Livros Amarelos e um argumento de bolso

amarelos

Dizem-nos que é a única colecção comparativista do mundo. Talvez seja – senão a única pelos menos uma das raras colecções em que, no mesmo livro, se juntam e comparam textos de autores diferentes. Chama-se Os Livros Amarelos. As capas, como podem ver na imagem, são amarelas, e amarelas e pintadas à mão são as faces do miolo. Na capa há um cortante que a rasga obliquamente deixando ver a cor das guardas. O que eu, como editor, vos quero dizer é que os livros, de pequeno formato, têm uma graça ágil, uma beleza serena, quase humilde. Pousam-nos sossegados na palma da mão como pássaro primaveril.

E aqui está o mais importante: são livros para ler. A colecção tem já oito livros e inclui contos, poemas, pequenos ensaios, Walt WhitmanMelvilleMark TwainKiplingOscar WildeJoyce, os portugueses PessoaEçaManuel LaranjeiraJorge de Sena ou textos bíblicos como O Canto dos Cânticos e O Apocalipse.

Em cada livro há dois textos de autores diferentes. Por exemplo, o maravilhoso conto que é A Célebre Rã Saltadora do Condado de Calaveras, de Mark Twain é logo seguido de um conto de Kipling, Rikki-Tikki-Tavi. O que cada Livro Amarelo faz é pôr estes textos a falar uns com os outros, mostrando como esses textos se relacionam ou rejeitam, se amam ou se odeiam, o que fica demonstrado através de ensaio de um autor contemporâneo – por exemplo, os professores Jeronimo Pizarro ou Ricardo Vasconcelos, mas também Helder Guégués e eu mesmoeste editor que vos escreve.

Quando lançámos esta colecção – a que mais elogios nos valeu, sobretudo vindos de professores de literatura de universidades estrangeiras – dissemos que cada Livro Amarelo era um paparazzo: por desvendar as relações comprometedoras e clandestinas que os textos de diferentes autores e de diferentes épocas mantinham sem que o leitor se dê conta.

Já são muitas razões para ter na sua mão não um, mas todos os oito Livros Amarelos:

– são deliciosamente bonitos;

– têm o descaramento de mostrar a literatura a fazer amor;

– são livros amantes carregados de emoções e de humor;

– são os únicos livros de leitura dupla, como disse Jeronimo Pizarro, o que Jorge Luis Borges confirma: lê-se o segundo texto para confirmar e desviar sensivelmente a leitura do primeiro;

– são a prova de vida de textos de diferentes épocas e de diferentes literaturas.

Decidimos que era altura de juntarmos um argumento de bolso às razões para ter e ler, não um, mas todos os livros da colecção: eis que estamos praticamente a oferecê-los.

A sensibilidade não tem preço, mas neste caso, pelo preço de um grande livro (40€ não é?), leva oito pequenos livrosde gigantes da literatura.

O mais belo conto de Herberto Helder

Faço-vos um desa­fio.
Com­prem “
Os Pas­sos em Volta”, de Her­berto Hel­der. É um livro de con­tos. Incur­são rara do poeta na prosa nar­ra­tiva. O mais pró­ximo que ele terá estado de um romance.
Já compraram? Óptimo, leiam agora, de “
Os Pas­sos em Volta”,
um conto, o mais belo de todos os con­tos, leiam “
Polí­cia”. Conta-o um por­tu­guês, clandestino, em Bru­xe­las, na imi­nên­cia de ser, por­ven­tura, expulso.
E agora, que já com­pra­ram “
Os Pas­sos em Volta” e já leram “Polícia, podem ler, embora não pre­ci­sem, a pie­dosa e devota prosa que se segue.

Passos

Eu era então muito novo. Aprendi a sole­trar o amor nos onze pará­gra­fos das cinco páginas de um conto cha­mado “Polí­cia”. O amor ficou-me para sem­pre assim, a mulher nua dei­tada sobre um cober­tor, gotas de chuva a des­li­zar nos vidros da janela.

Em fra­ses cur­tas, que uma pequena e amá­vel iro­nia ace­lera, o conto des­creve Bru­xe­las, o papel ambí­guo de um pro­tec­tor petit Mon­si­eur Leclercq, antigo cola­bo­ra­ci­o­nista e funcionário  do par­tido comu­nista, a penú­ria do pro­ta­go­nista que alguns bis­ca­tes mal iludem.

É um clan­des­tino que fala. Tem uma voz serena, objec­tiva. Con­fia, percebe-se, no movimento que os tem­pos ver­bais dão às fra­ses: “Eu dese­java tra­ba­lho, ape­nas isso.” Ou então: “… o maior amigo do meu pro­tec­tor, um fla­mengo que amava a cer­veja forte, pertencera  à Resis­tên­cia.” Dese­jar, amar e per­ten­cer são os dína­mos de fra­ses humil­des, manu­ais dir-se-ia. As fra­ses vão por onde os ver­bos as mandam.

É um por­tu­guês e deam­bula pela cidade, perto da esta­ção, entre as luzes das ruas e o ruído dos com­boios de mer­ca­do­rias. Tal­vez por­que ter dinheiro no bolso seja tão acidental, o nar­ra­dor clan­des­tino poupa nos adjec­ti­vos. Escas­sez na vida que reper­cute na lumi­nosa escas­sez da prosa. Ainda assim, diver­tido ou ino­cente, autoriza-se (uma vez ape­nas, no pri­meiro longo pará­grafo de 42 linhas) um aceno con­tido de trans­cen­dên­cia: “Às vezes eu fazia com estes ele­men­tos estran­gei­ros um lirismo vaga­bundo e puro.

Eu era então muito novo e ao ler “Polí­cia” apaixonei-me pela ideia difusa de cidade, os vagos tra­ba­lhos tem­po­rá­rios, beber cer­veja, dan­çar num bar da Chaus­sée d’Anvers. Mas apaixonei-me sobre­tudo pela abso­luta cons­ci­ên­cia de si deste clan­des­tino a quem le petit Mon­si­eur Leclercq acon­se­lha a fugir para a França, Ale­ma­nha, meter-se num barco que saia de Antuérpia.

Con­ge­ni­ta­mente ide­a­lista, “Polí­cia” é um conto em que os con­tor­nos da cidade, a espessura dos vul­tos que pas­sam, das abun­dan­tes pros­ti­tu­tas, só ganham con­cre­ção dentro da lin­gua­gem e da soli­dão do herói clan­des­tino. Quase ouço o nar­ra­dor responder-me: “Tam­bém me sen­tia absur­da­mente entu­si­as­mado com a soli­dão.” Tal­vez le petit Mon­si­eur Leclercq não saiba, mas se o clan­des­tino par­tir, a cidade desa­pa­rece. E não, não me parece que Mon­si­eur Leclercq o saiba: antigo cola­bo­ra­ci­o­nista e fun­ci­o­ná­rio do par­tido comu­nista, o monismo ide­a­lista é-lhe estranho.

Eu era então muito novo e nunca tinha lido uma tão incon­des­cen­dente cons­ci­ên­cia de si. Mais abis­mado fiquei ao ver, no segundo pará­grafo, o herói clan­des­tino criar uma segunda cons­ci­ên­cia, desen­can­tado comen­tá­rio de si mesmo. É uma manhã de Dezem­bro e chove, diz ele, para logo a seguir e pela pri­meira vez sur­gir, entre parên­te­sis, a segunda camada de cons­ci­ên­cia de si, filo­só­fica, quase sem­pre inter­ro­ga­tiva. Uma segunda consciência  que é, por­ven­tura, mais o resul­tado de uma ele­gante dis­cri­ção, quase timidez, do que um arti­fi­cio lite­rá­rio. Leio e pergunto-me se o herói clan­des­tino não terá cri­ado esta segunda vaga da cons­ci­ên­cia de si como pre­texto para intro­du­zir Anne­ma­rie. É Dezem­bro e chove, diz ele, para logo deri­var, auto-comentando-se “(eu fala­ria depois a Anne­ma­rie da chuva lenta, paté­tica)”. E deixa-a ali, sus­pensa, mis­te­ri­osa, para só vol­tar a sentar-se ao lado dela, ou ela ao lado dele, 24 linhas depois.

Chove neste conto, “gotas de água a toda a volta”, e surge Anne­ma­rie, fran­cesa de Lyon, tão clan­des­tina como o nar­ra­dor por­tu­guês: “Anne­ma­rie sentou-se a meu lado. Vi logo que ela não podia estar mais só.” São duas abso­lu­tas cons­ci­ên­cias de si, irre­du­tí­veis, sen­ta­das ao bal­cão de um bar de Bru­xe­las, em frente a dois “belos copos de cer­veja fria”. Bebem na soli­dão um do outro.

Eu era então muito novo e pareceu-me peri­goso e sub­ver­sivo este clan­des­tino encon­tro de cons­ci­ên­cias num chu­voso fim de tarde estran­geiro. Seria absurdo que a polí­cia não os per­se­guisse. A polí­cia, esse dese­já­vel escru­tí­nio da ile­ga­li­dade, é a única forma de os dois clan­des­ti­nos terem a cer­teza que arris­cam a liber­dade. A única certeza.

“Polí­cia” começa numa deli­ques­cente manhã de Dezem­bro, em Bru­xe­las. Ter­mina na noite desse dia, a mesma fria névoa lá fora e “um calor incon­ce­bí­vel” nesse quarto onde duas soli­dões falam “lon­ga­mente da chuva, do amor e das leis.

Em dois demo­ra­dos pará­gra­fos ini­ci­ais e nove mais cur­tos, poé­ti­cos, pará­gra­fos finais, “Polí­cia” é um lapi­da­dís­simo dia­mante nar­ra­tivo. O ritmo do fra­se­ado, a pre­ci­são lexi­cal, o dis­creto bri­lho meto­ní­mico, a fru­gal suges­tão ima­gé­tica estão inven­ci­vel­mente acima da tan­tas vezes pas­tosa nar­ra­tiva por­tu­guesa. É só lite­ra­tura, dir-me-ão aque­les que razoa­vel­mente pen­sam ser a lite­ra­tura coisa pouca. Que inte­ressa? Eu era então muito novo e “Anne­ma­rie puxou-me para den­tro e amámo-nos sobre o cober­tor até de manhã.

Neste meu comentário, reporto-me à versão original do conto, publi­cada pela Portugália  Edi­tora, em Março de 1963,  a 1ª edi­ção do livro. A que eu tenho e cuja capa está fotografada lá em cima.

Chuva
Chuva numa janela, de Ani­mesh Ray

a tua boca entreaberta

LeahSe estivesse vivo (está?) teria 117 anos. José Rodrigues Miguéis foi o nosso único (ou o primeiro?) escritor de Bruxelas. Agora que Bruxelas é praticamente nossa, deixem-me evocar o conto da literatura portuguesa em que mais Bruxelas nos aparece de sexualidade cálida e generosa.

São só 28 páginas. Quase todas passadas no interior de uma pensão de Bruxelas. Vinte e oito páginas de lirismo sensível e “coagulado”, nas palavras do próprio, o hoje quase ignorado José Rodrigues Miguéis, que andou “clandestino” pela Europa, e se auto-exilou na América, onde acabou por morrer, bem longe da ditosa pátria que a ele a ditadura tornara tão desamada.

A história passa-se, claro, em Bruxelas – terá sido entre 1929 e 33 que Miguéis lá viveu – quando a Europa era um desunido e inconciliável puzzle de nações. Local da acção: já disse que era uma pensão, acrescento que tinha “o que quer que fosse de decadente, descuidado e boémio.

O narrador, uma voz quase apática, de olhar distraído e ânimo sufocado (num desconsolo que hesitava entre as três e as quatro da tarde), é surpreendido por um rosto, um corpo, uma mulher, o centro de uma narrativa tão ágil que se atreve a apresentá-la através de interrogativa, no meio de um monólogo sobre os méritos da vida em solidão e em lugares longínquos: “Mas esta dialéctica da misantropia (ou timidez) não será demasiado especiosa para ti, Léah?

Nós, de Léah, até aí, não tínhamos sequer ouvido falar. E quase nada continuaremos a ouvir dizer, a não ser apanhar-lhe o rumor de um riso, o nome dela gritado por outros hóspedes, farrapos de conversas a meia voz. E silêncios que talvez sejam os dela.

Já vamos a um terço do conto (ou novela?), quando a raiva de um quarto por arrumar faz o narrador gritar, “com todo o meu fôlego de português da serra: — Léaaaaah!

E em três curtos parágrafos, o tempo de subir escadas, de se acelerar o coração, vemo-la – “vi-te: pela primeira vez” diz com mais propriedade o narrador – e a luz em cheio na cara revela “A tua boca entreaberta de espanto, viva e carnuda…” No mesmo parágrafo vemos mais, ficando a saber de seios, fortes e salientes, e da curva criadora e firme das ancas

Na vida deste narrador sem qualidades, Léah, a criada da pensão, falando o “francês aveludado de Pas de Calais”, é uma explosão que se “abre e rescende como uma flor”, como é (na minha mal informada opinião) a primeira afirmação na literatura portuguesa de uma sexualidade desinibida, sendo seguramente a celebração de uma “carne comunicativa, terna e compassiva”.

O narrador e Léah amam-se, a partir daí, todas ou quase todas as noites, ou mesmo às quatro da tarde – cabeça de quem reclinada sobre o regaço de quem? boca sincera e solícita dela a apaziguar a lusitana exasperação dele, a quem ela chama Monsieur Carlôss.

Léah oferece-se tépida e pagã, como pagã vai depois oferecer, a Monsieur Carlôss, a irmã, levantando-lhe devagar a saia: “Não é verdade que é linda?… E ainda é virgem” e pedindo-lhe que a beije, o primeiro beijo que a fará sofrer.

Léah, para que conste, tem um pauv’ Fe’dinand, de bom emprego e pressa de casar, que ela não ama, mas de quem gosta, por bonito e decente.

Foi pela irmã, pelo pauv’ Fe’dinand resignadamente contente só de sair com ela, ou foi por causa de Madame Lambertin, a patroa flamenga de maneiras livres e em cujo colo o narrador antes – antes de ti, Léah, antes de ti – tomara equivalentes liberdades – por quem ou por que foi não sabemos, mas ao narrador e Léah acontece-lhes o primeiro beijo funesto: “por dentro de mim eram tristes e amargos” diz desse beijo e dos que se seguem o eu que Miguéis pôs a contar-nos a história.

Quem, como na canção patética de William Blake, terá, primeiro, acolhido no acendrado colo o imundo verme do egoísmo e do medo?

Léah, francesa de Pas de Calais, criada de pensão em Bruxelas ama, em liberdade e plenitude juvenil, um narrador que se diz português e enfronhado em experiências de biólogo difuso. Ele sofre as dores do pauv’ Fe’dinand e passa a julgar-se “réu de traição e deslealdade”.

Ela talvez visse no amor dele a fuga a uma existência mesquinha e monótona. Ele esquiva-se, buscando na fuga alívio de um amor que estilhaça o egoísmo da sua convicta misantropia. E separam-se.

Passam dias, semanas, meses, um ano ou mais, “quando, um pouco atrás de mim, uma voz familiar exclamou com surpresa:
– Monsieur Carlôss”
Voltei-me. Eras tu.

Para o fim da história faltam mais de uma dúzia de parágrafos, o que dá, com bom espaçamento e letra de corpinho decente, duas páginas e meia. É o que vos peço que leiam depois de terem lido as emotivas 26 páginas que as antecedem. “Léah” é um conto escrito num português simples e cristalino. Límpido, disse Jorge de Sena. Está no volume “Léah e Outras Histórias, nas Obras Completas de José Rodrigues Miguéis, da Editorial Estampa. A 6ª edição, a que conservei, é de 1981.

Miguéis
Miguéis