrinho, Jorge de Sena e o Cinema, que reunia os textos que o autor escreveu sobre filmes. Este ciclo da Cinemateca cruza-se com outro ciclo, o da comemoração do centenário de Sophia de Mello Breyner Andresen. Sena e Sofia tinham uma electiva afinidade e trocaram uma correspondência brilhante, lindíssima, reunida num livro de que eu sou o editor. É uma das mais belas correspondências da literatura portuguesa. Gosto muito das outras correspondências de sena que publiquei, com Gaspar Simões, Delfim Santos, Raul Leal e Eugénio de Andrade, mas há um lirismo, uma veemência, uma poética na Correspondência Sena-Sophia que, aposto, as letras portuguesas não voltarão a repetir. E agora o texto da minha intervenção, ontem, na Cinemateca. 

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Um dia, num dos seus textos, Jorge de Sena comparou a esmagadora e secular grandeza das sequóias com a risível aparência do arbusto a que chamamos pilriteiro. Pois bem, eu hoje, aqui, a falar-vos nesta sessão, sinto-me um pilriteiro. E fui ver se o daninho arbusto tinha outros nomes e tem. Chamam-lhe cambrulheiro, combroeiro, escalheiro, estrapoeiro. Nenhum destes nomes é muito motivador ou digno. Só me resta, na minha condição de pilriteiro ou estrapoeiro, pedir-vos desculpa. Vamos todos esquecer o arbusto e pôr os olhos na sequóia.

Agradeço ao Eng. José Manuel Costa, director da Cinemateca, e à Cinemateca, o convite que me dirigiu para eu estar presente nesta homenagem a Jorge de Sena. Quero dizer a Isabel de Sena que é uma honra partilhar este momento e que foi um prazer ter já editado três livros com ela, na sua condição de guardiã da obra do poeta, romancista e ensaísta. Toca-me também estar ao lado de Gastão Cruz, cuja Teoria da Fala marcou poeticamente o final da minha adolescência, isto para não falar da leitura obsessiva, em 73, dos textos da Poesia Portuguesa Hoje, seu pequeno livro de ensaios. E saúdo a Antónia Fonseca, se bem sei relações públicas da Cinemateca, que faz o favor de formar comigo um casal heterossexual, por razões que adiante se verão.

Em 1984 ou 1985, já não sei bem, João Bénard da Costa pespegou-me com uma catrefa de caixotes contendo uns bons milhares de páginas dactilografadas, se é que alguém aqui ainda sabe o que é uma página dactilografada. Vinham com agrafos, alguns já ferrugentos, e estavam riscadas a lápis azul e lápis vermelho da censura, com muitas notas manuscritas. Era o acervo do JUBA, Jardim Universitário de Belas Artes, uma organização que promovia um evento, as terças-feiras clássicas, nas quais uma personalidade da cultura portuguesa falava sobre um filme de qualidade.

A ordem era que eu tirasse daquele imbróglio um conjunto de publicações que permitissem às gerações futuras saber que e como a intelectualidade dos anos 50 se relacionou com o cinema. Estavam ali textos de Vitorino Nemésio, Delfim Santos, Vieira de Almeida entre outros.

Confesso, eu só tive olhos para a sequóia chamada Jorge de Sena. Os textos dele constituíam um corpo literário, crítico e teórico coerente, imagem da sua cinefilia, mas também um quadro comparativo, tão ao gosto de Sena, da relação daqueles filmes com o seu tempo social e político e com as outras artes, a literatura e o teatro, umas vezes as artes desse tempo, na maior parte das vezes recorrendo a ousados paralelos com as grandes figuras de um passado que nem poderia adivinhar que existiria cinema, de Caldéron a Shakespeare.

E lá fui eu, com a minha arrogância de pilriteiro, dizer a João Bénard o que ele queria ouvir: devíamos publicar os textos por autores e o primeiro livro tinha de ser o desse pasmoso e inenarrável Jorge de Sena. O João Bénard levantou-me ao colo, deu-me o nihil obstat e mandou-me falar a quem de direito, à sequóia mãe, Mécia de Sena.

Uns dias depois, para resumirmos e acelerarmos, eu estava a bater à porta do 939 Randolph Road, Santa Barbara California 93111-1031 USA. A porta abriu-se e eu logo pus um pé na casinha japonesa, como costumo dizer tantos eram os vidros, paredes e janela a abrirem-se para o exterior, na bela sala forrada a livros e discos onde vivera Jorge de Sena.

E descobri uma mulher prodigiosa, um dragão a defender o seu castelo, uma torrencial vontade de conversar, um conhecimento avassalador do meio literário português, capaz de falar de tudo isso na sua cozinha americana e armar um jantar para 10 pessoas, enquanto divagava de Óscar Lopes a Eduardo Lourenço, de um ciclo de cinema de Taiwan a uma ópera de Verdi.

 A Dona Mécia de Sena devo muita coisa, ter-me levado pela mão a fazer este livro com os textos de cinema de Sena, ter-me instado a escrever a notinha que o antecede, e ter-me proposto outros livros de Sena que depois publiquei.

Mas deixem que recorde com ternura, ao meu estilo pilriteiro, o piquenique que ela e Maria de Lurdes Belchior me prepararam e que com elas partilhei numa das missões espanholas que pontuam a estrada de Santa Barbara a São Francisco. Quem comeu na América um piquenique com ovos verdes e bolinhos de bacalhau?

E agora tenho de entrar por caminhos mais confessionais. A minha entusiástica escolha dos textos de Jorge de Sena para o meu primeiro livro das terças feiras clássicas tinha um perigoso antecedente. No meu périplo seniano há um episódio erótico que, por fim, desvelo.

A 10 de Junho de 1977, Jorge de Sena fez um discurso na Guarda. No seu estilo arrebatado defendeu a imagem de um Camões de amor e tolerância, um Camões que, “tão orgulhosamente português, entenderia todas as independências se fosse em vida o nosso contemporâneo como ele o é na obra que nos legou”, para glória máxima da língua que falamos.

Jorge de Sena lançava ao vento estas palavras e ouviam-nas os meus ouvidos e ouviam-nas os ouvidos da Antónia Fonseca. E ali estávamos os dois, num apartamento da Costa da Caparica, olhos semicerrados ao mar de Junho, cada vez mais de mão na mão, a contar dedos de duas mãos, e a dar dez, ainda longe desse poema de Sena em que há um dedo a mais.

Já levamos 42 anos de evidências, metamorfoses e exorcismos. Como Sena também podemos dizer, Conheço o sal que resta em minha mãos, / como nas praias o perfume fica / quando a maré desceu e se retrai.

Como editor, que nunca esperei ser, nem nesse dia 10 de Junho, de Sena publiquei inéditos, correspondências, poesia, conto e novela, um total de oito livros, já três com Isabel de Sena.

E a imagem da sequóia não me sai da cabeça. Sena é uma floresta de sequóias. A sua poesia é grande na poesia portuguesa. Poesia discursiva, poesia de ideias, poesia que se combina com outras artes; poesia que nunca abdicando da inteligência não deixa de ser lírica, pungente e emotiva.

A sua ficção, e em particular Os Sinais de Fogo, tem um fulgor narrativo raro, e uma linguagem que nos lava do sarro e ceroulas de tanta prosa portuguesa.

Sena escreveu sobre Marx, Maquiavel, sobre Rimbaud, Cavafy , Rilke e escreveu até uma admirável história da literatura inglesa. Mas é quando escreve sobre a literatura portuguesa, sobre Camilo ou Fialho, Eça ou Garrett, que percebemos a sequóia que tanto hoje aqui evoquei.

Nesses ensaios, os Estudos de Literatura Portuguesa, reunidos em três volumes, o brilhante comparativista que ele é, tira os nossos escritores do nosso gulag literário e obriga-nos a compará-los com Balzacs e Flauberts, com Dickens ou Pushkins, Keats ou Leopardis, cruzando o nosso tempo com o tempo social, tecnológico, económico e político das Franças ou das Américas, das Rússias ou das Espanhas, das Inglaterras ou das Alemanhas, por mais que essa comparação nos encandeie, nos cegue ou nos deslumbre.

Esses seus ensaios, em particular o soberbo Uma Canção de Camões, recriaram Camões, libertando-o, para indignação de muitos, de um eruditismo bacoco e de um nacionalismo serôdio. E recriaram ainda Fernando Pessoa, dando-lhe nos dois volumes de Fernando Pessoa e Companhia Heterónima, o dispositivo conceptual e interpretativo que põe Pessoa na história da literatura mundial.

Este é o Jorge de Sena para que levanto os olhos. É uma sequóia, mas não nos deve assustar. Devemos é sentar-nos, viver, amar, ler e adormecermos encostados ao seu vasto tronco. Eu acho que era isso exactamente o que Mécia de Sena me quis dizer quando me ofereceu o piquenique nas missões espanholas de El Camino Real.

Ou a literatura, os livros, os poemas, contos e romances nos entram pela vida e pelo corpo dentro ou não são sequóias. Jorge de Sena defendeu e louvou as conexões com a cultura, com a história, com a linguagem. Com a vida também e mais do que nenhuma outra, que é da vida que colhemos uma alegria imensa.

Ou como ele disse neste poema, provavelmente dedicado à Isabel:

Às vezes, com minha filha no chão junto de mim,
fecho os olhos numa acção de graças…

Mas logo ela galreia;
nem isso me consente.

E regresso um pouco triste a uma alegria imensa.

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Este é o outro livro que toca a mais sensível corda do meu coração. Publiquei, por imensa gentileza de Isabel de Sena, O Físico Prodigioso. Nesta edição a ouro.

A eternidade nunca mais acaba

Rimbaud
Arthur Rimbaud

Elle est retrouvée.
Quoi ? — L’Éternité.
C’est la mer allée
Avec le soleil.

Estes quatro versos pertencem a um poema, L’eternité, de Jean-Arthur Rimbaud. Escreveu-o em Maio de 1872. Dois anos depois, retocou-o, mudando para mêlée o que antes dissera allée.

A transcendência que exala destes versos diminuirá se soubermos que a razão prosaica que os inspirou foi a paixão carnal do jovem Rimbaud pelo mais maduro Verlaine, outro poeta, a quem queria convencer que saísse de casa, abandonando a jovem mulher, para vir viver com ele?

Um mês depois, a verdade é que Verlaine deixou Mathilde. Mêlée onde antes estava allée.

Rimbaud morreu cedo. Viveu a mais paradoxal das vidas. Foi o breve e indelével relâmpago que sabemos na poesia francesa. Explorou-se a si mesmo ao limite, num je est un autre físico que quase ofusca o seu motto poético: fugas sucessivas de casa, viagens intranquilas e extenuantes por toda a Europa, a experiência da miséria, a fadiga do vagabundo.

Amante de Verlaine (que depois o baleou e se converteu ao catolicismo), Rimbaud, por delicadeza ou incandescente desejo de aventura, deixou tudo – deixou Verlaine, deixou a poesia, deixou a França – e partiu aos 22 anos para a Etiópia onde (na apócrifa biografia de que eu gosto) traficou escravas, guardando algumas delas como amantes. As biografias mais rigorosas confirmam as amantes, mas dizem que era de armas e café o tráfico a que se dedicava, na expectativa de enriquecer de vez (com a mesma poética ganância de qualquer Madoff).

Morreu jovem, aos 37 anos, por muito o amarem os deuses ou por, quem sabe, já não terem paciência para o aturarem. “Par delicatesse j’ai perdu ma vie”, foi frase que deixou para que lha escrevessem no epitáfio.

FantinLatour
Sentado, Verlaine é o 1º à esq, Rimbaud ao seu lado, também sentado. Quadro de Fantin-Latour.

 

Para a boca, só de Paris

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De François Villon, poeta francês do século XV, não há selfies e sabe-se tão pouco. Orfão de pai, nasceu estava a cleresia a atirar a milagrosa Joana d’Arc para a fogueira. Eram maus tempos para recalcitrantes e um patrono generoso enfiou Villon na Faculdade de Paris, com o objectivo salutar de que ele, no futuro, fosse dos que queimam e não dos que ardem.

Já o conformado Villon encarreirava no consolo da vida académica, eis que o rei Charles VII, sabe-se lá se por cativação de Centeno ou desígnio de alguma troika, fecha a faculdade. A Villon deu-lhe para a boémia e no meio dela mata um padre. Motivo: saias. Umas saias que a grande História omite, saias que, ó irritante, nunca levantaremos, mas cuja fresca intimidade o jovem François e o ardiloso padre terão, sem suspeita, partilhado.

Villon, em fuga e de lábio rachado, tinha 24 anos, metade da esperança de vida de então. Mas o perdão real era mais fácil do que hoje o indulto de um Putin ou Trump. O rei perdoou-lhe no ano em que reabilitou a heróica Joana d’Arc, o mesmo ano em que os navegadores portugueses (que o mais certo era Villon olimpicamente ignorar) chegavam ao Golfo da Guiné, o que hoje, por igual ignorância e muito mais má-fé, tanto nos criticam. O perdoado Villon regressa a Paris, Natal de 1456, e logo assalta o Collège de Navarre, roubando um cofre recheado de ouro, o que lhe assegurou um fatídico futuro de crime e infâmia.

Do primeiro crime até à sua morte putativa (se algum dia morreu e não se limitou a desaparecer para garantir a eternidade), escorreram oito anos. Oito anos que a lenda preenche com um sortido de roubos e violência que culminam na sua condenação à morte por enforcamento. Estes oito anos horribilis, de 1455 a 1463, foram os anos que, começando na “Balada das Contra Verdades” e quase terminando justamente na “Balada dos Enforcados”, fizeram de François Villon o glorioso, maior e mais fulgurante poeta desse final de Idade Média, forjando, a carne e sangue, o mito do poeta maldito, o primeiro de uma raça a que Rimbaud, o nosso Luiz Pacheco, Bukowski emprestaram iconoclastia, por vezes abjecção.

Num tempo de penúria e epidemias em que os livros começavam a ser impressos em tipografia, o fugitivo Villon escreveu alguns dos poemas mais comoventes que ler se podem. Digo eu, que o li no fim dos meus exaltados 20 anos, no cenário certo, a Angola de 1975 a ferro e fogo, em livrinho comprado na ABC de Luanda.

Nos poemas de Villon, batemos de frente, boca contra boca, com o infecto esplendor do humano: o crime, a dissolução moral, um humor que roça a negra sordidez, uma angustiada e poética consciência do transitório e efémero da vida, do seu sentido, do seu destino. E, sobre ou sob tudo, as mulheres:

Senhor, às damas mais maganas
O prémio deveria dar, feliz.
Por mais que valham Italianas
– Para a boca, só de Paris”

Foram as mulheres de Villon, “minha menina do nariz torto”, ou essas “damas do tempo longínquo” que me ensinaram a saudade dos amores do passado, ainda eu de amor mal soletrava o presente: “ah, onde estão as neves de antigamente”. Ou ainda, e desta maneira de que fiquei fiel devoto: “corpo feminino, que é tão tenro, Delicado, suave e precioso”.

 Iam enforcar Villon e ele escreveu, então, o mais angustiante epitáfio da literatura. Por piedade comutaram-lhe a pena. De Villon, criminoso, infame e poeta, nada mais se soube. Tinha 31 anos e desapareceu. Ficaram, imortais, os versos. E as saudades do poeta maldito.

Publicado na minha coluna Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo, no Jornal de Negócios

René Char, sozinho

Sobre ou por causa de René Char (1907-1988), poeta francês. De grande porte, um metro e noventa e dois, anti-nazi e membro da Resistência, jogador de rugby. 

René Char

Andou de braço dado, e nem sei se isso é bom, com Breton e Eluard. Mas, se o imaginarmos a caminhar numa estrada, vemos bem que está sozinho. Se tem de se proteger é a uma sombra de Villon. Se tem um destino é em direcção àquele ponto em que Rimbaud dizia juntarem-se la mer e le soleil: a eternidade. Essa silhueta de furor e mistério que se recorta na bruma de um caminho tem um nome: René Char. Silhueta de solidão: “Les femmes sont amoureuses et les hommes sont solitaires. Ils se volent mutuellement la solitude et l’amour. *

René Char talvez esteja para a poesia francesa do século XX como Herberto Helder para a portuguesa. Dos poemas mais longos e poemas em prosa a poemas que são quase aforismos, Char busca a palavra breve, essencial: “Souvent je ne parle que pour toi, afin que la terre m’oublie.**

Herói da Resistência, aprendeu nesses combates durante a Ocupação alemã, diz ele, a amar ferozmente os meus semelhantes: “François exténué par cinq nuits d’alertes successives, me dit : «J’échangerais bien mon sabre contre un café !» François a vingt ans.***

Pode ler-se «Fureur et Mystère», poemas de 1938 a 44, « Les Matinaux », de 47 a 49, « La Parole en Archipel », de 52 a 60, ou « L’Éloge d’une soupçonnée», de 1973 a 87. Em todos eles, letra a letra, verso a verso, um pensamento cantado. Leia-se este, tirado de «La Fontaine Narrative», de 1947:

 Allégeance

Dans les rues de la ville il y a mon amour. Peu importe où il va dans le temps divisé. Il n’est plus mon amour, chacun peut lui parler. Il ne se souvient plus; qui au juste l’aima?

Il cherche son pareil dans le voeu des regards. L’espace qu’il parcourt est ma fidélité. Il dessine l’espoir et léger l’éconduit. Il est prépondérant sans qu’il y prenne part.

Je vis au fond de lui comme une épave heureuse. A son insu, ma solitude est son trésor. Dans le grand méridien où s’inscrit son essor, ma liberté le creuse.

Dans les rues de la ville il y a mon amour. Peu importe où il va dans le temps divisé. Il n’est plus mon amour, chacun peut lui parler. Il ne se souvient plus; qui au juste l’aima et l’éclaire de loin pour qu’il ne tombe pas? ****

                                                                        ##

Traduzo à letra as várias citações acima:

* As mulheres são apaixonadas, os homens solitários. Roubam-se uns aos outros, mutuamente, a solidão e o amor.

** Muitas vezes não falo senão para ti, só para que a terra me esqueça.

***  François extenuado por cinco noites de alertas sucessivos, diz-me: ” Trocava bem o meu sabre por um café.

**** Consolação

Vai pelas ruas da cidade o meu amor. Pouco importa aonde vá nesse tempo dividido. Já não é o meu amor, qualquer um lhe pode falar. De certo já não se lembra: quem de verdade o amava?

Busca o que se lhe parece na promessa dos olhares. O espaço por onde caminha é a minha fidelidade. Desenha a esperança e recusa-a, displicente. É preponderante e em nada se compromete.

Habito no mais fundo dele como um destroço feliz. Ele não sabe: a minha solidão é o seu tesouro. No imenso meridiano em que se lança para o seu voo, a minha liberdade esvazia-o.

Vai pela ruas da cidade o meu amor. Pouco importa aonde vá no tempo dividido. Já não é o meu amor, qualquer um lhe pode falar. De certo já não se lembra: quem de facto o amava e de longe o ilumina para que não caia?

Faça dos meus os seus poetas

Esta é a nossa colecção de poesia. Capas de uma beleza despojada. O que eu gostava que os lessem.

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As capas são de uma beleza franciscana. Mas abrem -se as capas e entra-se num revolto e negro mar de Adamastor. O poema é uma fala e as palavras de um poeta são as palavras que andam nas bocas do mundo, mas no poema, e só assim o poema se faz poema, a palavra ganha esse mesmo fogo rutilante que arde na cauda de um cometa, a mesma luz desse inquieto espasmo ou cintilação das estrelas.

É essa a luz que ilumina estes versos de Tanta Luz, poema de Eugénia de Vasconcellos:

Na hora mais madura do sol,
tanta luz, e na curva da duna
nem uma nesga de sombra
onde guardar a saudade:
o tempo passou.

a mesma que se incendeia no poema de João Moita:

Os campos extasiados de luz,
um verde ferino.
O calor de um sol em zénite
pousa ao de leve sobre a pele,
mas refracta-se no solo:
é a armadura do Outono
à superfície da terra.

Deixe-me dizer, meu caro leitor, que razões há para ler estes cinco livros de poesia. São cinco, como os dedos da mão, e não queira saber o toque de veludo que a polpa dos seus dedos reconhecerá nas capas destes livros. E há, depois, o inenarrável prazer da surpresa e da incontida carga de emotividade: há neles a beleza das coisas naturais. E há, por fim, o insustentável peso do coração, da aprendizagem, alegria e perda do amor.

Estes são os meus poetas. Gostava que os lesse. O que eles nos trazem de fulgurante inspiração merece ser pago. É com a leitura que se paga aos poetas a alegria primordial que nos dão.

quem ama o livro

Amor estendido entre a luz e a escuridão

3D Book Uma Pedra sobre a boca

A violência que perpassa nestes poemas! A poesia de João Moita não nos põe só uma pedra sobre a boca. Esta é uma poesia que drena gangrenas, incuba miasmas. Eis um novo livro de poemas e vejam que nele regressa a voz mais íntima e física que a tradição poética universal nos soube dar.

João Moita, com a publicação de “Uma Pedra sobre a Boca”, oferece-nos a sua poesia toda: os primeiros livros, agora refundidos, todos os seus últimos poemas. Esta é uma poesia em que “os cães ladram com o bafo quente / das entranhas…” Repito, esta é uma poesia que murmura violência, que se esconde da sua própria, íntima e funda violência, como o mastim que dorme com as marcas dos nossos dentes sobre o dorso. E é uma poesia dolorosa, liturgicamente sexualizada, de amor estendido entre a luz e a escuridão.

João Moita nasceu em Alpiarça e tem 35 anos. Traduziu outros poetas, Saint-John Perse, Rimbaud, Whitman, Gamoneda, mas neste “Uma Pedra sobre a Boca” quer traduzir-se a si mesmo. Traduz-se em silêncio, sangue e volição. Eis a poesia de um falso monge, com o corpo a arder de vontade. João Mota parece querer privar-se do mundo, remeter-se à sua fome, caminhar com um anjo ferido pelos passos da escrita. Essa é a sua errância, uma errância que reconhece e quer reconciliar-se com a beleza ázima do mundo. Na sua céptica e escassa alegria confessa;

«Pôs-se uma manhã limpa como o escárnio,
estou prestes a ser feliz.»

“Uma Pedra sobre a Boca”, de João Moita, chegou hoje às livrarias portuguesas. Livro e autor juntam-se a uma colecção inaugurada por Eugénia de Vasconcellos (O Quotidiano a Secar em Verso e Sete Degraus sempre a Descer) e continuada pelo romeno Dinu Flamand (Sombras e Falésias) e por Tchiangui Cruz (Guardados numa Gaveta Imaginária).

A ler, com urgência. A tanto nos incita este poema que aqui vos deixo:

«Estou curado da minha juventude. Uma longa agonia precedeu uma repentina
convalescença. Receitaram-me doses cavalares de cinismo, fui aconselhado a
tomar exemplo nos cobardes, a aproveitar o estatismo da inquietação, a modorra
da desistência, a ebriedade do dever. Nada disso foi preciso. Sou autodidacta da
madurez: caio da árvore pelo meu próprio pé, e a árvore abate-se sobre mim.»

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A inenarrável beleza de Orpheu

Sou franco, só sei que escrevi esta prosa a roçar o indecente em 2015. Mas não sei porquê ou para quê. E nem sei se a publiquei em lugar algum. Publico-a, agora, por falar de Notre Dame de Paris. Ou melhor, de Nossa Senhora de Paris. Nem é bem o que estarão a pensar e espero que ninguém se ofenda: PIM e PUM.

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Orpheu

O que é ou foi “Orpheu”? É preciso esclarecer o pessoal que frequenta cervejarias, é preciso esclarecer o português que anda indeciso entre o Uber e o táxi canónico. “Orpheu” era uma revista de poesia. Era uma revista e lá dentro, nas páginas (por de páginas e de papel se fazer uma revista, que é como um livro, mas mais molinho), havia textos, coisas escritas. É bom dizer isto porque muita incauta gente, apanhada distraída, pode pensar que “Orpheu” era uma ONG, uma coisa parecida com a “Abraço”, ou um partido político desasado. Mas não, “Orpheu” não é o CDS ou o PCP, que seriam, talvez, os partidos políticos que os portugueses conhecem mais próximos de um ideal poético. E, no caso de “Orpheu” ser poesia, então o Bloco de Esquerda – PUM – é a coisa mais anti-poética que pode haver: PIM! PAM! PUM!

Salazar e Cunhal foram, no século XX, os políticos mais próximos de um ideal poético. Porque, à poesia, quando lhe dá para a puta de um ideal, logo descamba para o totalitário, para palácios de inverno e noites de cristal. Mário Soares e Francisco Sá Carneiro foram os únicos políticos que tivemos que podiam ser esparramados na capa de um romance. O romance são 200 ou 800, 400 ou mil páginas de gente cheia de dúvidas, gente persistente e estraçalhada de pecadilhos, mas com uma humanidade que enternece, homens e mulheres fiéis até no ledo, doce e amoroso engano. Mas isto não interessa nada, porque “Orpheu” não é um romance, por muito que em prosa sejam certos poemas de “Orpheu”.

É preciso que as pessoas tenham ideia de que a poesia são palavras em fogo e que palavras em fogo não são, necessariamente, a coisa mais próxima da verdade. No romance, as palavras são mais brandas e macias, e pode muito bem um brutal substantivo deixar-se ficar de beicinho caído por um subtil adjectivo. Para já não falar de advérbios ou de um pretérito mais que perfeito. E já me perdi, e já reconheço o engano, como o ouriço-cacheiro, que dizia “Qualquer um se pode enganar”, descendo, desalentado, da escova do cabelo. Sim, quando não se fode é melhor sair de cima.

Gostava também de dizer que “Orpheu” é uma coisa da língua para fora. A língua serve para tudo. Para andar por aí – ai, ai, a fazer queixas, ui, ui, a lamber botas! Falada, é portuguesa, a língua de milhões de uma malta de carne e osso que na sua esmagadora maioria nem é portuguesa. “Orpheu” para ser portuguesa foi também brasileira, porque nada é português se não for ao mesmo tempo outra coisa.

“Orpheu” nasceu em Portugal ainda havia um czar na Rússia. Nessa altura, bem esticada e indecente, pusessem os poetas de fora uma língua portuguesa, uma língua russa ou francesa, queriam e não queriam czares. Os poetas nunca sabem o que querem e isso, às vezes, pode ser mesmo muito chato. O poeta sonha com um czar onde o não haja e odeia o czar que houver. Viva o Czar, puta que pariu o Czar. O poeta é tão contraditório que tropeça nos próprios sapatos e só não tropeça nos atacadores porque o poeta de “Orpheu” não estava autorizado a usar atacadores para não se suicidar.

O poeta de “Orpheu” suicidou-se, aristocrático, em Paris. Enterrou-se no seu esoterismo e exilou-se nos salões sem janelas de uma beleza visceral, mental e palpitante, vestida a caprichos de cetim, que trazia, na cabeça, um roxo capacete de ferro.

“Orpheu” tinha sexo, o de Nossa Senhora de Paris, cheirinho a maresia. Cai-nos por ela, agora, um braço e, do lado da janela, velam pela Senhora três donzelas. Mas isto não é para meninos, nem meninas. Explodem tumultos nas ruas, assaltam-se as padarias de 1915 por causa do aumento do preço do pão e Pessoa & Campos, Mário Sá-Carneiro e Almada põem “Orpheu” de saias arregaçadas, a lavar as pernas da poeira das estradas. Como eu vos amo a todos, a todos, a todos, ou não fosse “Orpheu” a nossa Ode Triunfal.

“Orpheu” acabou, “Orpheu” continua, “Orpheu” está adiado sine dia. E também eu sou dessa maravilhosa gente humana que vive com os cães. E bem vos digo: a poesia não faz sentido nenhum e é isso que faz a inenarrável, pasmosa beleza de “Orpheu”. O resto, as ceroulas de malha dos partidos, concubinos e ciganões, as munições de manguitos dos telejornais… Ora PIM, ora PUM.