Amor estendido entre a luz e a escuridão

3D Book Uma Pedra sobre a boca

A violência que perpassa nestes poemas! A poesia de João Moita não nos põe só uma pedra sobre a boca. Esta é uma poesia que drena gangrenas, incuba miasmas. Eis um novo livro de poemas e vejam que nele regressa a voz mais íntima e física que a tradição poética universal nos soube dar.

João Moita, com a publicação de “Uma Pedra sobre a Boca”, oferece-nos a sua poesia toda: os primeiros livros, agora refundidos, todos os seus últimos poemas. Esta é uma poesia em que “os cães ladram com o bafo quente / das entranhas…” Repito, esta é uma poesia que murmura violência, que se esconde da sua própria, íntima e funda violência, como o mastim que dorme com as marcas dos nossos dentes sobre o dorso. E é uma poesia dolorosa, liturgicamente sexualizada, de amor estendido entre a luz e a escuridão.

João Moita nasceu em Alpiarça e tem 35 anos. Traduziu outros poetas, Saint-John Perse, Rimbaud, Whitman, Gamoneda, mas neste “Uma Pedra sobre a Boca” quer traduzir-se a si mesmo. Traduz-se em silêncio, sangue e volição. Eis a poesia de um falso monge, com o corpo a arder de vontade. João Mota parece querer privar-se do mundo, remeter-se à sua fome, caminhar com um anjo ferido pelos passos da escrita. Essa é a sua errância, uma errância que reconhece e quer reconciliar-se com a beleza ázima do mundo. Na sua céptica e escassa alegria confessa;

«Pôs-se uma manhã limpa como o escárnio,
estou prestes a ser feliz.»

“Uma Pedra sobre a Boca”, de João Moita, chegou hoje às livrarias portuguesas. Livro e autor juntam-se a uma colecção inaugurada por Eugénia de Vasconcellos (O Quotidiano a Secar em Verso e Sete Degraus sempre a Descer) e continuada pelo romeno Dinu Flamand (Sombras e Falésias) e por Tchiangui Cruz (Guardados numa Gaveta Imaginária).

A ler, com urgência. A tanto nos incita este poema que aqui vos deixo:

«Estou curado da minha juventude. Uma longa agonia precedeu uma repentina
convalescença. Receitaram-me doses cavalares de cinismo, fui aconselhado a
tomar exemplo nos cobardes, a aproveitar o estatismo da inquietação, a modorra
da desistência, a ebriedade do dever. Nada disso foi preciso. Sou autodidacta da
madurez: caio da árvore pelo meu próprio pé, e a árvore abate-se sobre mim.»

moita_web

2 thoughts on “Amor estendido entre a luz e a escuridão”

  1. Muito jeitosa a capa do livro. Há nas capas dos livros de poesia uma frugalidade que me agrada. Ainda não entendi a forma de se fazerem capas na prosa; por vezes – não é o caso da Guerra e Paz -, atafulhadas de notícia, inestéticas.
    Mas pronto, gostei do poema. Hei-de ver se me agrada o resto do livro. Porque desconheço o poeta. Se for como a Menina Eugénia de Vasconcellos, que conheci entre bloguices, vale muito a pena. Vamos a ele!

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    1. Tem de ler, Bea, tem de ler. Os poetas são seres em vias de extinção. Os livros dele têm de ser protegidos como um imperdível tesouro da humanidade. Está um desses tesouros numa livraria perto de si, à sua espera.

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