O mais belo conto de Herberto Helder

Faço-vos um desa­fio.
Com­prem “
Os Pas­sos em Volta”, de Her­berto Hel­der. É um livro de con­tos. Incur­são rara do poeta na prosa nar­ra­tiva. O mais pró­ximo que ele terá estado de um romance.
Já compraram? Óptimo, leiam agora, de “
Os Pas­sos em Volta”,
um conto, o mais belo de todos os con­tos, leiam “
Polí­cia”. Conta-o um por­tu­guês, clandestino, em Bru­xe­las, na imi­nên­cia de ser, por­ven­tura, expulso.
E agora, que já com­pra­ram “
Os Pas­sos em Volta” e já leram “Polícia, podem ler, embora não pre­ci­sem, a pie­dosa e devota prosa que se segue.

Passos

Eu era então muito novo. Aprendi a sole­trar o amor nos onze pará­gra­fos das cinco páginas de um conto cha­mado “Polí­cia”. O amor ficou-me para sem­pre assim, a mulher nua dei­tada sobre um cober­tor, gotas de chuva a des­li­zar nos vidros da janela.

Em fra­ses cur­tas, que uma pequena e amá­vel iro­nia ace­lera, o conto des­creve Bru­xe­las, o papel ambí­guo de um pro­tec­tor petit Mon­si­eur Leclercq, antigo cola­bo­ra­ci­o­nista e funcionário  do par­tido comu­nista, a penú­ria do pro­ta­go­nista que alguns bis­ca­tes mal iludem.

É um clan­des­tino que fala. Tem uma voz serena, objec­tiva. Con­fia, percebe-se, no movimento que os tem­pos ver­bais dão às fra­ses: “Eu dese­java tra­ba­lho, ape­nas isso.” Ou então: “… o maior amigo do meu pro­tec­tor, um fla­mengo que amava a cer­veja forte, pertencera  à Resis­tên­cia.” Dese­jar, amar e per­ten­cer são os dína­mos de fra­ses humil­des, manu­ais dir-se-ia. As fra­ses vão por onde os ver­bos as mandam.

É um por­tu­guês e deam­bula pela cidade, perto da esta­ção, entre as luzes das ruas e o ruído dos com­boios de mer­ca­do­rias. Tal­vez por­que ter dinheiro no bolso seja tão acidental, o nar­ra­dor clan­des­tino poupa nos adjec­ti­vos. Escas­sez na vida que reper­cute na lumi­nosa escas­sez da prosa. Ainda assim, diver­tido ou ino­cente, autoriza-se (uma vez ape­nas, no pri­meiro longo pará­grafo de 42 linhas) um aceno con­tido de trans­cen­dên­cia: “Às vezes eu fazia com estes ele­men­tos estran­gei­ros um lirismo vaga­bundo e puro.

Eu era então muito novo e ao ler “Polí­cia” apaixonei-me pela ideia difusa de cidade, os vagos tra­ba­lhos tem­po­rá­rios, beber cer­veja, dan­çar num bar da Chaus­sée d’Anvers. Mas apaixonei-me sobre­tudo pela abso­luta cons­ci­ên­cia de si deste clan­des­tino a quem le petit Mon­si­eur Leclercq acon­se­lha a fugir para a França, Ale­ma­nha, meter-se num barco que saia de Antuérpia.

Con­ge­ni­ta­mente ide­a­lista, “Polí­cia” é um conto em que os con­tor­nos da cidade, a espessura dos vul­tos que pas­sam, das abun­dan­tes pros­ti­tu­tas, só ganham con­cre­ção dentro da lin­gua­gem e da soli­dão do herói clan­des­tino. Quase ouço o nar­ra­dor responder-me: “Tam­bém me sen­tia absur­da­mente entu­si­as­mado com a soli­dão.” Tal­vez le petit Mon­si­eur Leclercq não saiba, mas se o clan­des­tino par­tir, a cidade desa­pa­rece. E não, não me parece que Mon­si­eur Leclercq o saiba: antigo cola­bo­ra­ci­o­nista e fun­ci­o­ná­rio do par­tido comu­nista, o monismo ide­a­lista é-lhe estranho.

Eu era então muito novo e nunca tinha lido uma tão incon­des­cen­dente cons­ci­ên­cia de si. Mais abis­mado fiquei ao ver, no segundo pará­grafo, o herói clan­des­tino criar uma segunda cons­ci­ên­cia, desen­can­tado comen­tá­rio de si mesmo. É uma manhã de Dezem­bro e chove, diz ele, para logo a seguir e pela pri­meira vez sur­gir, entre parên­te­sis, a segunda camada de cons­ci­ên­cia de si, filo­só­fica, quase sem­pre inter­ro­ga­tiva. Uma segunda consciência  que é, por­ven­tura, mais o resul­tado de uma ele­gante dis­cri­ção, quase timidez, do que um arti­fi­cio lite­rá­rio. Leio e pergunto-me se o herói clan­des­tino não terá cri­ado esta segunda vaga da cons­ci­ên­cia de si como pre­texto para intro­du­zir Anne­ma­rie. É Dezem­bro e chove, diz ele, para logo deri­var, auto-comentando-se “(eu fala­ria depois a Anne­ma­rie da chuva lenta, paté­tica)”. E deixa-a ali, sus­pensa, mis­te­ri­osa, para só vol­tar a sentar-se ao lado dela, ou ela ao lado dele, 24 linhas depois.

Chove neste conto, “gotas de água a toda a volta”, e surge Anne­ma­rie, fran­cesa de Lyon, tão clan­des­tina como o nar­ra­dor por­tu­guês: “Anne­ma­rie sentou-se a meu lado. Vi logo que ela não podia estar mais só.” São duas abso­lu­tas cons­ci­ên­cias de si, irre­du­tí­veis, sen­ta­das ao bal­cão de um bar de Bru­xe­las, em frente a dois “belos copos de cer­veja fria”. Bebem na soli­dão um do outro.

Eu era então muito novo e pareceu-me peri­goso e sub­ver­sivo este clan­des­tino encon­tro de cons­ci­ên­cias num chu­voso fim de tarde estran­geiro. Seria absurdo que a polí­cia não os per­se­guisse. A polí­cia, esse dese­já­vel escru­tí­nio da ile­ga­li­dade, é a única forma de os dois clan­des­ti­nos terem a cer­teza que arris­cam a liber­dade. A única certeza.

“Polí­cia” começa numa deli­ques­cente manhã de Dezem­bro, em Bru­xe­las. Ter­mina na noite desse dia, a mesma fria névoa lá fora e “um calor incon­ce­bí­vel” nesse quarto onde duas soli­dões falam “lon­ga­mente da chuva, do amor e das leis.

Em dois demo­ra­dos pará­gra­fos ini­ci­ais e nove mais cur­tos, poé­ti­cos, pará­gra­fos finais, “Polí­cia” é um lapi­da­dís­simo dia­mante nar­ra­tivo. O ritmo do fra­se­ado, a pre­ci­são lexi­cal, o dis­creto bri­lho meto­ní­mico, a fru­gal suges­tão ima­gé­tica estão inven­ci­vel­mente acima da tan­tas vezes pas­tosa nar­ra­tiva por­tu­guesa. É só lite­ra­tura, dir-me-ão aque­les que razoa­vel­mente pen­sam ser a lite­ra­tura coisa pouca. Que inte­ressa? Eu era então muito novo e “Anne­ma­rie puxou-me para den­tro e amámo-nos sobre o cober­tor até de manhã.

Neste meu comentário, reporto-me à versão original do conto, publi­cada pela Portugália  Edi­tora, em Março de 1963,  a 1ª edi­ção do livro. A que eu tenho e cuja capa está fotografada lá em cima.

Chuva
Chuva numa janela, de Ani­mesh Ray

A poética solidão de Renato Sanches

renato-sanches-benfica

Alguma da melhor poesia contemporânea sai dos pés de geniais e jovens futebolistas. Ainda agora, a ver o Real Madrid-Ajax, quando o dinamarquês Lasse Schone marcou de livre o quarto golo da equipa de Amsterdão, um livro batido não sei bem se em vólei, se em pontapé de rugby, numa longa, livre, calma e ininterceptável viagem da bola sobre o guarda-redes Courtois, só me vinha à cabeça este verso de Ruy Belo, «um ramo oscila ao vento é a vida que começa», do longuíssimo poema que leva por título A Margem da Alegria.

Mas se pouco me surpreendem os admiráveis versos que os pés de João Félix e de Florentino Gomes ou as cabeças de Ferro ou Ruben Dias criam, o que me tem surpreendido é a nova qualidade poética que perpassa pela linguagem de quem saiu da academia do Benfica. Há dias, o treinador Bruno Lage, com elegância metonímica,  alterando o sentido natural dos termos, explicou o seu êxito recorrendo ao uso do efeito em vez da causa, agradecendo aos seus jogadores por fazerem dele o treinador que estava a começar a ser. Agora, Renato Sanches, elaborando sobre um conceito tão abstracto como o de decepeção, isolou o momento mais doloroso e íntimo da sua carreira, lesionado em Swansea, dizendo, como se possuído de um espírito de Herberto Helder, apenas isto:

«… all of a sudden I was out for months, sitting alone in an apartment in Swansea watching it rain all day.» Que é como diz «Fiquei de fora meses, num apartamento de Swansea, sentado a ver a chuva cair, sozinho, o dia inteiro.»

Há uma linha de um conto, n’ Os Passos em Volta, que recordo: «Choveu sempre. Sentíamos a chuva sobre a terra inteira. Éramos invencíveis.» Herberto, perdão, Renato, deixa-me dizer-te uma coisa, deixa que chova em Swansea, deixa que caia toda a chuva de Dezembro, «lenta, patética»: há em ti uma poesia que te torna invencível. Tu vais triunfar.