A bélica, delinquente e sagrada sala de cinema

Escrevi, o ano passado, este texto para a revista Granta, a pedido de Pedro Mexia. Foi com uma alegria infantil que voltei às salas de cinema da minha infância e adolescência. Agora, mais de meio-ano depois, e acabada de publicar uma nova Granta, trago o meu mini-ensaio para esta Página Negra. É um texto longo, aviso – é preciso uma chávena de paciência e uma colherinha de vontade para se ler até ao fim.

Miramar

A bélica, delinquente e sagrada sala de cinema
Manuel S. Fonseca

Padre, polícia, sargento. Sargento, polícia, padre. Foi esta a litania que encafuou a minha vida na bélica, delinquente e sagrada sala de cinema.

Explico-me louvando-me na inescapável biografia. Até aos cinco anos de idade, tanto como a electricidade, a imagem era-me estranha, sendo ambas, electricidade e imagem, práticas ou técnicas que pressentia inumanas. O meu primeiro choque com esse bestiário civilizacional foi em Lisboa, numa qualquer agência que preparava, em 1959, as famílias lusíadas para a colonização do ardente império onde António de Oliveira Salazar nunca pôs a mansa pantufa. A mão camponesa de minha mãe, com o seu doce aroma a bravo esmolfe, levantou-me a lavada meia manga da camisa para que um enfermeiro me agraciasse com a tripla vacina tropical – febre-amarela, varíola, cólera – e, ia eu começar a fungar, apagam-se as luzes e vi, pela primeira vez, a imagem.

Irrompem da parede branca uns luminosos pretinhos, os primeiros pretinhos da minha vida, ranhosamente sorridentes, seminus. Corriam na parede de luz, saltavam, fugiam às mães, sem nunca saírem do rectângulo que fulgurava no escuro da sala. Eu já tinha visto um lobo, duas raposas, já andara de burro e mula, vira o vertiginoso Inverno feito água em fúria na curva do Coa que fica mais perto de Vale de Madeira, Pinhel, mas só agora via, por fim, a unicórnia imagem e o esplendor explosivo, porventura mentiroso ou pelo menos fingido, dessa luz branca aureolada a sombras, coisa que por eu não saber dizer então, logo ali me cegou e engasgou, em ledo engano me embalando para sempre. Esta era a imagem que em verdade, em verdade me disse: abre os olhos e vê.

Poupo os leitores à viagem transatlântica no paquete Vera Cruz até Luanda. Os meus pais eram muito ricos, não tendo, como as pessoas verdadeiramente ricas, mesmo dinheiro nenhum. Fui, por isso, morar num musseque, o mais livre, acre e lendário dos musseques, o Sambizanga, um bom meio quilómetro para o interior, a contar da Casa Branca, território do tamanho de Dante, se é que eu não queria mesmo dizer, da Divina Comédia, tão labirínticos eram os seus círculos concêntricos.

Ainda não voltara a ver a imagem, e veio o 4 de Fevereiro de 1961. Camuflados nas silenciosas barbas da noite, nacionalistas angolanos assaltaram prisões, o forte colonial. Os tiros correram pela madrugada como boémios desgarrados. Eu ainda não tinha ouvidos para ouvir e não ouvi esses independentes tiros da rebelião, mas lembro-me, apesar de ser a céu aberto em plena rua, e lembro-me como de mais nenhuma imagem, desse primeiro domingo a seguir ao 4 de Fevereiro. Foi o meu encontro com a angustiante vida real. Corriam outra vez os pretinhos e perseguiam-nos bandos de famílias brancas – e outros negros e cabo-verdianos, diga-se –, atacando-os a golpes de paus e pedras, o lombo pesado do ramo da palmeira, e não havia essa imóvel parede de aureoladas sombras e mecânica luz para onde os meus desvalidos e sacrificiais anti-heróis pudessem fugir e fingir ser mentira a dor e o sangue que deveras sentiam. Em verdade, em verdade vos digo, esta era a imagem que qualquer um veria mesmo de olhos fechados e só quem não tem olhos para ver atirará a primeira pedra.

 O padre

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Tinha eu, portanto, sete anos e duas imagens, a imagem explicativa de Lisboa e a imagem implicativa de Luanda. Ambas eram verosímeis, qual delas a verdadeira? De uma e de outra salvou-me o padre anti-hitchcockiano.

O episódio de Sir Alfred é conhecido. O carro que lhe levava o peso ofegante por uma estrada nas montanhas suíças passou por um cura e um rapazinho, a mão do padre no ombro do moço. Ecoou pelas colinas a católica suspeição do grito de Hitchcock: “Run for your life, boy.”

Já o meu padre nunca quis saber do meu ombro, só dos meus olhos. De hábito franciscano, a chicote, que era o cordão do piedoso burel marron, punha em ordem a vagabundosa fila de miúdos negros e esparsos infiltrados brancos a que eu me juntava, impaciente por entrar numa suposta caverna e ver o mistério que se ia oficiar. Íamos ver o rapaz, íamos ver o artista.

Paguei o quê? Um angolar? Era uma sala de bancos corridos, sem costas, por serem costas os joelhos dos da fila de trás. Janelas altas, depressa tapadas por umas corridas cortinas negras. Preso à parede do fundo, um esticadíssimo lençol. Fez-se um escuro de alcatrão e uma violenta e luminosa realidade entrou na transparência da minha vida e dos meus sete anos. A sala escura encheu-se de cores americanas, iguaizinhas às que em Marrocos levaram Nicolas de Staël à pintura e depois ao leniente suicídio. As cores americanas vinham a cavalo, verdes e magentas num bosque ou ribeiro, o amarelo-torrado de um fero, seco e estéril monte, o luzidio negro de um colt a cuspir vermelho e som. Era um western e não era coisíssima nenhuma que não fosse o paraíso, ou céu, como então eu chamava ao paraíso.

Esta já não era a imagem explicativa de Lisboa, pequeno rectângulo a preto e branco, pedagógico, transparente e sem esquinas; esta também não era a imagem real, fixa, e por isso assustadora, dos vizinhos perseguidos e perseguidores do 4 de Fevereiro, do inapagável sangue que fica na casca do ramo de palmeira. Esta nova imagem era a imagem de um conluio americano com os meus padres capuchinhos italianos e redimia, em glória e artifício, a imagem explicativa e a imagem implicativa. Por aquela imagem, pela imagem do cinema sem nome da Missão de São Domingos podia fugir-se, e já corrijo, podia subir-se à montanha das bem-aventuranças. Cinema de cavalos, saloons, espadachins, trirremes, ben-hures e espártacos, beijos roubados, céus em azul cião.

  Ia dizer que a sala do cinema sem nome tinha, no seu negrume capuchinho, a cara tisnada da inocência, mas minto. Tinha era o corpo inquieto e a voz aguda e vibrante da inocência. A inocência era o corpo em labaredas de uns cem candengues, cem miúdos, que lambiam o esticadíssimo lençol branco, numa apoplexia de bom-dia à felicidade, que nunca mais voltarei a soletrar assim. Gritava-se, apostrofava-se, ululava-se, aplaudia-se. Ah, a insustentável e cósmica dilatação do esticadíssimo lençol, que ficava muito maior do que mundo e vida! Sim, a ameaçadora tela engolia-nos e nós, para avisar o artista, atirávamos-lhe tudo o que tínhamos à mão, por fim os sapatos. Esta foi a imagem que o meu padre me deu, a do cinema onde entrávamos calçados e, cheios de um amor franciscano, saíamos descalços.

 O polícia

La violetera

À Sétima Esquadra da PSP de Luanda acariciava-a a brisa mítica que os westerns emprestam a taxa de juros zero ao Sétimo de Cavalaria. Alvo dos nacionalistas rebeldes do 4 de Fevereiro, a esquadra ocupava uma posição estratégica no enquadramento do fim da cidade do asfalto com os musseques a sudoeste e a estrada de Catete, via de saída de Luanda para o interior de Angola. A cruel mistura de lenda, heroísmo e estratégia fê-la crescer, convertendo-a num forte a que, como condecoração, se deu um cinema. Havia, para os polícias e famílias, uma boa sala de cinema, a céu aberto, na Sétima Esquadra. Chefes e subchefes no balcão, agentes na plateia.

Sem que Salazar soubesse, confirmando assim o que os nossos pais diziam da putativa corrupção dos ministros dele, nós, os miúdos do bairro, furávamos o regime corporativo e vínhamos, mini-foras-de-lei e em incipiente delinquência nos intestinos da lei e ordem, ver as matinés de Marisol e Joselito, La Violetera de Sarita Montiel, Cantinflas e outras obscenas amenidades para maiores de 6 anos. Como depois, quando crescemos para a idade dos heróis de Stand by me (esses macaquinhos de imitação do que, muito antes, os meus amigos e eu vivemos), viemos à procura de outra imagem, a dos filmes draculianos e exorcizantes, de que saíamos aterrorizados, dez minutos até casa numa nocturna caminhada tropicalmente gelada por cada fantasma cintilante, por cada reflexo bizarro, pelo assobio da viração do vento nas árvores, pela fugidia sombra num quintal, mil demónios e cazumbis a morderem-nos o cáqui dos calções e as nossas pernas lisinhas, um medo bruxo, de caixões e nosferatu, a bombear-nos o coração.

Eis a dupla imagem que, depois do meu padre, o meu polícia me deu. Primeiro, a imagem da frivolidade, da alimentar, desopilante e formativa frivolidade. Por causa das prendadas filhas, as mais bem vestidinhas dos chefes e subchefes, sereias mudinhas que nos obrigavam a virar o pescoço volúvel e dúctil para o balcão, o meu polícia fez prevalecer a sala de cinema sobre o filme, sofrida, amarga e mesquinha traição, que os meus amigos e eu fingíamos não ver ou sentir e escondíamos uns dos outros.

O meu polícia deu-me, depois, a experiência do oculto e do sobrenatural e desse foguetão afectivo que a acompanha, o sentimento apaixonante chamado medo. Saí da Sétima Esquadra armado, dois coldres à ilharga, num a deliciosa frivolidade, no outro, o nocturno estrado do medo.

 O sargento

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Era um quartel. Do outro lado da Estrada de Catete para quem vinha da Vila Alice, passado o Colégio dos Maristas e o Seminário, na estrada de areia dos quartéis, o RIL, Regimento de Infantaria de Luanda, tinha um cinema a que o nosso pós-infantil e desgovernado ideal de heroísmo militar chamava, com desdém, o cinema dos sargentos. Esplanada ao ar livre, ecrã gigante, uma plateia férrea e geometricamente hierarquizada em oficiais, sargentos e praças, foi nesse cinema, com o Cruzeiro do Sul por testemunha, que descobri a mulher adulta, casada e autónoma.

E tenho antes de dizer que, sentado na fila da frente, a minha mão quase a tocar a locomotiva que Buster Keaton conduzia, já lá descobrira o silencioso segundo riso, que, pelas alminhas, não deve ser confundido com o reactivo anti-riso contemporâneo, a que talvez o impiedoso Nietzsche chamasse humor de escravo. Keaton apareceu-me num fim de tarde de domingo, o filme chamava-se The General, mas a tradução portuguesa, Pamplinas Maquinista, mais reforçava a festiva euforia do que hoje seria o quim barreirismo da matinée infantil. Andava já de adolescência inquieta e começava a fazer fine bouche (se assim posso dizer) à gargalhada de boca, rapidinha e esquecível. Ora, cada gag de Keaton era depois da gargalhada que se agarrava ao palato. Peço desculpa e a mais benigna compreensão do leitor para o que vou dizer: Keaton traficava uma imagem que, sendo já de boa boca, tinha um fim de garganta funda, como se diz, entendamo-nos, que só os vinhos de Bordeaux têm. O humor dele era, descendo em espiral, riso depois do riso, segundo riso, um riso de peito e alma.

E já salto do comboio de Keaton para voltar à mulher. A mulher casada deu-ma a descobrir o meu sargento, mostrando-me Shirley Knight, ao volante de uma station, a deixar a sua casa numa plácida smalltown que, tivesse Angola auto-estradas, podia ser de Angola. Eu vi-a, de uma das minhas noites de cacimbo dos dezassete anos, saía ela de casa numa manhã de Inverno. A chuva pequenina, cambutinha, prima do cacimbo angolano, espalhava poças pelas ruas de Chattanooga, no Tennessee, onde Francis Ford Coppola filmou esta mulher grávida que, sem destino, deixa mansamente o marido e se mete à interminável estrada.

A luz, meu Deus e meus amigos! Tão fina e filtrada a luz, luz do sudeste americano a arrancar brilhos e reflexos ao asfalto, uma renda de humidade, a imarescível humidade que a insatisfeita melancolia, se autêntica, não ousa dispensar. Shirley Knight encosta e acolhe a essa melancolia dois homens, James Caan e Robert Duvall. E Shirley devia ter-me acolhido a mim: eles não a amaram e incompreenderam mais do que eu.

Tudo nessa Shirley Knight é gentil, salvo o que é inexplicável ou insondável, que é praticamente tudo. As suas indizíveis razões, a sua inegociável solidão, a sua seguríssima incerteza comoveram a minha adolescência e eu, no cinema do meu sargento, que já me tinha dado a imagem do desumilhante e nietzschiano segundo riso, tomei de assalto a imagem independente e impossuível da mulher. Numa esplanada de ancas oferecidas à lua, ao cacimbo e às estrelas, o mouco rumor da guerra colonial que a plateia de soldados insinuava, conheci e entrou-me na pele a imagem da grave e errática liberdade da mulher casada. Quero que conste no meu cadastro: The Rain People chamava-se o filme de que Chove no Meu Coração foi o piedoso título português.

A sala e o telhado

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Com excepção do cinema dos padres capuchinhos, na Missão de São Domingos, até aos dezassete anos, mais de 90% dos filmes que vi, vi-os com os olhos a fugir para o céu. Muitos na melhor das minhas salas, o cinema Miramar, o mais belo do mundo, levantado, como John Wayne levanta Natalie Wood em The Searchers, sobre as barrocas de Luanda. O Miramar, logo depois do seu jardim com as weliwítschias de longos braços estendidos atrás do pasmoso ecrã, caía a pique sobre o mar, tendo em fundo a baía, guindastes e os grandes navios conradianos do porto de Luanda, as refulgentes locomotivas do caminho-de-ferro da linha de Malange. Foi no meio dessa barriga de vida que vi, quinze anos, ainda mal o meu polegar do pé direito roçava a cinefilia, o Pierrot le Fou, de Jean-Luc, esse torcionário Godard, que tão depressa me salva de afogamentos, como me embrulha a cabeça numa toalha, enfiando-ma na água de uma banheira.

Sei, contaram-me, da teoria uterina da sala de cinema. O útero dos meus filmes tinha a escuridão da noite original, primeva, tinha nuvens e ventos, estrelas e lua, às vezes o lampejo líquido, um clair de mar. E que não se tenha o impudor de confundir este meu mergulho, de prazer visceral, com a deriva tubo de escape do drive-in. Vi filmes cercado de cosmos por todo o lado, menos por um: o istmo que me aproximava umbilicalmente da clássica sala de cinema era a plateia cheia. Nas minhas esplanadas, a tropical céu aberto, o meu pequeno eu sentava-se lado a lado, à frente e atrás, com uma alienada massa de zombies enfeitiçados, olhos, esqueleto e almas entregues à mais genuína, total e torrencial crença. O meu espanto de alma, o meu pequenino fervilhar do baixo-ventre, a ânsia do meu coração pateta, o êmbolo irrespirável que me devastava os pulmões nunca estiveram sozinhos. Juntos, como na gruta de Lascaux, éramos uma plateia farfalhante, sentados em cima do mesmo medo, do mesmo desejo, da mesma alegria. Estremecíamos, sufocávamos, ríamos, chorávamos pré-historicamente em conjunto. Repare-se, estávamos ali sentados, ligeira inclinação para o ecrã, posição fetal, em pleno parto, nascendo de novo a 24 imagens por segundo. E connosco, novos adões, novas evas, renascia em nós, por nós e para nós, o raio da nua humanidade inteira, nova Gaia, novo Eros, saídos de um escuro e espesso caos.

Tremo só de pensar no rasto de pecado da minha adolescência fílmica. E talvez deva antes dizer, da minha adolescente obscenidade fílmica. Elizabeth Taylor, Gina Lollobrigida, Stella Stevens, Natalie Wood, Brigitte Bardot, Virna Lisi, Ursulla Andress, Raquel Welch, Sophia Loren, Barbarella, ou Jane Fonda sei lá, Julie Christie, com os seus três metros se estivessem de pé, dez metros se bem deitadas, vinham espetar-se-me directamente na veia, num consentimento fulvo e mamífero. O cinema consente.

Hipertrofia da vida, o cinema oferece rostos, ramagem de olhos, nariz e lábios, franja de sexo, como se fossem áscuas de ouro. O cinema esfaqueia, estrangula, assassina e logo, fade out, fade in, a nova imagem, a imagem seguinte tudo lava e redime. Bigger than life, já me juraram e não me mentiram. E é por isso que o cinema hipersensibiliza. Massaja, espanca de luz e bang, bang as nossas glândulas estéticas, arrastando-as para inconfessáveis devaneios psíquicos. Se a este mistério, se a este sombrio ritual se pode chamar uma educação, essa foi a minha educação. Nos anos 60, em Luanda, África Ocidental Portuguesa, futura República de Angola.

Confesso. Eu sou do mais escuro dos séculos, o século XX. Sou do século em que o amor irrompia como um jacto de luz sem beliscar a cósmica escuridão. Jamais desmentiria quem a isto chamasse cinema.

Miramar

A comédia que me faz chorar

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Vamos lá falar de respeito. Não tenho respeito nenhum por uma comédia que não me faça chorar. E ainda menos por um drama que não me faça rir.

Os cómicos mais lendários eram uns tipos tristes. Nos filmes de Chaplin e Buster Keaton é nos fios melodramáticos que ambos tropeçam, induzindo-nos a uma mansidão sentimental que logo a seguir estilhaçam com um gag. Ou seja, um tipo, quando é bom a fazer rir, ama. Escuso de dizer que quando é mau, odeia? Escuso, mas digo. Um dos problemas da comédia que hoje nos inunda é o ódio. O cómico, agora, não se dissolve na vida e ainda menos nas pessoas. O cómico passou a ser um juiz. Político, sobretudo. O sarcasmo substitui o gag. A altiva assertividade crítica destes novos cómicos amesquinha o objecto do humor. Às vezes não parece que estejam a fazer comédia, mas só a vingarem-se.

Ora bolas para a teoria. Vamos mas é ao cinema. Leo McCarey, um daqueles americanos irlandeses e católicos que fizeram a glória de Hollywood, foi o primeiro cineasta a ganhar o Oscar com uma comédia. Não é dessa, “Awful Truth”, com Cary Grant, que falo. A minha favorita, pelo que já me fez rir e chorar, é “Ruggles of Red Gap”. Um aristocrata inglês perde ao jogo o seu mordomo (Charles Laughton) para um milionário americano adoravelmente provinciano. Ruggles, o mordomo, é mais rígido do que um pau de vassoura: rígido na etiqueta que venera; rígido no respeito à estratificação social em que foi educado. Ao chegar a Red Gap, o saloiíssimo rincão onde vive o despretensioso milionário, Ruggles tem o choque da vida dele. O milionário é um poço de espontaneidade, os habitantes da small town uns gigantes de candura e generosidade.

De que é que nos rimos, no filme? Da humanização do mordomo. Uma a uma diluem-se as regras do espartilho que faziam Charles Laughton parecer um atávico armário com pernas. O mordomo desengoma-se, primeiro um braço, depois os lábios que aprendem a sorrir.

Acontece então uma das cenas mais políticas e mais comoventes do cinema americano. No saloon, os cámones todos a beber, alguém invoca o “discurso de Gettysburg”, dito por Lincoln, em plena Guerra Civil, no campo de batalha onde morreram 7500 homens. Um discurso que qualquer americano sabe de cor. Só que, no saloon – que vergonha – já ninguém se lembra. Até se ouvir um débil murmúrio. Voltam-se as cabeças e um grande plano mostra-nos os lábios de Laughton a dizer, como Lincoln, que “esta nação verá renascer a liberdade” e que “o governo do povo, pelo povo, para o povo jamais perecerá da face da terra.” O que vemos, nesse plano, é o rosto de um homem, um mordomo, que acaba de conquistar a plena humanidade. E a olharmos para esse homem igual aos outros homens, não sabemos, é verdade, se havemos de rir, se havemos de chorar. Fazemos, é bom de ver, as duas coisas.

Um bando de terroristas

Agora que toda a equipa de redactores e críticos dos Cahiers du Cinéma se demitiu, em protesto contra os novos accionistas, lembro-me dos tempos míticos dessa revista, quando tinha as capas amarelas e quando nela escreviam os mais sublimes e iconoclastas dos críticos.

Cahiers

Era um bando de terroristas. Trabalhavam na clandestinidade e no negro escuro do cinema. Incendiaram redacções e mulheres de grandes olhos apaixonaram-se por eles.

Falo de cinco rapazes franceses, tantos como os dedos de uma mão: Truffaut, Godard, Rohmer, Rivette e Chabrol.

Nos anos 50, converteram uma revista amarela numa lenda e num escândalo. Nos Cahiers du Cinéma foram devotos do cinema americano mais do que a irmã Lúcia da Senhora de Fátima. A intelectualidade europeia lia então por uma cartilha neo-realista, uma espécie de enteado estético do comunismo soviético. Redimindo alguns cineastas comprometidos, a fina flor literária via nos filmes americanos um lixo industrial escapista com que infelizmente o povo se emocionava e divertia.

Os cinco terroristas desataram a escrever blasfémias. Escreviam como quem sonha. Em westerns e filmes de gangsters descobriram equivalentes de Ilíadas e Odisseias.

Não se pode escrever sobre cinema, poesia ou pintura, sem se arrancar vibração ao baixo-ventre, sem pôr uma sala em pé e fúria. Como quem junta gasolina e cinco fósforos, o bando juntava sublevação, anarquia e alta cultura.

Quem se lembraria de proclamar a genialidade de Chaplin invocando como prova três passagens do Evangelho de São Mateus? O agnóstico Truffaut, pois claro.

O inimigo acusou de declínio senil os filmes americanos de Jean Renoir. De cima da Torre Eiffel, Rohmer retalia e responde aos gritos a esses acusadores, provando que nenhum génio autêntico declina no fim da vida: tal como as últimas obras de Ticiano, Rembrandt e Beethoven, o último filme do genial Renoir é, só pode ser, uma obra-prima, o mais belo dos seus filmes.

Escreviam como quem sonha. Puseram leitores em êxtase ao obrigarem Deus a ter ciúmes da metafísica de Hitchcock. E de roxos ciúmes ficou o Diabo quando disseram que o Man of the West de Anthony Mann “reinventara o western com o lápis de Matisse, o traço de Piero della Francesca”.

Os terroristas geralmente estão contra o poder. Contra o pequeno poder que era o modo comunista de ver a arte nas redacções dos jornais dos anos 50, este bando dos cinco foi o exército aliado do poder do cinema americano. Dispararam a sua artilharia estética fazendo subir aos céus o imaginário universal de Hawks e Nicholas Ray, musicais, melodramas, suspense e cinemascope. Dizendo “isto é o cinema!” aliaram Ford, Wilder, Hitchcock a Bergman, Dreyer e Rosselini. Aliaram a Europa e a América: foi a última vez.

Repudiando a vulgaridade ordinária dos críticos, Godard, esse Átila infantil, provou que Griffith inventara o cinema com as mesmas ideias com que Shakespeare inventara o teatro e que o cinema lavou os olhos do século XX reabrindo-os à pintura do Quattrocento a Picasso, ressuscitando o lascivo desejo de narrativa de Homero a Joyce, desflorando ouvidos para sonoridades sublimes de Bach a Stravinski.

Terroristas, ensinaram-nos que, com o cinema, a América devolveu à Europa em sonho o que a Europa lhe emprestara em vida.

Bamboleiem-se

Não acreditem em mim, mas afianço-vos que o email foi inventado em 1913. Tinha a forma de memorando interno e a Universal Pictures fazia com eles um verdadeiro fogo de barragem entre os escritórios de Nova Iorque e Los Angeles.

De L.A. chegou a NY um memo. Pedia para irem cheirar um espectáculo com um tal Charlie Caplin. Bem se esfalfaram, mas Caplin não havia nenhum. Será Chaplin, perguntaram dez dias depois, o tempo que demorava, então, um email. Mais sete dias e tinham um “Yes” de volta.

O olheiro, uma semana depois, disse: “Cómico excêntrico. Melhor nos sketches com diálogo do que nos gags visuais. Mas não vale o custo da viagem para ensaios em L.A.” Só que Laemmle, o patrão da Universal, andava de candeias às avessas com a sua vedeta, esse Jesus Cristo da comédia que dava pelo nome de Buster Keaton, que mesmo no Natal tinha um ar de Páscoa. Se contratassem o tal Chaplin, poderiam atestar o pontapé onde se sabe em Keaton? NY diz que não, que a pantomima de Chaplin é fracativa, o tipo só é bom a falar e ainda não se inventara o sonoro. Quinze dias e Laemmle, manda-os fazer um ensaio, “mas não gastem mais do que 300 dólares”.

O ensaio, reza o memo, nem foi mau, e o câmara, o montador e o projeccionista partiram a coco a rir. Chega o ensaio a L.A. e acham aquilo uma pessegada. Mesmo assim mandam vir Chaplin. Por um dinheirão: bilhete de comboio, 5 dólares por dia e um quartinho esconso para não ficar ao relento. Já os sábios tinham virado do avesso o ensaio de NY e proclamado a sua justiça. Era preciso que ele trocasse o chapéu de coco, talvez por um barrete escocês. Tinha de rapar o bigode e mudar de nome para não ser confundido com Charlie Chase. Aliás, Chaplin era um nome judeu e isso é que não. Devia ainda abandonar o andar bamboleante para não ofender coxos e cambaios. Já agora, evitar as caretas. Chaplin primeiro mandou-os… prontos, mandou-os! Depois fez o ensaio, aceitando todas as instruções. Resultado, chora o memo: “Estilo muito mole. Nenhuma personalidade.” Respondem de NY: “Bem vos disse que era fraco nos gags visuais e que não valia o dinheiro da viagem.”

Vida e cinema juntos fizeram de Chaplin, chapéu de coco, bigode, andar bamboleante, o génio que sabemos. Que a ousada sombra desse génio vos cubra nestes anos 20: não se resignem, bamboleiem-se.

Gene Kelly, a subversão

Escrevi este texto para um número de 2018 da revista Argumento. É a revista do Cineclube de Viseu. Duas preciosidades, a revista e o Cineclube. Daqui a dias deve estar a sair o primeiro número deste ano. Imperdível, claro. Depois conto, mas agora, que estamos frescos e de alma limpa neste começo de 2020, dancemos. Com Gene Kelly. 

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“Acho que vou agarrar-me às pernas do Gene Kelly, salvo seja. Para dizer que há mais subversão num pas de deux do que numa reunião do comité central.” Foi esta tirada insensata que me saiu quando, para este número da Argumento, o Rodrigo Francisco me convidou a escrever sobre um realizador, actor ou filme americano.

Insensatez puxa insensatez e já me apetece apresentar Gene Kelly, filho do grandioso capitalismo americano, como um modelo exemplar de acumulação de capital: repare-se, começamos a pensar nele como bailarino, essa função proletária de qualquer musical, mas depois damo-nos conta de que Gene Kelly era, afinal, o capataz de si mesmo, por ser o coreógrafo dos seus números musicais. Era também cantor e era actor, funções laborais cuja mais-valia é, no cinema, vilmente explorada pelos realizadores. Só que Gene Kelly, fechando um virtuoso círculo capitalista, era também realizador dos seus próprios filmes. É esta tão primitiva como prodigiosa acumulação de capital que, na paisagem das artes do século XX, faz de Gene Kelly uma figura revolucionária e libertadora – qualidades que, aliás, Karl Marx, no Manifesto Comunista reconhece hagiograficamente ao capitalismo, e isto sem que Marx ou mesmo Engels algum dia tenham visto dançar ou cantar o pirata que foi Gene Kelly.

Um hino à liberdade

Comecemos por pôr um pé em Singin’ in the Rain. Kelly co-realizou-o e co-coreografou-o com Stanley Donen. Dançou-o, cantou-o e interpretou-o. Foi a fábrica e o capital, o proletário e o patrão, as máquinas e a matéria-prima. O que ainda hoje, e eu espero que sempre, nos fascina em Singin’ in the Rain é a inexistência de elementos repressivos. As artes, ao contrário do que as academias querem fazer crer, estão impregnadas de autoritarismo e de subserviência. Vergam-se ou obrigam-se a seguir sistemas petulantes e impensados princípios fundamentalistas. É dessa opressão que nos resgata Gene Kelly: entra-se em Singin’ in the Rain e escuta-se um hino à liberdade.

O chamado cinema musical americano, e por isso Singin’ in the Rain, alicia-nos à suspensão da descrença, mas mais do que os outros filmes sérios, não só nos seduz e nos mergulha, imitando as arrebatadoras sereias de Homero, na suspensão da descrença absoluta, como nos instila uma angélica condição infantil (voltamos a ser meninos de nossa mãe), que até nos faria ter vergonha se não acreditássemos naquilo tudo, no sapateado à chuva, na longa perna nua de Cyd Charisse, na voz melosamente apaixonada de Kelly, limpo e atlético jovem americano, a cantar You Were Meant For Me a Debbie Reynolds.

Há nos musicais e na personalidade de Gene Kelly uma ingenuidade tão optimista como desarmante. E nós, espectadores, vamos com ele, fundindo-nos nele. A culpa é da sua liberdade criativa: tudo é real e tudo se transfigura, uma casa converte-se num estúdio e um estúdio numa casa. Toda a fantasia sonhada pelo surrealismo (que sempre teve mais ideias do que obra feita) se concretiza nos musicais de Gene Kelly. Veja-se, em Singin’ in the Rain, como dois homens e uma mulher que estiveram, a uma mesa de cozinha, a matar a cabeça, madrugada dentro, para salvar um filme de capa e espada convertendo-o num musical, inventam o mais belo Good Morning que já algum dia a humanidade cantou ou ouviu. Cantam os três, a dança derrama-se da cozinha para a sala, três impermeáveis dourados quase saltam do bengaleiro para os vestir e até os infinitamente imóveis sofás da sala ganham vida e celebram.

Andam por aí campeões da ruptura, braços a levantar como estandarte um formalismo cinzento e rígido e aqui, num número musical de revista, com a mesma simplicidade com que Vénus se despia, três seres humanos cantam e dançam, pondo a inanimada casa e os inanimados adereços a cantar e a dançar e cada um deles já é outra personagem, já o uno é múltiplo, com uma felicidade que não só nos deixa de boca aberta, como nos enche o coração de pura alegria.

Descartes devia ter aprendido a dançar

Eu podia cansar-vos chamando a atenção para a desmesurada liberdade de Kelly. Apontaria com o dedo para Cyd Charisse – e quem é que não quer apontar um ou dois dedos a Charisse? – e diria que nunca houve mais perfeito filme no filme do que no Bradoway Melody, o mais belo número musical de Singin’ in the Rain. Desde Shakespeare que há a play within a play, em Poe como em Chaucer ou Melville há a story within a story, em Eliot e Ezra Pound fundem-se poemas no poema, mas a energia, a euforia, a latência erótica deste número, feito só de música e dança, um par de calças e um curto vestido verde são empolgantes e vão directos aos cinco sentidos: o filme no filme é a própria natureza do cinema musical, é o seu sangue nas veias.

E, no entanto, quanto artificio: o que é aquilo em que Kelly e Charisse dançam? É um estúdio de cinema? Assim, tão alcatifado? É um cabaret com uma parede a menos, e se é, por que razão estão as mesas encostadas às paredes? Ou é um palco? Ou é a liberdade de ser isso tudo?

Ainda não falei do triunfo do corpo. Tanto faz que estejamos a ver Singin’ in the Rain, An American in Paris, On the Town, The Pirate ou It’s Always Fair Weather, todos eles são obras de arte da arte do corpo. Para que não se pense que me enganei, repito: da arte da arte do corpo. Os braços, o torso, a cintura, as nádegas, pélvis, pernas e pés, operários de um raio, têm de saber fazer. Sem essa arte do corpo, de cada parte do corpo, não haveria a arte do musical. E seria uma cobardia, não dizer o essencial: o corpo de bailarino, o corpo de Gene Kelly não se limita a fazer, o corpo exprime. Há linguagem no corpo de Kelly, as pernas dele pensam, os pés conceptualizam. Muita treta e rainha da cocada preta se tem dito da falta de corpo na arte do Ocidente e do reprimido corpo judeo-cristão. Ei-lo, patente, potente e contente. Exuberante, ora moral, ora pagão e pecador, mas nunca deprimido.

Sim, António Damásio mostrou-nos o caminho e o erro de Descartes. Querem uma visão não-cartesiana do mundo, anterior, julgo, ao nascimento do cientista António Damásio? Escolham se querem ser Donald O’Connor ou Leslie Caron e, a essa cosmovisão não-cartesiana, vejam-na, toquem-na e dancem-na com Gene Kelly, como Kelly, desdobrando-se, a dançou consigo mesmo em Cover Girl, ou com Esther Williams em Take Me Out to the Ball Game, ou com Frank Sinatra e até o Rato Jerry em Anchors Aweigh. Melhor, dancem, em An American in Paris, os dez minutos do American in Paris Ballet: nesse sublime, mas tão tangível bailado, Gene Kelly e Leslie Caron encontram-se e perdem-se, procuram-se e fundem-se. O filme é de Vincente Minnelli e, em ruas, becos e praças roubadas à pintura de Renoir, Rousseau, Duffy ou Toulouse Lautrec, até Van Gogh, os bailarinos movem-se, contorcem-se, dilaceram-se. São só, diremos, acções físicas. Mas juntemos-lhes a translúcida água, colunas de nevoeiro, luz e contraluz, a música de Gershwin, e tudo é já sugestão e intenção. De quantas cores é o vestido de Caron, no bailado no fontanário? Torram-se amarelos, metalizam-se azuis, é negra noite, é esplêndida alvorada e essa euforia espiritual transcende a soma das acções físicas: estão ali, em celebração onírica, corpo e alma. Que elegante e lábil é a alma! Que sopro e emoção tem o corpo!

Apresenta-se a última Granta

Granta

É amanhã, 3.ª feira, na Cinemateca, na livraria ao pé do bar, lá em cima, sobre as catacumbas que são as salas de cinema. Apresenta-se o n.º 4 da revista Granta. Vão falar o Pedro Mexia, o Daniel Blaufuks, Bárbara Bulhosa e João Rosas.

Eu junto-me com gosto a eles. Pedro Mexia convidou-me a escrever sobre a minha experiência da sala de cinema e dei comigo a escrever sobre salas de cinema improváveis e heterodoxas. Como a sala de cinema da estrada dos quartéis, em Luanda, o “cinema dos sargentos”, que evoquei assim:

“A mulher casada deu-ma a descobrir o meu sargento, mostrando-me Shirley Knight, ao volante de uma station, a deixar a sua casa numa plácida smalltown que, tivesse Angola auto-estradas, podia ser de Angola. Eu vi-a, de uma das minhas noites de cacimbo dos dezassete anos, saía ela de casa numa manhã de Inverno. A chuva pequenina, cambutinha, prima do cacimbo angolano, espalhava poças pelas ruas de Chattanooga, no Tennessee, onde Francis Ford Coppola filmou esta mulher grávida que, sem destino, deixa mansamente o marido e se mete à interminável estrada.

A luz, meu Deus e meus amigos! Tão fina e filtrada a luz, luz do sudeste americano a arrancar brilhos e reflexos ao asfalto, uma renda de humidade, a imarescecível humidade que a insatisfeita melancolia, se autêntica, não ousa dispensar. Shirley Knight encosta e acolhe a essa melancolia dois homens, James Caan e Robert Duvall. E Shirley devia ter-me acolhido a mim: eles não a amaram e incompreenderam mais do que eu.

Tudo nessa Shirley Knight é gentil, salvo o que é inexplicável ou insondável, que é praticamente tudo. As suas indizíveis razões, a sua inegociável solidão, a sua seguríssima incerteza comoveram a minha adolescência e eu, no cinema do meu sargento, que já me tinha dado a imagem do desumilhante e nietzschiano segundo riso, tomei de assalto a imagem independente e impossuível da mulher. Numa esplanada de ancas oferecidas à lua, ao cacimbo e às estrelas, o mouco rumor da guerra colonial que a plateia de soldados insinuava, conheci e entrou-me na pele a imagem da grave e errática liberdade da mulher casada. Quero que conste no meu cadastro: The Rain People chamava-se o filme de que Chove no Meu Coração foi o piedoso título português.”

Amanhã falamos. Não digam que não vos convidei.

 

Karina

 

Karina De vez em quando uma mulher é uma bandeira. Ou, mesmo sem o saber, é um quadro de Renoir. Ou é mais bela do que um verso de Ronsard.

Anna Karina, que nasceu fez há dias 79 anos (79, meu Deus), foi filmada contra brancos saturados, contra paredes rugosas, no contra-luz de uma janela. De Petit Soldat a Made in USA,  em Une Femme Est Une Femme, em Pierrot le Fou. Nesses filmes, a preto e branco, em technicolor, foi a forma da nouvelle vague. Posou. Parece que se submete ao enquadramento. O resultado é Mondrian inundado de emoção.

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Humphrey Bogart

Bogart

Na Broadway, já ganhava 500 dólares por semana, e bastara-lhe a experiência de um filme para se desiludir de Hollywood. Tinha 35 anos e preparava-se para se resignar a uma existência sombria.

Humphrey DeForest Bogart nascera a 23 de Janeiro de 1899, embora o departamento de publicidade da Warner o dê, congeminando subtil variação, como nascido no dia de Natal. Um menino Jesus noir.

Numa tarde de Outono, estava 1934 a chegar ao fim, preparando-se para protagonizar a peça “The Petrified Forrest”, de Robert E. Sherwood, o actor Leslie Howard convidou-o para ser seu parceiro e fazer o papel de Duke Mantee, “a foul mouthed vicious killer”. Bogie aceitou e, deu-se o grande salto, trampolim para outras famas. A peça foi um êxito e a Warner quis fazer o filme. Howard aceitou com a condição de que Bogart fosse com ele e voltasse a ser, como na peça, um Duke Mantee que, como diz Jorge Luis Borges que viu o filme, era um “gangster fatigado, resignado a matar (e a fazer-se matar) como os outros a morrer”. É muito provável que Bogart nunca tenha lido esta tão exacta definição, mas mesmo assim caprichou em não fazer outra coisa que não fosse dar-lhe razão.

Ainda assim, Hollywood não se convenceu logo. Os thirties eram o tempo de heróis à Gary Cooper, um “gentle giant” que sumarizava a inocência da América, galante e obstinado a lutar pela Boa Causa. E depois, como era belo. Até o insuspeito Hemingway lhe caiu nos braços: “the most beautiful man I ever met!”. A beleza de Cooper submergiu a década, o seu “play natural” também. Era uma água cristalina e Bogart era homem para beber tudo menos água.

A década seguinte, quando a Guerra, modelo WW II, lhes caiu na cabeça como um tijolo, mudou os americanos. Os novos heróis de Hollywood queriam-se “rough, tough and ready for anything” à maneira de Clark Gable. Bogart pensou duas vezes antes de ir a jogo. “Rough and tough” era como ele, mas porque raio é que haveria Bogart de estar “ready for anything”?

Quem melhor compreendeu Bogart, foi uma mulher que nunca foi mulher dele (falo menos em termos bíblicos que nisso não me meto, mas nos termos notariais que dão direito a pensão alimentar). Lulu, a lendária Louise Brooks, percebeu-o da cabeça aos pés e nada faz um homem mais feliz do que ver a nossa idiossincrasia apanhada por um possessivo raio xis do olhar feminino.

Lulu viu logo que ser actor cansava Bogart – o homem não tinha energia para actividade tão extenuante. Pensou ela: ou desistes ou fazes da debilidade o teu trunfo. Valeram-lhe os ingleses que tinham vindo representar Chekov e Shaw na Broadway. Trouxeram um estilo que rompeu com o “more a fight than a play” dos yankees. E Bogart, nesse “new and quiet and subtle style of acting – a prose style” sentiu-se como peixe no mar, o cherne de Louise Brooks.

Hollywood demorou 34 filmes até aceitar a verdade de Miss Brooks. Matara Bogart a tiro em 12 filmes, electrocutou-o ou enforcou-o noutros 8, condenara-o a prisão perpétua em 9. O ponto mais disgusting da sua carreira foi uma coisa chamada “The Amazing Dr. Clitterhouse” a que, mais por raivosa vingança do que por ironia, chama “The Amazing Dr. Clitoris”.

Mas, de repente, fez-se luz. Uma série de mudanças tecnológicas que não vêm ao caso, permitiram criar a atmosfera visual do que hoje chamamos film noir – sombras muito longas, rostos obscurecidos, formas enigmáticas num espaço recortado por fitas de luz. E isso, que antes não imprimia, passou a imprimir. Em filmes de Raoul Walsh (High Sierra e They Drive by Night), John Huston (Maltese Falcon) e Michael Curtiz (Casablanca), Bogart aparece como uma Nossa Senhora dos Aflitos, filmado, pelo menos em três deles, pela mestria de Arthur Edeson, um dos directores de fotografia que foi expoente do estilo. Em Maltese Falcon a mão prodigiosa de Edeson está por todo o lado, nos ângulos baixos de câmara, nos planos nocturnos sinistros e ameaçadores, como em Casablanca está na densa bruma que inventou no plateau para fazer o exquisite recuo de câmara quando Bogart e Claude Rains caminham para o começo de “beautiful friendship” deles. Nesses planos, assim iluminada, via-se finalmente o que a adorável Miss Brooks chamava “the face of St. Bogart”.

Um rosto e um olhar vazio. O “blank look” era, é outro dito de Lulu, a chave do magnetismo sexual de Bogart: “devassa-nos, dá nome mesmo à mágoa”, escreveu o poeta Ruy Belo.

Trabalho e whisky, sem sono e comida parecem ter sido os ingredientes da receita de Bogart contra a inércia. O efeito, naqueles anos de cepticismo e desilusão, foi portentoso: um rosto velho, místico e petrificado que inaugurou o niilismo como forma de representação.

O resto são filmes e histórias, Faulkner, Hawks e Bacall que Bogart, St. Bogart, agora nos contará pessoalmente no recato desse cemitério a que chamamos memória.

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Adaptação de texto que escrevi em 1985, para ciclo da Cinemateca Portuguesa sobre Bogart.