Quem anda a comer Joyce?

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Ando a comer a “Madame Bovary”. Ora vejamos e toca a andar: não sou só eu.

Camélia, jovem francesinha de 14 anos, gosta de ler cinquenta páginas por dia. Quando entregue à devassidão da leitura, se lhe dá a fome, logo rasga bocadinhos de páginas, que mastiga com deleite, para apaziguar o ratinho que lhe rói o estômago. Mais e melhor, naqueles dias de extrema angústia adolescente, Camélia destaca cirurgicamente uma página inteira do livro e come-a com o mesmo ardor com que Aquiles incendiou a “Ilíada”. Pior, se lê uma página que não lhe agrada, come-a com voracidade canibal, o que, confessa, sempre lhe dá dores de barriga.

É provável que os pigmentos das cores, os aditivos estabilizadores e os elementos tóxicos associados ao papel e às tintas sejam ingredientes de dieta no mínimo irrecomendáveis. Mas nem isso impede Violette, outra francesa, de comer capítulos inteiros, hábito que lhe ficou de uma infância abusada, deixada em casa dias e dias com os irmãos, sem comida que se visse. Hoje, descamba na escatologia e come limpas folhas de papel higiénico.

Digam-me que é irreal e que é obsceno e eu indigno-me. Admiro os seres humanos que rivalizam com o peixinho-de-prata, parasita larvar que faz dos livros o seu menu diário. Todo o ministro da cultura devia ter a boca do peixinho-de-prata e passar o dia a comer livros, atacando-lhes a capa, perfurando em êxtase hermenêutico um túnel que levasse da página 2 à 159. Eis um programa de governo para Graça Fonseca: ser o peixinho-de-prata dos nossos livros. Aliás, o livro não é nada calórico, daí a elegância do peixinho-de-prata. Segundo os especialistas, a ingestão de 500 páginas, corresponde a meia caloria. Bem menos do que uma patanisca, arroz e feijão.

E passo de uma obscuridade a outra obscuridade: Marie Sochor, artista plástico-performativa, género muito apreciado por ministros, faz sessões públicas de ingestão de páginas da sua escrita, impressas em papel sem fermento, com tinta preta comestível. As mais apreciadas são as “pages à chier”, que me atrevo a chamar “páginas cagativas”. Não serei eu a lançar dúvidas sobre o valor laxante destes eventos.

E olhem, aí vem o livro lamber a boca subversiva do hip hop. Em delicado papel bíblia, Snoop Dogg, fez um livro para enrolar, “Rolling Words”. Capa em cânhamo, papel laminado, tinta não tóxica, tudo, mas tudo – ya, meu! – totalmente biodegradável, estas “Palavras Enroladas” são mesmo para fumar folha a folha.

Picasso não comia livros, mas deu, como Deus, a arte a comer ao seu cão salsicha, um Dachshund. Armava-lhe coelhinhos em papel, pintava-os e o Dachsund, cão esteta, chamava-lhes um figo.

Se chamei Deus ao parágrafo anterior, posso jurar que não o fiz em vão. Deus deu um livro a comer ao profeta Ezequiel. Está escarrapachado em Ezequiel capítulo 3, versículos 1 a 4: “Filho de ser humano, come este rolo, vai e fala aos filhos de Israel.” E disse-lhe Deus que o seu ventre ficaria saciado, o que Ezequiel confirmou: “Comi-o e na minha boca tornou-se doce como o mel.” Em verdade, em verdade vos digo, Jorge de Sena não teria sido o profeta que foi se não tivesse comido Fernando Pessoa, tal como o profeta do nosso século XXI, se o quiser ser, há de comer Pessoa e Sena.

Termino com um parágrafo heróico. O dinamarquês Theodore Reinking, em 1644, escreveu um tratado acusando os suecos da miséria da sua pátria. Foi preso e deram-lhe a escolher: ou era decapitado ou comia o manuscrito. Não hesitou: cozinhou as páginas num caldo de carne e comeu-o, salvando a vida.

Crónica publicada no Jornal de Negócios

Queremos bons livros. O seu?

Também a Guerra e Paz passou pela quarentena. Uma das consequências foi não termos aceitado receber, durante Março e Abril, até hoje, dia 7 de Maio, os originais que autores ou candidatos a autores nos submeteram. Reabrimos hoje a recepção de originais. Os autores ou candidatos a autores podem enviar os seus potenciais livros para o email originais@guerraepaz.pt juntamente com uma sinopse e um mini-texto biográfico.

Um conselho que damos a todos os candidatos é o de lerem, primeiro, este texto sobre a nossa política de recepção de originais. É um texto pessimista, até um pouco desencorajador. Mas é um texto realista. Há, no mundo do livro, dois planetas distintos. Um é o da literatura. No romance, narrativa ou na poesia, um candidato a autor deve ser altamente exigente. Temos, na literatura mundial e na literatura em língua portuguesa, uma tradição que é preciso conhecer e depois pensar: conseguirei ombrear minimamente com essa tradição?

Desconfie da ideia de que tem jeito para a escrita. Desconfie dos amigos que acham muito giro tudo o que escreve, uns versinhos sobre a amizade, o sol e a lua. A escrita, em particular o romance a a poesia, exige novidade, surpresa, arrebatamento, emoção. Exige um invulgar domínio da língua portuguesa para não recorrer às frases mil vezes batidas, à fácil metáfora de um “fio de luz” ou do “homem lobo do homem”. O romance e a poesia são criação e só as grandes vivências, muitíssima leitura dos grandes livros e abundante transpiração de anos e anos de escrita autorizam a ideia de publicar.

Outro planeta, completamente diferente, é o da não-ficção. Nesta área, a Guerra e Paz está mais aberta a novos autores. Queremos publicar livros de actualidade, livros de sociedade, livros práticos, livros sobre temas históricos, sociológicos, económicos, ou até desportivos, que tragam informação e que sejam assinados por autores que têm conhecimento e experiência dos temas que abordam. Queremos livros que informem, que discutam as ideias feitas, seja sobre política, seja sobre a justiça, a violência, a guerra, as drogas, os conflitos étnicos ou de género. E sim, temos uma inclinação muito especial para livros que não sejam politicamente correctos.

Privilegiamos, é claro, livros que tragam apoios, livros que com facilidade permitam parcerias com entidades, sobretudo privadas, mas também públicas, parcerias que passem por compras prévias, por acordos que ampliem a divulgação na Imprensa ou nas redes sociais. Há quem se indigne com esta ideia de buscarmos condições financeiras prévias à publicação. É um preconceito que até a História da literatura do século XX desmente. O primeiro livro do poeta Philip Larkin, poeta genial e controverso, nasceu assim. E quem tenha lido as maravilhosas cartas que trocaram Jorge de Sena e o capitão João Sarmento Pimentel leu e leu bem que ambos pagaram, do seu bolso quando os editores (e eram prestigiados editores) não conseguiram viabilizar as edições.

Há, por fim, a regra fundamental: não queira saber de conselhos, nem os dos amigos, nem os da pessoa amada, e ainda menos destes que por aqui derramei. Acredite em si, obsessiva, teimosamente, e mande-nos o seu original. Já!

O top de Abril: livros, a ténue vida

For Ezra Pound, Il Miglior Fabbro

 I. The Burial of the Dead
April is the cruellest month, breeding
Lilacs out of the dead land, mixing
Memory and desire, stirring
Dull roots with spring rain.
Winter kept us warm, covering
Earth in forgetful snow, feeding
A little life with dried tubers.

Para Ezra Pound, il miglior fabbro

I. O Enterro dos Mortos
Abril é o mais cruel dos meses, arrancando
lilases à terra morta, misturando
memória e desejo, atiçando
raízes entorpecidas com a chuva da Primavera.
O Inverno manteve-nos quentes, cobrindo
a Terra de neve desvanecida, alimentando
a ténue vida com tubérculos secos.

Nunca o mês de Abril fez tanta justiça ao começo do poderoso Waste LandTerra Devastada, de T. S. Eliot, que me atrevi a traduzir assim, ali em cima. Foi, este nosso mês de Abril de 2020, o mais cruel dos meses, mês do nosso desconcerto e tão fundo descontentamento, deixando-nos impotentes perante a morte, o ténue fio da vida quase a despedir-se das ruas, das estradas, da nossas casas e cidades.

Aqueceu-nos, neste gélido mês de medo e de ausência, o calor dos livros. E nós, na Guerra e Paz, sentimos esse pequeno orgulho de ter ajudado. Batemos à porta dos nossos leitores e entregámos-lhes livros. É com muito gosto que vos trazemos o top 12 dos livros que os nossos leitores mais pediram no nosso site:

Moby-Dick, de Herman Melville (tradução de Maria João Madeira)
Antologia de Poesia Romena Contemporânea
Gramática Para Todos, de Marco Neves
Madame Bovary, de Gustave Flaubert (tradução de Helder Guégués)
Lord Jim, de Joseph Conrad (tradução de João Moita)
Orgulho e Preconceito, de Jane Austen (tradução de Diogo Ourique)
As Meninas, de Agustina Bessa Luis
Assim Nasceu uma Língua, de Fernando Venâncio
Correspondência 1949-1978: Jorge de Sena e Eugénio de Andrade
Correspondência 1959-1978: Jorge de Sena e João Sarmento Pimentel
Fama E Segredo na História de Portugal, de Agustina Bessa Luís
São Paulo, Prisão de Luanda, de Carlos Taveira (Piri)

A sofisticação das escolhas dos nossos leitores deixa-nos felizes. Em primeiro lugar, porque esta lista realça os grandes valores da literatura mundial, de Herman Melville a Joseph Conrad, com traduções novas em que a Guerra e Paz investiu, e da literatura portuguesa, de Agustina a Sena, passando por Eugénio de Andrade. É também uma escolha atenta aos excelentes trabalhos de dois linguistas ligados à Guerra e Paz, Fernando Venâncio e Marco Neves. E há esse sinal de atenção ao mundo, à história recente que é o caso específico do livro de prisão de Carlos Taveira. O nosso orgulho é termos publicado estes livros e tê-los no nosso catálogo.

Esta é uma bela lista: a lista com que os leitores nos mostram o que esperam da Guerra e Paz editores.

A língua em êxtase

Eu só queria lembrar, no vosso melhor interesse, que acaba hoje, Dia Mundial da Língua Portuguesa, a Feira da Língua que a minha Guerra e Paz organizou. Acaba em beleza, com êxtase eróticos, muito vinho ou falta dele, uma viagem épica e a preguiçosa deambulação da família Maia. Ora vejam.


E há depois, no exercício da língua, os momentos de êxtase. Na língua portuguesa também. Hoje, nesta Feira da Língua Portuguesa, deixem que vos recomende quatro livros que ajudaram a fundar a língua portuguesa, transportando-a a êxtases de construção frásica, à descoberta de associações entre palavras que criam novas imagens no nosso espírito.

Começo por estes Poemas Eróticos dos Cancioneiros Medievais Galaico-Portugueses. A organização é de Victor Correia e tem uma extraordinária vantagem para o leitor contemporâneo: os textos estão vertidos para o português que falamos, agora, no remanso dos nossos dias.

Convido-o depois a deambular por Lisboa, de taberna em taberna, com Maria Parda, essa mulher esmagada pela sede , que não consegue obter vinho fiado de nenhum taberneiro. O Pranto de Maria Parda, belíssimo, intenso, com uma mulher negra ou mestiça como invulgaríssima protagonista, é um texto, um monólogo, menos conhecido de Gil Vicente, secreta delícia, a que juntámos o mais conhecido Auto da Barca do Inferno.

E temos Os Lusíadas. Desafio-o a ver se é ou não a melhor edição que se publicou entre nós nos últimos anos. Edição cuidada, com o texto comentando em coluna paralela e não intrusiva, com os comentários de Helder Guégués.

Por fim, de Eça, oferecemos-vos Os Maias, que Jorge Luis Borges considerou com um grande romance, a par dos grandes romances que marcaram a viragem em que o século XIX vai já, por dissolução, anunciando o século XX.

Estes livros podem ser seus – por dois ou dez réis de mel coado. Se for por dez ainda leva consigo, e juro que não lhe cabe na algibeira, a nossa Tabacaria em caixa de madeira, o rolls-royce das nossas edições Guerra e Paz.

Não são livros, são os lírios do campo

Hoje, trago-vos, cinco clássicos das literaturas de língua portuguesa. No caso, a portuguesa e a brasileira.

O que faria eu se estivesse nos sapatos dos leitores da Guerra e Paz? É simples, lia-os todos. Com garantia de divertimento e de que, em todos, encontrarão situações deliciosas. Comecem por Gil Vicente. Já todos leram o Auto da Barca do Inferno, bem sei. Mas quem leu este Pranto de Maria Parda. E quem é essa mulher que vem do século XVO, percorrendo Lisboa como nós, em confinamento, agora não a percorremos? É negra, mestiça? Sabemos só pela sua fala, pela sua voz – e que voz popular, Gil Vicente lhe emprestou! –  que precisa de beber vinho e que nenhuma tasca ou taberna lhe dá vinho fiado. Que difícil era beber vinho em Lisboa. E que riqueza há na voz sedenta de Maria Parda.

E voltem-me pelas alminhas a ler Os Lusíadas – este Os Lusíadas que Helder Guégués anotou estrofe a estrofe, tornando-o mais acessível sem mexer numa vírgula do texto integral. Vejam bem a arrumação do texto central e das anotações em coluna ao lado, sem interferir. Um belo trabalho conjunto de Guégués e do meu designer, o Ilídio Vasco. Tenham lá paciência, mas esta edição contemporânea é de uma beleza e de uma utilidade que mais nos arrastam a ir a correr pelas estrofes eróticas do celebrado canto IX do meu tempo de liceu. Li e voltei a corar até à ponta dos cabelos.

E convido-vos a reflectirem com Camilo sobre O Que Fazem Mulheres. Esta história de um equívoco – só um? – além da trama e exuberância camiliana tem, neste livro um tratamento gráfico único na história da edição portuguesa. Camilo inventou um capítulo que o leitor pode pôr onde quer. A Guerra e Paz fez-lhe a vontade. Camilo escreveu cinco páginas que o leitor não deve ler, pois nós escondemos essas cinco páginas. Não há outro livro assim com um capítulo nómada e um cinco páginas clandestinas. Descubra com os seus próprios olhos.

Os dois livros brasileiros são de Machado de Assis, príncipe da nossa língua e da narrativa romances. As Memórias Póstumas de Brás Cubas, um oásis de ironia cáustica, é talvez o primeiro romance a ser narrado por um morto. Machado antecipou-se largamente a Hollywood e ao maravilhoso Sunset Boulevard de Billy Wilder.

E, por fim, leiam O Alienista e conheçam o Dr. Bacamarte, que casa com Dona Evarista, nem bela, nem gentil, para que lhe dê filhos vigorosos, musculados e com a inteligente vivacidade de um Einstein. Vai dar-se bem? Leiam, mas façam-me um favor, não o convidem a visitar-nos nestes tempos de reclusão. Descubram o que ele fez ao povo de Itaguaí e digam-me se nós merecemos tal sorte.

São cinco livros, por dois tostões de mel coado cada um: correm por eles os nossos olhos como a corça por prado verdejante.

Angola é nossa? A minha feira do livro angolano

A Guerra e Paz editores tem duas faces como a lua. Uma das faces é a sua pulsão tropical. Parece uma face escondida, mas irrompe, luminosa, quando nos debruçamos ligeiramente sobre o equador. A culpa é minha, deste vosso editor. Alguém me entra pela porta da editora dentro e diz “Angola” e é como se fosse a palavra passe para a publicação.

Eu sou um complexado. Tenho o complexo de ter sido feliz, de infância, adolescência, primeira idade de homem, em Angola. Em cada livro angolano que publiquei reencontro esse gosto de vida desprendida, inocente, cheia de tempo e inconsumismo, o gosto de outro tempo, um gosto de Sambizanga, um gosto de Vila Alice, um gosto de liceu, do velho Salvador.

E então, assim, com os devagares de uns mais velhos, alfinetados pelo nervoso candengue de outros mais revus, eis que cheguei a esta lista de 27 títulos angolanos. São, em boa verdade, 27 viagens a Angola. Viagens de aventura, viagens poéticas, viagens bem políticas ou históricas, viagens de mergulho na cultura, a da tradição ou a mais coetânea.

Agora, neste tempo sem viagens, em que já começamos a marinhar paredes acima, e a olhar o chão do nosso quarto lá do tecto, eu quero convidar-vos a saírem das vossas quatro paredes e a pularem para esse mundo jovem, colorido, aromático, enérgico, cheio de abissais diferenças e tremendos conflitos. Venham a Angola, esse mundo de contradições, feridas e sonhos, nesta nossa Feira do Livro Angolano.

Há razões para olhar para estes livros? Há e digo, sem esquecer os monumentais descontos, que chegam nalguns casos a 50% do preço original, o que põe praticamente todos os preços em 10 euros.

E as razões são:

A vivíssima pluralidade ideológica.

O plural arco-íris de leituras e testemunhos sobre a História recente.

A sonora pluralidade estética, que contempla poesia, cinema, romance, máscaras e dança.

O que eu quero dizer é que nestes livros nada se esconde: dos dias trágicos da guerra da independência aos dias agitados da prisão dos revus, de um romance esplendidamente metafórico sobre a boca e o ânus de um ditador aos poetas contemporâneos que se filiam na bela tradição de um Viriato da Cruz, este é, letra a letra, o retrato de Angola em 27 livros.

Ora vejam:

FEIRA DO LIVRO ANGOLANO

Independência, História e Luta Política

Os Meu Dias da Independência, Onofre Santos

Angola AmordaçadaDomingos da Cruz

Mal Me QueremGeneral Nzau Puna

São Paulo, Prisão de LuandaCarlos Taveira (Piri)

Os Conflitos em África e a Experiência de Angola na Sua Resolução, Embaixador Mário Augusto

Cabinda, Um território em DisputaSedrick de Carvalho

E Se Angola Tivesse Proclamado a Independência em 1959?, Jonuel Gonçalves

O Fim da Extrema Esquerda em AngolaLeonor Figueiredo

Franco-AtiradoresJonuel Gonçalves

Breve História da Angola Moderna (séc. XIX-XXI)David Birmingham

 

Romances

Quem Me Dera Ser OndaManuel Rui

O Ocaso dos PirilamposAdriano Mixinge

Assim Escrevia Bento KissamaCarlos Taveira (Piri)

A Ilha de Martim VazJonuel Gonçalves

Essa Dama Bate BuéYara Monteiro

O Kaputo Camionista e EusébioManuel Rui

Lenguluka, Crónica de um Amor a Grande VelocidadeOnofre Santos

Poesia

Guardados numa Gaveta Imaginária, Tchiangui Cruz

Angola, me diz aindaJosé Luís Mendonça

Arte, Cultura, Estudos

Máscaras CokweAna Clara Guerra Marques

O Beijo da Madame KizerboAdriano Mixinge

Angola, O Nascimento de uma Nação I – O Cinema do ImpérioMaria do Carmo Piçarra, Jorge António

Angola, O Nascimento de uma Nação II – O Cinema da Libertação, Maria do Carmo Piçarra, Jorge António

Angola, O Nascimento de uma Nação III- O Cinema da IndependênciaMaria do Carmo Piçarra, Jorge António

O Pequeno Dicionário CaluandaManuel S. Fonseca

Poluição do Meio Ambiente MarinhoMargarida de Almeida

A Economia Não Oficial Urbana Em LuandaManuela Venâncio

O erotismo segundo a Pontifícia Universidade de São Tomás de Aquino

O professor Victor Correia é um autor sui generis da Guerra e Paz. Anima-o um amor desinteressado pela literatura a que é impossível um editor resistir. Depois de reunir pequenos e pequeníssimos contos, mais raros e pouco lidos, de autores portugueses no livro Pequenas Histórias dos Grandes Clássicos da Literatura Portuguesa, um livro que merecia ter tido outra recepção crítica e maior adesão dos leitores (isto sou eu a chorar-me, carregadinho de razão), Victor Correia entregou à Guerra e Paz um bestseller, um verdadeiro campeão de vendas e de popularidade.

Estou a falar dos Poemas Eróticos dos Cancioneiros Medievais Galego-Portugueses. A fortuna deste livro começou, logo, no programa Governo Sombra, quando João Miguel Tavares o propôs como livro da semana e cada um dos outros intervenientes, Pedro Mexia, Ricardo Araújo Pereira, Carlos Vaz Marques leu versos ardentes de um dos poemas eróticos. E a verdade é que a fortuna deste livro começa na escolha e na abordagem de Victor Correia. Ele escolheu poemas de autores galegos e portugueses (que nem saberiam se eram galegos ou portugueses) escritos na língua que também não se sabia se era só galega ou se já era também portuguesa, isto para seguirmos o que o mestre Fernando Venâncio nos ensina. Victor Correia frequentou a Pontifícia Universidade de São Tomás de Aquino, em Roma, e logo, lendo este livro, ficamos a pensar nas belas coisas que ali se ensinam, mas não ficou preso a fórmulas canónicas e estritas: é que seleccionou os poemas com critérios académicos, mas depois fez o abençoado sacrilégio de os traduzir para o português contemporâneo, pondo-os ao alcance do leitor comum. Ou seja, deu-lhes vida. O mesmo que, recentemente, o escritor Andrés Trapiello fez em Espanha, “traduzindo” para espanhol contemporâneo o Don Quixote, pondo-o assim ao alcance dos espanhóis que, ao contrário dos portugueses, franceses, ingleses, não podiam ler (e não liam!) o livro no idioma contemporâneo, desistindo muitas vezes perante a barreira do espanhol do século XVII.

Foi o que fez Victor Correia. Fez bem, fez serviço público, como podem ler no excerto que oferecemos. Estes poemas eróticos, a roçar por vezes o escatológico, tratando de casamentos, adultérios, poligamia, incesto, e outras heterodoxias sexuais, são de uma franqueza, de uma candura, diria eu, cristalina, mas não sem ironia e sem um pendor lúdico que nos solidariza com esses humanos que viveram há oito ou nove séculos antes de nós. Eis aqui, na ligação em baixo, a nudez que nos une.

Poemas Eróticos dos Cancioneiros Medievais

A arte nem pode, nem anti-pode

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Marilyn desreprimiu o baixo-ventre do cinema

A fúria com que, em “Red River”, Montgomery Clift e John Wayne esmurram as ventas um do outro não é de esquerda nem de direita. Os murros deles não são políticos. Nem é político o rabo de Marilyn Monroe, que em curtas cenas de 20 segundos, desreprimiu o recalcado baixo-ventre do cinema, a cores em “Gentlemen Prefer Blondes” e a preto e branco em “Some Like It Hot”, por obra e graça do bom olho de Hawks e de Wilder.

Filmes, poemas, romances, pintura, mesmo a do comunista Picasso, não são políticos. Não me venham dizer que a poesia é anti-poder ou pró-poder. O poeta pode ser fascista ou comunista. Maiakovski ou o dúbio Aragon eram comunistas, Ezra Pound era fascista e T. S. Eliot talvez andasse lá perto; o pluralíssimo Pessoa, se alguma coisa fosse, era de direita, e o queixinhas Ginsberg uivava parvamente à realidade. Mas se ainda os lemos como poetas é porque a poesia deles continua a transfigurar a modesta realidade política que na vida os entretinha.

Camões cantou o Gama em “Os Lusíadas”, mas um só olho de Camões criou em dez cantos um herói que o real e cruel Vasco da Gama, ocupado com a canela e a pimenta, não reconheceria. Como não reconheceria o Gama que Robert De Niro teria sido se algum desmiolado estúdio americano tivesse decidido pagar a Samuel Fuller o filme com que o cineasta americano queria incensar o navegador português.

Poemas, filmes e romances seriam muito pequeninos se reduzidos à deslavada ideia de serem anti-poder. Nem há mal intrínseco em haver poder, afinal uma humaníssima e necessária realidade. E os males que escorram do exercício do poder são para se lavar na cama real da política. Mas as traições e as conspirações de Shakespeare, as bruxas de Macbeth e o fantasma de Hamlet, o arrebatado discurso de Marlon Brando com o cadáver de Júlio César aos seus pés, já são da matéria dos sonhos.

A beleza de poemas e filmes, de canções e pintura está na sua esplendorosa inutilidade. A grandeza das artes está na individualíssima convulsão que precisam de nos provocar se quiserem ser arte: uma convulsão íntima, vergonhosamente espiritual e libidinosa. Os nossos melhores cantores de intervenção, no PREC, quiseram servir uma forma dita utópica de poder. “E se eles ganharem?” perguntou um amigo meu a um desses cantautores, que era genuíno e grande. “Bom – disse ele –, temos de ser os primeiros a fugir.”

A Winchester de John Wayne, a voz e a guitarra da canção não são armas de serventia. Seja do poder, seja do antipoder.