A literatura é como um altar. E nem sei para que quero a conjunção. Recomeço: a literatura é o altar. Não há lugar, no altar, para outra coisa que não sejam heróis ou deuses.
Um poeta, um génio, um conservador anárquico e primitivo, um espírito perverso e revolucionário, trouxe-me, pela mão, por este caminho. Li-lhe os epigramas, os poemas que são Os Cantos. Mas depois – “a cor da água depende do leito do rio, das margens que a apertam e por que ela passa” – vi o amor a-cronológico dele pelos poetas, por Teócrito ou Yeats, pelos mortos e pelos ainda vivos quando ele estava vivo, e descobri que sempre um poeta é, então é nosso contemporâneo. Ou não é poeta. A Idade Média é hoje e hoje é a Idade Média. A alvorada de Camões é a meia-noite de Walt Withman.
Em onze páginas de livro de bolso, Ezra Pound saudou Camões. O poeta americano, fascista, cantou Luis de Camões, poeta português, que cantou a mudança de que todo o tempo é composto e nessa mudança filosoficamente se louvou.
Pound, nesse brevíssimo ensaio, fala de um tempo em que o mundo se alargou. Caíra Constantinopla e cortadas as rotas das caravanas era preciso buscar o Oriente que perigosa e inocentemente, hoje nos assalta.
Ainda o posterior Lope de Vega tinha um pé na Idade Média e já o anterior Camões, diz Pound, é um sintoma do tempo novo, renascentista. Arquitecto, prossegue, de uma força literária barroca sem o qual (insinua ele, atrevo-me eu a concluir) não haveria Shakespeare.
Pound está a falar da poesia de Camões e de “Os Lusíadas”. Leio-vos só, entre scones e chá, este bocadinho:
“Os ingleses não terão a mais pequena ideia da beleza da sua obra enquanto os tradutores se obstinarem em converter cada palavra portuguesa numa palavra inglesa com a mesma raíz latina.
A tradução de Camões com palavras de origem saxónica exigiria que se estudasse a dicção com o mesmo cuidado que o autor, mas conservando a força do original.”
Pound elabora sobre a ênfase e o esplendor do poeta português, reconhece-lhe o vigor e a integridade e conclui: “Camões é o Rubens da Poesia.”
Pound caminha sobre “Os Lusíadas” como quem sobe pela primeira vez uma montanha. Vê na obra o sentimento da multidão, do povo, da História daquela época. Deixa-se fascinar pela novidade da remota geografia, pelos costumes bizarros de povos longínquos, elogia-lhe o sopro poderoso, o prazer que se solta da sonoridade dos versos. Pound gosta do que em português ele chama versos simples e directos de Camões, infelizmente prejudicados pela tentativa de conservação da ordem das rimas nas traduções que conhecia.
Mestre de uma língua e do seu ritmo, como se pode ler em “Os Lusíadas”, exemplo de “um alto estilo mantido ao longo de dez Cantos”, Camões é poeta de uma poesia mais próxima da música, da pintura e da escultura do que de toda essa literatura que não é poesia.
Eis um poeta que tenho de conhecer de mais perto, olhos nos olhos. A minha ignorância nem sequer sabia que tinha escrito sobre Camões. Mas diz bem o Manuel, a poesia é sempre presente. Como qualquer boa literatura.
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Marque encontro com o senhor Pound 🙂
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Chateia-me, e não é pouco, que La Pléiade publique Pessoa, a seguir venha o Lobo Antunes, e não tenha começado pelo Camões. A culpa é só nossa. Não divulgamos, ou só o fazemos porque está a dar (houve uma altura em que já não podia ouvir falar do Pessoa). O Lobo Antunes – Saramago é como a Simone -Madalena Iglésias, ajuda a manter a coisa. Os Lusíadas são um monumento, a Lírica camoniana é do mais bonito que se publicou na nossa língua, mas é mais fácil exportar o sol e a praia. “Esta é a ditosa pátria minha amada” que tão mal trata o filho que melhor a cantou.
Façam lobby, gaita!
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Eu já fiz a minha parte. Publiquei Os Lusíadas. Uma versão de que me orgulho, com um trabalho cuidado de Helder Guégués. Vou trazê-la aqui., prometo.
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Todo o português devia ter em casa pelo menos uma edição dos LUSÍADAS, anotada ou não, assim como os italianos têm da Divina Comédia do Dante., alguns até a sabem de cor.
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Albertino,já comprou a edição d’Os Lusíadas que a minha Guerra e Paz publicou?
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