Ouvir um corpo

Se não fosse pela descomandada e rimbaudiana aventura de Pierrot le fou, se não fosse por esse gosto a vigindade de A Bout de Souffle, era capaz de dizer que Le mépris é o melhor filme de Godard. O rabo de Bardot, todavia, garante-lhe entrada no pódio olímpico.

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A música é de Georges Delerue, o rabo é de Brigitte Bardot, o desmesurado olhar é o nosso embora finjamos que é o de Michel Piccoli, o filme é “Le Mépris” de Godard.

O cinema deu-nos intensas cenas físicas. De mil escolho uma: em “Sea of Love”, Ellen Barkin e Al Pacino apalpam o corpo um do outro com uma tactilidade desenfreada que envergonharia o mais zeloso polícia apalpador de aeroporto. “Le Mépris” não precisa de mãos.

No Ocidente, a história das artes é a disfarçada história da tensão e da tentação de mostrar a mulher nua. Mas a mulher nua talvez nunca tenha sido dita como Godard pediu a Bardot e a Piccoli que a dissessem nesta sequência que abre “Le Mépris”.

O primeiro professor de francês que tive, voz rouca e o que então me parecia uma terceira idade de quase cinquenta anos, não sabia, e eu ainda menos, que os penosos rudimentos de impronunciáveis “la table” e “la fenêtre” serviam apenas para rasgar nos meus ouvidos o tapete por onde deslizaria a voz de Bardot a perguntar: “tu les trouve jolies mes fesses?”

Já voltamos às redondas nádegas de Brigitte. Passemos antes pela “petite histoire” do filme.

“Le Mépris” é, como os filmes de Godard, um díptico: num está o cinema, no outro a vida. A personagem de Piccoli tem na re-escrita do argumento de um filme, que pretende adaptar a “Odisseia”, a oportunidade profissional da sua vida. Vai trabalhar com e contra um realizador famoso (um Fritz Lang a fazer de Fritz Lang) por encomenda de um americano colérico que é produtor por orgulho, “como todos os produtores”, diria Godard.

Essa é uma tela do díptico. Na outra, Godard dá-nos as cores do casamento de Piccoli com uma Bardot morena como uma Carmen que fosse tranquilamente imprevisível. A cor final dessa relação há-de ser a cor do desprezo.

“Le Mépris” foi o filme em que Godard esteve mais perto de entrar na indústria americana e o que dela mais longe o pôs. Joseph E. Levine , o produtor americano, ao ver a versão final, atirou-se a Godard, exigindo-lhe nus de Bardot para vender o filme. Godard acedeu e filmou o plano-sequência de abertura.

Bardot está nua, deitada de costas, na cama. Piccoli em segundo plano, contempla-a. Palavra a palavra, pela boca de Bardot, com o complacente acordo de Piccoli, é-nos dito cada centímetro do corpo dela. Ouvimos “os meus pés!” e vemos os pés dela. Ouvimos os tornozelos, as coxas, o rabo, os joelhos. Ouvimos o corpo de Bardot, como se ouvíssemos as ondas do mar, sensação que as vagas de filtros vermelhos e azuis, utilizados por Godard, mais reforçam. Ainda temos os ouvidos nas redondas e tão belas nádegas e já Bardot nos pergunta “o que preferes, os meus seios ou os bicos dos meus seios?” Sabemos lá. Sabem os nossos ouvidos é que nos seios ou nos bicos deles se roça, sublime, a música de Delerue. Experimentem ouvir.

Bardot

Anna Karina

Não houve ninguém na minha geração que não tivesse amado Anna Karina. Cresci com essa ideia de mulher, uns olhos carregados de beleza, sonho e insatisfação. Um desafio ao melhor que um homem pode dar, surpresa, uma dolorosa alegria, aventura, um livro e um cigarro, um carro a entrar pelo mar dentro. Relembro-a, no dia da sua morte. Lembrança em três breves actos.  

Karina

De vez em quando uma mulher é uma bandeira. Ou, mesmo sem o saber, é um quadro de Renoir. Ou é mais bela do que um verso de Ronsard.

Anna Karina, que agora morreu, foi filmada contra brancos saturados, contra paredes rugosas, no contra-luz de uma janela. De Petit Soldat a Made in USA,  em Une Femme Est Une Femme, em Pierrot le Fou. Nesses filmes, a preto e branco, em technicolor, foi a forma, rosto e corpo da nouvelle vague. Posou. Parece que se submete ao enquadramento. O resultado é Mondrian inundado de emoção.

O beijo ou é descapotável ou não é beijo

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Tinham ambos bons lábios, carnudos, ágeis, oferecidos. São os lábios de Anna Karina e de Jean-Paul Belmondo. Juntou-os Jean-Luc Godard que, na altura, já deixara de beijar os de Anna Karina.

Aproximemo-nos deste beijo. É um beijo dos primeiros anos 60, de 65, julgo eu. Nada é deixado ao acaso. É um beijo de descapotável para descapotável. E é um beijo tricolor, patriótico e identitário, azul, branco e vermelho como a agitada bandeira gaulesa, o que discretamente a camisa vermelha de Belmondo confirma, se por acaso os nosso olhos não divagarem pela profusão geográfica da branca t-shirt de Anna Karina.

Os teus olhos

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Pus-me a contar as estrelas
Contei duzentas e doze
Com as duas dos teus olhos
São duzentas e catorze.

Está escrito. Pela mão do povo. O povo é português e escreve assim no amplo livro da memória. Com mais ritmo do que rima, que o povo não é estrito. Mas sabe, note-se, contar. Conta até mil e sabe adicionar.

As estrelas dos teus olhos não as escreveu só o povo. Filmou-as também Jean-Luc Godard, com esse líquido e galáctico brilho que foi roubar aos olhos de Anna Karina.

As saudades que já tenho de te ver chorar.

Karina

 

Karina De vez em quando uma mulher é uma bandeira. Ou, mesmo sem o saber, é um quadro de Renoir. Ou é mais bela do que um verso de Ronsard.

Anna Karina, que nasceu fez há dias 79 anos (79, meu Deus), foi filmada contra brancos saturados, contra paredes rugosas, no contra-luz de uma janela. De Petit Soldat a Made in USA,  em Une Femme Est Une Femme, em Pierrot le Fou. Nesses filmes, a preto e branco, em technicolor, foi a forma da nouvelle vague. Posou. Parece que se submete ao enquadramento. O resultado é Mondrian inundado de emoção.

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também se amaram

Anne Wiazemsky

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No cinema, não há memória de ninguém ter amado um burro como Anne Wiazemsky amou Balthazar. O filme, “Au Hasard, Balthazar”, realizou-o Robert Bresson, inspirando-se no “Idiota” de Dostoievsky. Balthazar, mais jumento que rei mago, passa pelas sete cruéis provações a que chamamos pecados capitais. À ascética menina e ao burro de focinho branco consola-os uma lenta e cândida ternura e o filme é um dos mais belos que os meus olhos já viram.

Do burro não sei, mas sei que todos queriam a menina. Em 1965, a adolescente Anne Wiazemsky, neta do escritor católico François Mauriac, foi escolhida por Bresson por ter um talento sublime: nunca ter representado antes. A conjugação da sua reservadíssima beleza com uma voz capaz de encher uma catedral despertou em Bresson um método possessivo e integral: durante as filmagens não lhe permitiu que saísse um segundo do seu raio de visão e forçava-a a dormir na sua cama. Anne rechaçou-o quando Bresson se propôs chegar a essa húmida abjecção chamada beijo na boca.

Veio então Godard às filmagens. Apaixonaram-se. Anne tinha 19 anos e queria estudar filosofia em Paris. Ele tinha 37, acabadinho de se separar de Anna Karina. Era um romance impróprio. Anne contou ao avô. Em Paris, nesse tempo, exibiam-se todo o tempo todos os filmes. Mauriac e a neta foram ver “A Bout de Souffle”. Mauriac achou o filme admirável e disse à neta que seria uma honra ter Godard como neto. Ela contou-lhe e ele, comovido e com aquela generosidade que um ego inflamado municia, disse, com originalidade, que era uma honra ter Mauriac como avô. Na única nota de rodapé da sua vida, Wiazemsky sublinha: Godard gostava sempre de ter a última palavra.

Godard filmou “La Chinoise” e deu a Wiazemsky a personagem de uma militante maoista, antecipando o Maio de 68 que logo chegou. Anne aborreceu de morte ler Marx, Engels e o velho Mao. Mas doeu-lhe mais que Godard, militante furioso, quisesse que todos os gaullistas, o que incluía o avô, fossem fuzilados – entre aspas, disse ela – enquanto Mauriac, magnânimo, achava que os arroubos de Godard eram só pecados desse resto de juventude que aflige quem chega ao fim dos trinta anos. Não admira que, os olhos num e os olhos noutro, Wiazemsky tenha acabado por escolher os livros contra os filmes. Desistiu dos dois, a 5 de Outubro de 2017, mudando-se para um celestial  universo paralelo.

A bola é de trapos

 

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O cineasta Godard está para o cinema como Maradona para o futebol. Maradona limpava sete ingleses em fintas e reviangas e era golo. Ou, descarada batota, fazia golo com a mão de Deus. Godard foi à televisão, ofereceram-lhe livros e ele só quis um de economia. Disse: este é que conta. Até entornei a bica curta: sem economia a democracia é uma batota.

Qual é o PIB português? Não sei. Nem sei qual é a dívida pública e mal tenho ideia dos impostos que paga uma empresa sobre o salário de um trabalhador. Não sabemos e vamos a jogo, votar. Não é democracia, é alucinação: como se Maradona viesse a jogo a pensar que a bola era quadrada.

Bica Curta, publicada no CM

O país cujos habitantes não têm nome

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Onde chora Godard…

Vejamos. Há a raiva e denúncia de mil declarações com que Godard fuzila, vai em meio século, o cinema americano narrativo, esse cinema no qual, decidiu Griffith, os filmes devem acabar bem.

Dizem que há bocas que não sabem amar sem destilar som e fúria. A boca de Godard começou por beijar o cinema americano e dizer, da sua nouvelle vague, que “aprendemos tudo com Griffith”. Mas é uma boca muito masculina: tem de fazer mal ao objecto amoroso. Deprecia-o, porém não vive sem ele.

A meio desse meio século de amor e cólera, numa entrevista, exaltante como todas as entrevistas dele, Godard explicava serem os seus filmes quase sempre uma decepção para os espectadores, ainda que, com natural e merecida vaidade, ele acrescentasse serem filmes que decepcionavam bem as pessoas. Se caiu uma gota de orgulho sobre a palavra “decepção”, caíram duas, dois pingos certeiros, um de orgulho, outro de firme convicção, sobre a palavra “bem”.

O entrevistador chamou-lhe, então, um caso à parte. Godard respondeu com murmurada vanglória: “… caso à parte. É que ganho a minha vida com filmes que não têm êxito. Isso é mesmo muito à parte.” Eis a natural curiosidade a que o entrevistador deu voz: “E como é que faz?” “Ora, isso é que não sei”, disse Godard, na sua linha de muito bem nos saber decepcionar.

A lição simples que o velho cinema americano mainstream deu ao mundo, pela boca solene de Griffith, foi a de que “tudo o que precisamos é de uma rapariga e de uma pistola”. Essa simplicidade, que funde estilo e emoção narrativa, conquistou o mundo, o que incluiu, já agora, a grande Rússia e Eisenstein.

Godard tortura-se intestinamente com o êxito americano e quer legislar contra ele. Espanta-se e pergunta qual será o segredo: “É o único país cujos habitantes não têm nome. Chamamos-lhes americanos, mas americanos são também os argentinos e os mexicanos… Penso que a força deles vem de nunca terem tido um nome… Adoramos tudo o que vem desse país cujos habitantes não têm nome.”

E Godard sabe que a força dos seus filmes, desses filmes que decepcionam tão bem, vem da negação e da flamejante denúncia, de estar contra a tradição do cinema criado nesse país cujos habitantes não têm nome. É o cinema americano, de Griffith a Spielberg, que salva e oferece a Godard uma cadeira no céu da sua história.

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… já Griffith tinha chorado.

Dez grandes cenas do cinema: Le Mépris

Caiu a noite. Aproveitemos. Se há uma cena de Godard a que cai bem a noite, esta é uma delas. Está entre as dez cenas que eu escolho para fazer a mais rápida volta à história do cinema.

LE MÉPRIS (1963, de Jean-Luc Godar (O Desprezo)
cena de Bardot nua, em diálogo com Michel Piccoli, passando em revista cada parte do seu corpo

No começo dos anos 60, o cinema europeu ainda amava o cinema americano e a ambição de ir filmar na América era grande. É esse, aliás, o tema deste filme.Realizou-o Jean-Luc Godard que era então o enfant terrible da nouvelle vague.

“Le Mépris” foi o filme em que Godard esteve mais perto de entrar na indústria americana, mas foi também o que o pôs mais longe dela.

Brigitte Bardot, que então unia mais os europeus, do que algum dia Bruxelas há-de conseguir, era a vedeta, a estrela do elenco. Joseph E. Levine, o produtor americano, ao ver a versão final, sem um nu pelo menos de Bardot, atirou-se a Godard, exigindo-lhe nus para vender o filme. Godard resignou-se à maneira dele e filmou este plano-sequência de abertura.

 

O que vimos é o cinema em toda a sua glória. Num quarto de sombras, cruzado por uma réstia de luz e filtros a roçar uma certa decadência, está deitada e nua Brigitte Bardot. É irresistível olhar-lhe para as tão displicentes nádegas, porque ela mesmo diz ao actor com quem contracena, mas também a toda a plateia: “E as minhas nádegas, achas que são bonitas?”

Nem vale a pena estar a responder. Bar­dot está nua, oferecendo-nos as costas, deitada na cama. Pic­coli em segundo plano, contempla-a. Pala­vra a pala­vra, pela boca de Bar­dot, com o com­pla­cente acordo de Pic­coli, é-nos dito cada cen­tí­me­tro do corpo dela. Ouvi­mos “os meus pés!” e vemos os pés dela. Ouvimos os torno­ze­los, as coxas, o rabo, os joe­lhos. Ouvi­mos o corpo de Bardot, como se ouvís­se­mos as ondas do mar, sensação que as vagas de fil­tros ver­me­lhos e azuis, uti­li­za­dos por Godard, mais refor­çam.

Ainda temos os ouvi­dos nas redon­das e tão belas nádegas e já Bar­dot nos per­gunta “o que pre­fe­res, os meus seios ou os bicos dos meus seios?” Sabe­mos lá. Sabem os nossos ouvidos é que nos seios ou nos bicos deles se roça, sublime, a música de Georges Dele­rue.

Ouvimos e sabemos que nos entra pelos olhos e pelos ouvidos uma nova forma de erotismo. Este já é um erotismo pós-Marilyn, um erotismo sem inocência, em que desagua a dúvida, a crescente perplexidade masculina europeia. A alacridade das pernas de Marilyn nada tem a ver com o rabo de Brigitte Bardot aqui posto em sossego.

Ai, Mizoguchi

Convido-vos a virem comigo ao WC feminino da Cinemateca Portuguesa

MIZOGUCHI
ai, mizoguchi

Mas afinal, onde está a arte? Projectava-se o “Je Vous Salue Marie” na Cinemateca. No gigantesco portão da rua uma multidão de integristas tentava rebentar as barras, como se lá dentro estivesse a arte cativa e fosse preciso libertá-la das garras do João Bénard y sus muchachos, banda mariachi que era o ódio de estimação do então famoso crítico Augusto M. Seabra, a quem mando um abraço. Jovens de piedosos 20 anos trepavam o íngreme gradeamento, tombando na calçada do passeio, quais figurantes eisensteinianos. No breu da sala esmurravam-se integristas imberbes, velhos comunistas e perplexos polícias, concorrendo em arte e beleza com as imagens blasfemas e basquetebolistas de Jean-Luc Godard. A sala tinha um hálito de Espírito Santo, mistura do cheiro imperial a coca-cola teenager com o bafo lusíada de militante bagacinho foice e martelo. Não era o pandemónio, era a arte.

Marie
um hálito de Espírito Santo

Mas afinal onde está a arte? Andava a Cinemateca enroladinha com a Gulbenkian a fazer um Ciclo do pasmoso Cinema Musical e, na salinha Félix Ribeiro, pensou-se exibir o salmo à fé punk que era “The Great Rock ‘n’ Roll Swindle”. Ora bem. Houve, como nunca houvera, uma multidão espontânea em Lisboa. Era uma multidão de cabelos arco-íris eriçados, roupas em variantes negras de negro, botas e metais. Era a multidão anti-portuguesa que cuspia. Só o mau vinho carrascão em garrafas de grosso vidro verde a ligavam ainda à pátria de Afonso Henriques. As paredes da Cinemateca abaularam-se, um leque de líquidas, semi-sólidas ou sonoras manifestações metabólicas escorreram por sofás e alcatifas. Obra e espectadores fundiam-se, centáuricos, num todo caótico e sublime, arte total que humilharia Wagner e os execráveis wagnerianos.

thegreatrocknrollswindle
um salmo à fé punk

 Voltei ontem à Cinemateca. Ah, chorava eu, a melancolia que desliza pelas paredes tão institucionais e académicas de hoje! E eis que, não podendo dizer quem foi, e não fui eu, alguém vem do WC do urgente sexo feminino e me segreda que, numa das escatológicas portas, delicada mão em êxtase lavrou o haiku que resgata qualquer cinzentismo, fundindo, em sublime anseio artístico, a sala, os filmes exibidos e os mais fundos desejos dos espectadores. Na porta do WC, a mulher em chamas escreveu, e eu espero que se preserve e arquive como obra de arte: “Mizoguchi lambe-me a pussy.”

Publicado no Expresso