Das edições que já fiz na minha lamentável vida de editor, esta é uma das que me é mais querida. Caiu-me nas mãos um livro francês, Le Bordel des Muses, de Claude Le Petit. Foi logo tiro e queda. Mas não era mesmo nada líquido que o livro francês pudesse dar um livro português. Não se publica poesia em Portugal — é praticamente proibido por lei. E ainda menos se publica um francês. Muito menos um francês do século XVII.
A minha sorte e a sorte de Le Petit é que ele foi queimado na fogueira por obscenidade. Ora isso é logo uma carta de nobreza. Pensei que se arranjasse mais uns títulos nobiliárquicos a coisa se podia arranjar. Fui à cata de aristocratas. Primeiro, para lhe dar forma poética em português, descobri a Eugénia de Vasconcellos. É poeta e palpitou-me fortemente que ela era capaz de dar aos arroubos obscenos de Le Petit uma equivalência em língua de Pessoa que fosse irmã humana da poesia francesa. Depois, bati à porta de outro artista, João Cutileiro, e pedi-lhe que reinventasse este Le Petit em desenho. Cutileiro não o ilustrou, preferiu ir descobrir-lhe a gentileza que está sempre por trás da pornografia quando ela é poética.
O que a Eugénia e o João fizeram é tão bonito que me comove. E o tanto que me comoveu e exaltou pode ver-se nos materiais em que este livro está feito, no grafismo, no papel. Não me chegou. Não quis ficar de fora na festa de sentidos que este livro já era. Escrevi um texto, até para dizer quem era este Le Petit que agora, assim, entra na língua e na edição portuguesas. É um aperitivo. Para que leiam, inteirinho, este (tão bonito, não é?) o Bordel das Musas ou as nove donzelas putas, do grande Le Petit.

Claude Le Petit foi queimado vivo no primeiro dia de Setembro de 1662, na Praça de Grève, em Paris. Diga-se: com 23 tenros anos de idade. A fogueira onde ardeu era cartesiana: queimaram-lhe o corpo por causa dos pecados da alma.
Filho de um alfaiate, Le Petit tinha na escrita o seu maior talento. Um talento transbordante, irreverente, físico, carnal. Escreveu desalmadamente, mas as hipóteses de publicação foram escassas e mal pagas. A estudar Direito em Paris, com uma reles bolsa paterna, Le Petit deixou-se seduzir pelos meios e convívio libertinos. Numa França de Luíses, o XIII e o XIV, de poder ferreamente centralizado, o libertino – transgressivo e a roçar-se filosoficamente pelo ateísmo – é um livre-pensador que faz passar a liberdade de espírito pela prova do deboche e dissolução do corpo. É por isso lógico que, para Le Petit, o magnífico corpo humano, falo, cona e cus, juntamente com o tinir das moedas, e sobretudo a ominosa falta de cheta, sejam as obsessões maiores.
Não admira que, sem desmerecer a paixão, tenha escrito por dinheiro. A primeira vez que lhe pagaram foi por um poema. Outro autor, Michel Millot, divertira-se a escrever um diálogo obsceno, L’École des filles ou la philosophie des dames. Pediram a Le Petit que redigisse,como ao tempo era hábito, um elogio ao autor do livro, para a abertura. Le Petit escreveu o madrigal cujo primeiro verso reza «Autor fodido de um livro fodido…» que os leitores desta Página Negra poderão ler se comprarem o livro. Um desentendimento entre editores e tipógrafos pôs o livro nas lavadas mãos das autoridades, que o proscreveram como ímpio, tendo Millot, seu autor, sido condenado à morte na fogueira, de que escapa, fugindo para sempre de Paris. Quase por milagre e por não estar assinado o seu madrigal tão esplendidamente foditivo, Le Petit passou como um anjo por este incidente. Nem foi identificado ou preso, nem se castrou.
De pena pistoleira, pronta para ser alugada, foi então convidado a escrever numa gazeta, La Muse de la Cour,dirigida pelo livreiro Alexandre Lesselin. Era mal pago, mas era pago, e Le Petit, a troco de quatro ou cinco pistolas, edificante nome de uma moeda da época, de 1 de Setembro a 28 de Outubro de 1656, foi o prolífico autor de oito números dessa gazeta. Um sangrento incidente interrompeu a confortável e curtíssima carreira. Le Petit travou forte relação com um jovem frade agostinho. Fosse qual fosse a desconhecida natureza da relação, sobre a qual as crónicas guardam silêncio de santo, houve uma briga de alto lá com ela entre os dois. Le Petit não foi de intrigas. Escondido, esperou que o frade viesse preparar a igreja do convento para as matinas e espetou-lhe uma faca, matando-o como a um cevado. Dormiu ao lado do cadáver na igreja fechada e, quando os frades a vieram abrir de manhã, escapuliu-se sem ser visto. Temendo a investigação policial, o poeta assassino exilou-se. O périplo de exílio começa em Espanha e passa por Itália, pela Boémia, Alemanha, Holanda e Londres. Advertido de que o assunto do defunto frade fora arquivado pela polícia, regressa a Paris. Tinham passado pouco mais de três anos, estava-se em Fevereiro de 1661.
Volta aos meios libertinos, conjugando o amor da carne com a devoção católica, apostólica e romana, e volta à penúria do costume. Ora, toda a gente sabe que é muito chato ser pobre em França. Vendo que a poesia não rendia, consta que Le Petit estaria já na disposição de abandonar a vaidade e as misérias do mundo laico e ir misticamente rezar as vésperas para um convento, tese à qual dá consistência o livro Les plus belles pensées de saint Augustin, que nessa altura se dizia ter escrito. Mas é sabido que, num ora foda-se, o diabo aparece e as tece quando e onde menos se espera. Estava Le Petit em recolhimento, na Abadia de Saint-Germain-des-Prés, e vem desinquietá-lo um tal Chabat com uns mais isto e mais aquilo e que era uma pena que o olvido e a gaveta ou as cinzas sepultassem para todo o sempre a virilidade das satíricas rimas de um livro como O Bordel das Musas. Diz estas verdades todas e tira do bolso cinquenta pistolas – o que a prata e o ouro brilham à luz mortiça de uma igreja! – dizendo publico-to eu.
Le Petit não resistiu. Um ano antes dedicara um soneto a Jacques Chausson, maiúsculo sodomita que a tentativa de violação de um mocinho nobre levara aos acrimoniosos tribunais seiscentistas. Chausson fora condenado à fogueira, na Praça de Grève, local em que a amena população parisiense se reunia para ver assar ateus, ímpios, violadores e mais gente com inclinação para uma desnaturada rebaldaria. O cheiro do episódio chaussoniano e a memória do milagre com que Deus o despendurou da associação ao enforcado Millot deviam ter avisado Le Petit que talvez não fosse avisado forçar a sorte. Mas Le Petit não era capaz de resistir a cinco moedas, quanto mais a cinquenta. E disse que sim ao insidioso Chabat, mandando que se fizesse a priápica e clandestina edição. Em homenagem a Théophile de Viau, luminária da poesia libertina, assinaria, com o pseudónimo de Théophile Le Jeune, este Bordel das Musas, de que agora temos nas mãos os poemas que sobreviveram.
O que tinha de correr mal correu evidentemente mal. Fosse porque Chabat tinha a língua comprida – é o que diz Frédéric Lachèvre, no seu sério e majestoso estudo Les Oeuvres Libertines de Claude Le Petit –, fosse pelas fortuitas circunstâncias que sempre favorecem censores e inquisidores, a obra foi estatelar-se debaixo do olho rigoroso e circunspecto da polícia de costumes parisiense. Poupo-vos a pormenores. Claude Le Petit era o meio mendicante filho de um paupérrimo alfaiate, o que em nada o recomendava – a filha da puta da pobreza nunca salvou ninguém. A arrebatada e túrgida elevação dos seus versos escapava ao racional dos seus censores e só o enterrava mais. Em menos de um fósforo, se assim se pode dizer, a célere justiça francesa condenou Le Petit à fogueira. Deveria, antes, ser-lhe cortada a mão direita pelo punho, julga-se que em alusão à prática da escrita, embora nunca se saiba lá muito bem o que passaria pela grave cabeça de magistrados daqueles.
Assim foi. A 1 de Setembro de 1662, Claude Le Petit ardeu na fogueira. Mas ao arder, já ardeu morto. Por piedade, crê-se, foi-lhe concedido o mimo de ser estrangulado antes.

O poeta Claude Le Petit integra uma corrente filosófica e literária – os libertinos – cuja tradição tem raízes em Ovídio, ganhando expressão maior em França, no século xvii. Essa corrente teve o seu principal expoente na obra poética de Théophile de Viau.
Estribados num cepticismo epicurista e também, mas não necessariamente, num ateísmo convicto, os libertinos do século XVII francês foram um exemplo de anticonformismo e de erudição, que expressaram em obras satíricas, profanas, de grande liberdade de costumes.
Tudo isso, acrescido de uma virulência extrema, que faz dele um príncipe do obsceno, está na poesia de Le Petit. E, não obstante, os seus versos não se podem reduzir ao estrondo dessa obscenidade. Os versos que escreveu são também interrogação, por vezes escarnecida, sobre a condição humana e a permanente mudança do mundo e das coisas. A escrita de Le Petit, saborosamente erudita, informada por uma vasta cultura clássica e por uma muito política atenção à História e ao século, é uma escrita que combina ironia e sarcasmo, por vezes um toque abjeccionista. Com uma imagética desbordante, os seus poemas são o exemplo do bom uso de uma certa arte da repetição – uma palavra, uma expressão criam um ritmo encantatório –, no que se poderá ver uma herança de Le Viau (e de Villon?).
Já se disse que os libertinos casam epicurismo, materialismo, umas pinceladas de filosófico maquiavelismo, com um ateísmo militante. Mas a repressão violenta, passando pela morte na fogueira, a que alguns membros da corrente foram sujeitos, fez emergir uma duplicidade teatral no movimento. Muitos libertinos assumiram uma máscara pública que os protegesse da iminente violência. Todo o libertino passou a ser um actor. Terá sido assim com Le Petit? Terá o seu catolicismo sido uma máscara pública para ocultar a poderosa afirmação da carne, do sexo, que a sua poesia exibe, caminhando em estado de arrogante erecção sobre a Cristandade?
Se, antes da publicação do seu Bordel das Musas, parecia estar dividido entre o catolicismo e o ideal libertino ao ponto de ter escrito um devoto Les plus belles pensées de saint Augustin, também sabemos que, já conhecendo a sentença que o condenava à fogueira, pediu para falar com o barão de Schildebeck, seu amigo dos tempos de exílio alemão, e lhe disse onde estava escondido o que conseguira salvar de Le Bordel des Muses. Arrancou ao amigo alemão a promessa de que salvaria esse original e o publicaria, o que o alemão cumpriu, publicando-o dois anos depois, em Leyden, na Holanda.
Nessa conversa com o fiel alemão, Le Petit, salvando o seu livro, garantiu a eternidade. Quando, a caminho da fogueira, parou em frente à Igreja de Notre-Dame e, de rojo na imensa praça, fez a oração de arrependimento que o tribunal determinara, quem se arrependia era o católico que de facto havia nele ou a máscara libertina que o século exigia? Mas se era actor, de que maneira é que o actor pode fingir, a não ser deveras sentindo as dores, mesmo as dores católicas, que o actor representa?
As crónicas dizem que avançou com serenidade exemplar para a fogueira que, em plena Praça de Grève, o esperava. Já estava morto quando o queimaram – fogo que ardeu sem que ele o sentisse.
