Caiu a noite. Aproveitemos. Se há uma cena de Godard a que cai bem a noite, esta é uma delas. Está entre as dez cenas que eu escolho para fazer a mais rápida volta à história do cinema.
Brigitte Bardot
LE MÉPRIS (1963, de Jean-Luc Godar (O Desprezo)
cena de Bardot nua, em diálogo com Michel Piccoli, passando em revista cada parte do seu corpo
No começo dos anos 60, o cinema europeu ainda amava o cinema americano e a ambição de ir filmar na América era grande. É esse, aliás, o tema deste filme.Realizou-o Jean-Luc Godard que era então o enfant terrible da nouvelle vague.
“Le Mépris” foi o filme em que Godard esteve mais perto de entrar na indústria americana, mas foi também o que o pôs mais longe dela.
Brigitte Bardot, que então unia mais os europeus, do que algum dia Bruxelas há-de conseguir, era a vedeta, a estrela do elenco. Joseph E. Levine, o produtor americano, ao ver a versão final, sem um nu pelo menos de Bardot, atirou-se a Godard, exigindo-lhe nus para vender o filme. Godard resignou-se à maneira dele e filmou este plano-sequência de abertura.
O que vimos é o cinema em toda a sua glória. Num quarto de sombras, cruzado por uma réstia de luz e filtros a roçar uma certa decadência, está deitada e nua Brigitte Bardot. É irresistível olhar-lhe para as tão displicentes nádegas, porque ela mesmo diz ao actor com quem contracena, mas também a toda a plateia: “E as minhas nádegas, achas que são bonitas?”
Nem vale a pena estar a responder. Bardot está nua, oferecendo-nos as costas, deitada na cama. Piccoli em segundo plano, contempla-a. Palavra a palavra, pela boca de Bardot, com o complacente acordo de Piccoli, é-nos dito cada centímetro do corpo dela. Ouvimos “os meus pés!” e vemos os pés dela. Ouvimos os tornozelos, as coxas, o rabo, os joelhos. Ouvimos o corpo de Bardot, como se ouvíssemos as ondas do mar, sensação que as vagas de filtros vermelhos e azuis, utilizados por Godard, mais reforçam.
Ainda temos os ouvidos nas redondas e tão belas nádegas e já Bardot nos pergunta “o que preferes, os meus seios ou os bicos dos meus seios?” Sabemos lá. Sabem os nossos ouvidos é que nos seios ou nos bicos deles se roça, sublime, a música de Georges Delerue.
Ouvimos e sabemos que nos entra pelos olhos e pelos ouvidos uma nova forma de erotismo. Este já é um erotismo pós-Marilyn, um erotismo sem inocência, em que desagua a dúvida, a crescente perplexidade masculina europeia. A alacridade das pernas de Marilyn nada tem a ver com o rabo de Brigitte Bardot aqui posto em sossego.