Uma mulher

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Dorothy Thompson em Viena

Nadavam nuas no Danúbio. E antes de falar de Hitler ou de Simone de Beauvoir, digo já os nomes dessas americanas que nadavam nuas ali perto de Budapeste. São mulheres mortas, mas estavam vivas nos anos 20 do século passado. Passaram cem anos e custa imaginar, à nossa vigilância policialmente correcta, a líquida liberdade de uma poeta, Edna St. Vincent Millay, e de uma jornalista, Dorothy Thompson, nesses anos em que nos querem fazer crer que a mulher ainda não existia.

E agora pergunto: por que estremece o bigode de Hitler?  De desejo ou de raiva? Perverso, incestuoso, seria de desejo se ainda estivesse viva Geli Raubal, a sua juvenil sobrinha, de suficiente beleza apolínea para segurar um facho no “Triunfo da Vontade” da genial, porém nazi, Leni Rieffenstahl. Mas a sobrinha suicidou-se ou ter-se-ia suicidado se a jornalista americana Dorothy Thompson não olhasse com ululante desconfiança para o tiro no peito que a matou. Como é que alguém se suicida com um tiro no peito? O mínimo bigode de Hitler estremece com uma raiva SS à pergunta americana de 1931, ano em que Hitler começou a estar na moda.

Antes, a nudez do Danúbio inspirara a Dorothy o primeiro casamento com um poeta húngaro. A sexualíssima cintilação da amiga Edna terá ajudado: Edna tinha dois amantes na Embaixada americana e conseguia, em prodigiosa camuflagem diplomática, que nenhum soubesse do outro, perguntando a Dorothy: “Achas que sou ninfomaníaca?”

Dorothy foi a Viena em reportagem e deixou o marido com Edna. Quando voltou, a poeta mostrou-lhe um anel de verde esmeralda e sussurrou à amiga jornalista: “Foi o teu marido que mo deu, mas ele gosta mesmo de ti.”

Dorothy não rifou a nua amiga, mas rifou o marido e deram-lhe, então, a chefia da delegação do New York Post, em Berlim. Era uma mulher, coisa que Simone de Beauvoir ainda não inventara, e puseram-lhe na mão a mais trepidante das delegações da Europa, como já fora ela a cobrir a celebração dos dez anos da revolução bolchevique. Terá estremecido o bigode do tio Estaline?

 Estava agora casada com Sinclair Lewis, cosmopolita como o marido húngaro, e melhor escritor, se o Nobel quer dizer alguma coisa. Lewis ganhou-o, ainda mal Saramago abria os olhos. Mas é da liberdade de Dorothy que quero falar e não de glórias masculinas. Talvez Dorothy apreciasse na meia-sobrinha de Hitler o gosto dela se banhar também nua com uma amiga, não sei se no Wannsee, e deixarem-se ficar angélicas ao sol, na peregrina busca de um bronzeado sem mancha.

Tudo isto se sabia na infrene Berlim. Dorothy convivia com Thomas Mann e Brecht. Nos braços ou colo de Christa Winsloe, outra escritora, entregou-se a delícias sáficas, permanecendo casada com Lewis: reivindicava o direito a amar. Terá voltado a estremecer o bigode de Hitler?

Em 1931, Hitler concedeu-lhe uma entrevista. Digamos com uma franqueza portuguesa de tasca, Hitler saiu da entrevista a andar à pinguim. Dorothy compôs-lhe um retrato de “pequeno homem”, de anão político, corpo sem formas, cartilagem onde devia estar um esqueleto, um tipo que em vez de cara tem uma caricatura. E, falando de carácter, acrescentou: inconsequente e volúvel, doentio e inseguro.

Dorothy sentou-se na entrevista e escreveu um livro: “Eu vi Hitler”. Hitler é que já não a podia voltar a ver. Ou talvez fosse só o nervoso bigode de Hitler. Deu-lhe ordem de expulsão da Alemanha. Dorothy Thompson, nua sereia do Danúbio, amiga de Edna, amante de Christa, mulher de Lewis, foi a primeira jornalista a ser expulsa pelo odioso nazi. Uma mulher.

Publicado na minha coluna, Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo, no Jornal de Negócios

As duas metades de um corpo

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Quem cantou o Sexo Todo Poderoso foi Edna St. Vincent Millay. Cantou-o em verso e em público, na cama e fora da cama. A mãe dela, Cora, despachou um pai impertinente e, sozinha, criou Edna e as irmãs com hinos à natureza humana. Com a franqueza e sinceridade que nenhum ministro das finanças, nem mesmo o nosso heróico Centeno, há-de ter, Cora disse isto um dia: “Sou uma slut e criei as minhas filhas para serem umas sluts.” Ora bem, a semântica do português não faz justiça à gíria americana: slut está entre puta e vadia, termos moralizantes e depreciativos, que não honram o livre gosto do impreconceituoso amor desta mãe e filha, Cora e Edna, no começo do século XX, há cem anos.

Poeta amadíssima, como é raro acontecer a poetas, e logo mulheres, Edna era pequena, linda, duas destacadas colinas ao peito, um cabelo púrpura, e deslizava pelo mel do amor como hoje os louros adolescentes surfam as águas da Nazaré, em vertigem e a bater records. Dou um exemplo: Edmund Wilson, escritor, viril divulgador de Faulkner e Hemingway, de Rimbaud e T.S.Eliot, já tinha 25 anos e só uma ejaculação a ler um livro, o que o assustara e levara a consultar o médico, quando perdeu com ela a virgindade, assim descobrindo o esplendor e luz perpétua do sexo, do qual se tornou mais fanático do que eu pelo meu glorioso SLB.

 Edna deu a provar à língua de Wilson o delicado óbolo, logo lhe mostrando da moeda as duas faces. O escritor descobriu que, deitando-se com ele, Edna não deixava de se deitar com quem queria, em particular com o seu melhor amigo, outro poeta, John Peale Bishop, colega de universidade em Princeton, como ele soldado na I Grande Guerra. Terá havido estupefacção, como se chamava à surpresa em 1914, choro e ranger de dentes. Prefiro trazer aos meus leitores um momento de lânguida ternura.

Edna decidiu viajar para a Europa e despediu-se dos dois amados, a quem chamava “os meus meninos do coro do Inferno”. Com aquele mórbido gosto que todo o Casanova tem na ruptura, despediu-se deles no quarto. Deitou-se nos braços dos dois, oferecendo a Bishop o seu corpo da cintura para cima, a Wilson da cintura para baixo, pedindo que lhe prodigalizassem firmes gentilezas e a doce gota da cortesia, cada um devendo provar que tinha ficado com a melhor parte. Eis o que me parece ser um programa para um mundo melhor, pelo qual merecem erguer-se estandartes e sonhar amanhãs que cantam.

 Num dos seus mais belos poemas, Edna cantou essa amorosa dissolução: “Que lábios meus lábios beijaram, e onde, e porquê, / Já não sei, nem que braços repousaram / Sob a minha cabeça até amanhecer…” Procurava amantes muito jovens, cuidando que não se encontrassem à sua porta e rifando-os depois com magnanimidade. Chamava-lhes “frescos destroços de naufrágio” quando vinham uivar à sua janela. Muito gostando, para o resto da vida, de Wilson e de Bishop, sempres lhes reprovou que, por ela, não tivessem espatifado a sua amizade masculina.

Casou com um industrial holandês de café que amou e a amava com uma liberalidade que faz espécie a este nosso tempo de assexuada vigilância raivosa. Outro poeta, George Dillon, mais novo 14 anos, foi a sua última aventura. Traduziram juntos As Flores do Mal, de Baudelaire. Não invento, foi Edna que escreveu: beijar a boca de Dillon era tão macio como beijar o mamilo de uma rapariga. Mas Dillon fez o que só Edna podia fazer: rejeitou-a. Antes dos 40, Edna via desvanecer-se o seu prodigioso poder erótico. Nos últimos 20 anos de vida, morfina, álcool e drogas vieram dormir à sua cama.

E-Millay

Publicado na minha coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios