Bem-aventurados livros que nos levam ao reino dos céus

A Guerra e Paz, em Maio, atira-se com toda a sede ao pote. Temos livros de combate e livros de puro prazer, para não dizer êxtase.

Lançamos-lhe um desafio. Faça uma pré-compra e beneficie de condições ultrajantemente excepcionais. É muito simples. Ora veja.

Não só tem um desconto de 10% em cada livro de que faça a pré-compra, como lhe oferecemos, se a sua compra for de 20€ ou mais, um livro lindíssimo, Contradança, com as cartas de Camões, e com a as ilustrações de um espião holandês que viajou para Goa infiltrado na corte do primeiro arcebispo português e, da Índia, mandou desenhos que revelavam a vida e os hábitos dos portugueses. São ilustrações extraordinárias desse terrível espião que dava pelo nome de Jan Huygen van Linschoten.

Se se entusiasmar e fizer uma pré-compra no valor de 40€ ou mais, não só lhe oferecemos a Contradança de Camões, como também um exemplar deste Livro de Agustina, a autobiografia que Agustina Bessa Luís escreveu pondo a língua portuguesa a roçar pelo mistério, insólito e contradições, como só ela era capaz de fazer.

E agora é só escolher os livros de combate e ideias ou os livros de prazer.

Nos primeiros, Combates pela Verdade, Portugal e os Escravos, da autoria de João Pedro Marques, é um livro que se confronta e ataca a leitura da escravatura proposta, por exemplo, por figuras como Fernando Rosas ou Fernanda Câncio. É um livro que se reivindica da História e dos seus métodos. Polémico em alto grau.

Testamento Vital, nos Dilemas Éticos do Fim da Vida, de um médico, J. Filipe Monteiro, traz-nos a uma discussão de que foi exemplo a recente situação da disponibilidade dos ventiladores em plena crise da Covid-19: até onde é que se deve levar a obsessão terapêutica e manter artificialmente ligado à máquina um doente sem cura. Saiba o que é o Testamento Vital.

E se quer conhecer as ideias de uma legião de novos autores das mais diversas áreas artísticas, ligado à Sociedade Portuguesa de Autores, de Boss A.C. a Rita Redshoes, passando por David Fonseca ou Maria Inês Almeida e Rita Vilela. Leia já estas entrevistas de Lugar dos Novos, uma co-edição da SPA com a Guerra e Paz.

Mas passemos ao sonho. Oferecemos-lhe, antes de mais, uma versão única de O Principezinho. Além do texto original integral, com as maravilhosas ilustrações, esta edição contém uma parte final em que se viaja pelo livro clássico com a apresentação de enigmas, perguntas e aventuras propostas pelo editor Manuel S. Fonseca. Não há nenhuma edição igual em Portugal.

Há mais duas viagens de puro prazer, ambas por Angola, mas muito distantes no tempo e no tom. Leia, de Onofre Santos, A Vida e Morte do Comandante Raúl Morales. É um mimo de amor e guerra, de combate e dança, de sedução e drama. Onofre Santos revela a sua pulsão sedutora e erótica. Ou será o comandante cubano Raul Morales, o protagonista, que domina o autor e o leva para onde quer?

Por fim, Estamos Aqui, de Branca Clara das Neves – com ilustrações prodigiosas de Neusa Trovoada –, em três línguas, português, kicongo e francês, é uma viagem pela cosmogonia kongo. Um livro mágico, encantatório, carregado de simbolismo, uma preciosidade estética, combinatória de ficção em que seres humanos e esculturas se tocam e confundem, subindo rio Congo acima, com passagem pelos lugares míticos que são Nóqui e Matadi. Um livro para ter na mão.

Basta comprar dois destes livros e Camões vai logo consigo. Com mais um jeitinho, e ligeira abertura do porta moedas, a grande Agustina logo se junta a Camões. Só mesmo na Guerra e Paz editores.

Não são livros, são os lírios do campo

Hoje, trago-vos, cinco clássicos das literaturas de língua portuguesa. No caso, a portuguesa e a brasileira.

O que faria eu se estivesse nos sapatos dos leitores da Guerra e Paz? É simples, lia-os todos. Com garantia de divertimento e de que, em todos, encontrarão situações deliciosas. Comecem por Gil Vicente. Já todos leram o Auto da Barca do Inferno, bem sei. Mas quem leu este Pranto de Maria Parda. E quem é essa mulher que vem do século XVO, percorrendo Lisboa como nós, em confinamento, agora não a percorremos? É negra, mestiça? Sabemos só pela sua fala, pela sua voz – e que voz popular, Gil Vicente lhe emprestou! –  que precisa de beber vinho e que nenhuma tasca ou taberna lhe dá vinho fiado. Que difícil era beber vinho em Lisboa. E que riqueza há na voz sedenta de Maria Parda.

E voltem-me pelas alminhas a ler Os Lusíadas – este Os Lusíadas que Helder Guégués anotou estrofe a estrofe, tornando-o mais acessível sem mexer numa vírgula do texto integral. Vejam bem a arrumação do texto central e das anotações em coluna ao lado, sem interferir. Um belo trabalho conjunto de Guégués e do meu designer, o Ilídio Vasco. Tenham lá paciência, mas esta edição contemporânea é de uma beleza e de uma utilidade que mais nos arrastam a ir a correr pelas estrofes eróticas do celebrado canto IX do meu tempo de liceu. Li e voltei a corar até à ponta dos cabelos.

E convido-vos a reflectirem com Camilo sobre O Que Fazem Mulheres. Esta história de um equívoco – só um? – além da trama e exuberância camiliana tem, neste livro um tratamento gráfico único na história da edição portuguesa. Camilo inventou um capítulo que o leitor pode pôr onde quer. A Guerra e Paz fez-lhe a vontade. Camilo escreveu cinco páginas que o leitor não deve ler, pois nós escondemos essas cinco páginas. Não há outro livro assim com um capítulo nómada e um cinco páginas clandestinas. Descubra com os seus próprios olhos.

Os dois livros brasileiros são de Machado de Assis, príncipe da nossa língua e da narrativa romances. As Memórias Póstumas de Brás Cubas, um oásis de ironia cáustica, é talvez o primeiro romance a ser narrado por um morto. Machado antecipou-se largamente a Hollywood e ao maravilhoso Sunset Boulevard de Billy Wilder.

E, por fim, leiam O Alienista e conheçam o Dr. Bacamarte, que casa com Dona Evarista, nem bela, nem gentil, para que lhe dê filhos vigorosos, musculados e com a inteligente vivacidade de um Einstein. Vai dar-se bem? Leiam, mas façam-me um favor, não o convidem a visitar-nos nestes tempos de reclusão. Descubram o que ele fez ao povo de Itaguaí e digam-me se nós merecemos tal sorte.

São cinco livros, por dois tostões de mel coado cada um: correm por eles os nossos olhos como a corça por prado verdejante.

Regresso ao liceu

fonseca
Eu entre Todo-Mundo e Ninguém

Dos livro que nos obrigaram a ler no liceu, quais os cinco de que mais gostei, quais os cinco que detestei.

Já nem sei se, no “meu tempo”, “fui obrigado” a ler 10 livros. Tínhamos antologias. Bem boas algumas. E liam os meus colegas muito coisa a que não estavam obrigados ou sobretudo, e com rebrilhante entusiasmo, aquelas coisas que eram “obrigados” a não ler. Aprendi com eles. O que se segue é, entre “robusta” e arábica”, a mistura certa daquele tempo, do que por obrigação se lia e do que por obrigação de não ler tanto se queria ler.

O meu primeiro amor escolar foi uma dupla,  “Todo-Mundo” e “Ninguém”, do “Auto da Lusitânia” de Gil Vicente. Cito:

Ninguém: Como hás nome, cavaleiro?
Todo-Mundo: Eu hei nome “Todo-Mundo” e meu tempo todo enteiro sempre é buscar dinheiro, e sempre nisto me fundo.
Ninguém: E eu hei nome “Ninguém”, e busco a conciência.

O diálogo, como bem se lembram, era acompanhado por dois diabinhos, Dinato e Berzebu, que se encarregavam de tudo bem anotar para mais tarde relatarem a Lucifer.

Dinato: Que escreverei companheiro?
Berzebu: Que “Ninguém” busca conciência e “Todo-Mundo” dinheiro.

Gil Vicente era um moralista? Era. E então? Era um moralista sofisticado que, como diz Jorge de Sena, construiu as suas peças pelos mais modernos padrões do Renascimento. Li e gostei do contraste tão nítido, de serem claros e simples opostos sem degradé pelo meio, como gostei do sublinhado irónico que aos personagens vivos tão bem davam os diabos mortos.

Li e na altura pareceram-me feitos da mesma massa, o que só prova que já era mau crítico literário, o popularíssimo “A Rosa do Adro” (que o cinema adaptou duas vezes) e “As Pupilas do Senhor Reitor” (que já deu 3 filmes). São as minhas maiores concessões a um ruralismo lusitano a que, vivendo urbano e nos trópicos, tive de fazer tremendo esforço para aderir. Não sabia o que fazer com tantos invernos, tantos adros de aldeia, lareiras, lenços e arrecadas ou vestidos folhados, mas, desses dois romances, o tom folhetinesco foi irresistível, como irresistível seria depois e por outras razões o escândalo perfumado a incenso de “O Crime do Padre Amaro” lido fora do currículo, embora no aconchego da linda (e excelente) biblioteca do Liceu Salvador Correia – o êxtase dos meus 14 anos.

O quinto mais gostado, hoje primeiro, foi também um dos mais detestados. “Os Lusíadas” foram, enquanto ringue de divisão de orações e outras formas de pugilato gramatical, o tormento dos 13 e 14 anos (não me lembro já se o líamos no 4º ou no 5º ano de liceu). Mas as primeiras estrofes de armas e barões tinham ritmo, música e uma riqueza imagética a que era preciso ser-se muito bronco para se ficar insensível. Oito cantos adiante, quando “fugindo as Ninfas vão por entre os ramos”, escancarados os deleites das Ilhas, as “alvas carnes súbito mostradas” no canto IX excluído do currículo, o nosso pequeno e adolescente coração entregava-se seguro e imprudente ao deleite da leitura.

Outra falta moral grave de que me penitencio foi a de ter tido a minha melhor nota escolar num trabalho (que falso que fui!) sobre o “Frei Luis de Sousa” que, como as “Lendas e Narrativas”, Garret e Herculano, aceitei mas de tão secos os achar não amei. Por um daqueles acasos que só o são de não o serem, tinha começado, dos 15 para os 16, a ler “A Náusea”, “O Fio da Navalha” e alguns parvos dos romancistas russos. O contraste foi terrível e liquidou qualquer veleidade de leitura de primeiro grau dos dois epígonos do romantismo (tardio?) português.

À margem de toda a datação, acrescente-se que detestei Verney e outros estrangeirados, como detestei a “Castro”. Gostei sim de poemas, os de Sá de Miranda, a excelência camoniana, os de Bocage, Cesário, Nobre e Pessanha. Gostei dos poemas, o resto era Portugal e “eu” começava a querer ser independente.

 

Camões por Ezra Pound

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A literatura é como um altar. E nem sei para que quero a conjunção. Recomeço: a literatura é o altar. Não há lugar, no altar, para outra coisa que não sejam heróis ou deuses.

Um poeta, um génio, um conservador anárquico e primitivo, um espírito perverso e revolucionário, trouxe-me, pela mão, por este caminho. Li-lhe os epigramas, os poemas que são Os Cantos. Mas depois – “a cor da água depende do leito do rio, das margens que a apertam e por que ela passa” – vi o amor a-cronológico dele pelos poetas, por Teócrito ou Yeats, pelos mortos e pelos ainda vivos quando ele estava vivo, e descobri que sempre um poeta é, então é nosso contemporâneo. Ou não é poeta. A Idade Média é hoje e hoje é a Idade Média. A alvorada de Camões é a meia-noite de Walt Withman.

Em onze páginas de livro de bolso, Ezra Pound saudou Camões. O poeta americano, fascista, cantou Luis de Camões, poeta português, que cantou a mudança de que todo o tempo é composto e nessa mudança filosoficamente se louvou.

Pound, nesse brevíssimo ensaio, fala de um tempo em que o mundo se alargou. Caíra Constantinopla e cortadas as rotas das caravanas era preciso buscar o Oriente que perigosa e inocentemente, hoje nos assalta.

Ainda o posterior Lope de Vega tinha um pé na Idade Média e já o anterior Camões, diz Pound, é um sintoma do tempo novo, renascentista. Arquitecto, prossegue, de uma força literária barroca sem o qual (insinua ele, atrevo-me eu a concluir) não haveria Shakespeare.

Pound está a falar da poesia de Camões e de “Os Lusíadas”. Leio-vos só, entre scones e chá, este bocadinho:

Os ingleses não terão a mais pequena ideia da beleza da sua obra enquanto os tradutores se obstinarem em converter cada palavra portuguesa numa palavra inglesa com a mesma raíz latina.

A tradução de Camões com palavras de origem saxónica exigiria que se estudasse a dicção com o mesmo cuidado que o autor, mas conservando a força do original.

Pound elabora sobre a ênfase e o esplendor do poeta português, reconhece-lhe o vigor e a integridade e conclui: “Camões é o Rubens da Poesia.

Pound caminha sobre “Os Lusíadas” como quem sobe pela primeira vez uma montanha. Vê na obra o sentimento da multidão, do povo, da História daquela época. Deixa-se fascinar pela novidade da remota geografia, pelos costumes bizarros de povos longínquos, elogia-lhe o sopro poderoso, o prazer que se solta da sonoridade dos versos. Pound gosta do que em português ele chama versos simples e directos de Camões, infelizmente prejudicados pela tentativa de conservação da ordem das rimas nas traduções que conhecia.

Mestre de uma língua e do seu ritmo, como se pode ler em “Os Lusíadas”, exemplo de “um alto estilo mantido ao longo de dez Cantos”, Camões é poeta de uma poesia mais próxima da música, da pintura e da escultura do que de toda essa literatura que não é poesia.