Gene Kelly, a subversão

Escrevi este texto para um número de 2018 da revista Argumento. É a revista do Cineclube de Viseu. Duas preciosidades, a revista e o Cineclube. Daqui a dias deve estar a sair o primeiro número deste ano. Imperdível, claro. Depois conto, mas agora, que estamos frescos e de alma limpa neste começo de 2020, dancemos. Com Gene Kelly. 

an-american-in-paris

“Acho que vou agarrar-me às pernas do Gene Kelly, salvo seja. Para dizer que há mais subversão num pas de deux do que numa reunião do comité central.” Foi esta tirada insensata que me saiu quando, para este número da Argumento, o Rodrigo Francisco me convidou a escrever sobre um realizador, actor ou filme americano.

Insensatez puxa insensatez e já me apetece apresentar Gene Kelly, filho do grandioso capitalismo americano, como um modelo exemplar de acumulação de capital: repare-se, começamos a pensar nele como bailarino, essa função proletária de qualquer musical, mas depois damo-nos conta de que Gene Kelly era, afinal, o capataz de si mesmo, por ser o coreógrafo dos seus números musicais. Era também cantor e era actor, funções laborais cuja mais-valia é, no cinema, vilmente explorada pelos realizadores. Só que Gene Kelly, fechando um virtuoso círculo capitalista, era também realizador dos seus próprios filmes. É esta tão primitiva como prodigiosa acumulação de capital que, na paisagem das artes do século XX, faz de Gene Kelly uma figura revolucionária e libertadora – qualidades que, aliás, Karl Marx, no Manifesto Comunista reconhece hagiograficamente ao capitalismo, e isto sem que Marx ou mesmo Engels algum dia tenham visto dançar ou cantar o pirata que foi Gene Kelly.

Um hino à liberdade

Comecemos por pôr um pé em Singin’ in the Rain. Kelly co-realizou-o e co-coreografou-o com Stanley Donen. Dançou-o, cantou-o e interpretou-o. Foi a fábrica e o capital, o proletário e o patrão, as máquinas e a matéria-prima. O que ainda hoje, e eu espero que sempre, nos fascina em Singin’ in the Rain é a inexistência de elementos repressivos. As artes, ao contrário do que as academias querem fazer crer, estão impregnadas de autoritarismo e de subserviência. Vergam-se ou obrigam-se a seguir sistemas petulantes e impensados princípios fundamentalistas. É dessa opressão que nos resgata Gene Kelly: entra-se em Singin’ in the Rain e escuta-se um hino à liberdade.

O chamado cinema musical americano, e por isso Singin’ in the Rain, alicia-nos à suspensão da descrença, mas mais do que os outros filmes sérios, não só nos seduz e nos mergulha, imitando as arrebatadoras sereias de Homero, na suspensão da descrença absoluta, como nos instila uma angélica condição infantil (voltamos a ser meninos de nossa mãe), que até nos faria ter vergonha se não acreditássemos naquilo tudo, no sapateado à chuva, na longa perna nua de Cyd Charisse, na voz melosamente apaixonada de Kelly, limpo e atlético jovem americano, a cantar You Were Meant For Me a Debbie Reynolds.

Há nos musicais e na personalidade de Gene Kelly uma ingenuidade tão optimista como desarmante. E nós, espectadores, vamos com ele, fundindo-nos nele. A culpa é da sua liberdade criativa: tudo é real e tudo se transfigura, uma casa converte-se num estúdio e um estúdio numa casa. Toda a fantasia sonhada pelo surrealismo (que sempre teve mais ideias do que obra feita) se concretiza nos musicais de Gene Kelly. Veja-se, em Singin’ in the Rain, como dois homens e uma mulher que estiveram, a uma mesa de cozinha, a matar a cabeça, madrugada dentro, para salvar um filme de capa e espada convertendo-o num musical, inventam o mais belo Good Morning que já algum dia a humanidade cantou ou ouviu. Cantam os três, a dança derrama-se da cozinha para a sala, três impermeáveis dourados quase saltam do bengaleiro para os vestir e até os infinitamente imóveis sofás da sala ganham vida e celebram.

Andam por aí campeões da ruptura, braços a levantar como estandarte um formalismo cinzento e rígido e aqui, num número musical de revista, com a mesma simplicidade com que Vénus se despia, três seres humanos cantam e dançam, pondo a inanimada casa e os inanimados adereços a cantar e a dançar e cada um deles já é outra personagem, já o uno é múltiplo, com uma felicidade que não só nos deixa de boca aberta, como nos enche o coração de pura alegria.

Descartes devia ter aprendido a dançar

Eu podia cansar-vos chamando a atenção para a desmesurada liberdade de Kelly. Apontaria com o dedo para Cyd Charisse – e quem é que não quer apontar um ou dois dedos a Charisse? – e diria que nunca houve mais perfeito filme no filme do que no Bradoway Melody, o mais belo número musical de Singin’ in the Rain. Desde Shakespeare que há a play within a play, em Poe como em Chaucer ou Melville há a story within a story, em Eliot e Ezra Pound fundem-se poemas no poema, mas a energia, a euforia, a latência erótica deste número, feito só de música e dança, um par de calças e um curto vestido verde são empolgantes e vão directos aos cinco sentidos: o filme no filme é a própria natureza do cinema musical, é o seu sangue nas veias.

E, no entanto, quanto artificio: o que é aquilo em que Kelly e Charisse dançam? É um estúdio de cinema? Assim, tão alcatifado? É um cabaret com uma parede a menos, e se é, por que razão estão as mesas encostadas às paredes? Ou é um palco? Ou é a liberdade de ser isso tudo?

Ainda não falei do triunfo do corpo. Tanto faz que estejamos a ver Singin’ in the Rain, An American in Paris, On the Town, The Pirate ou It’s Always Fair Weather, todos eles são obras de arte da arte do corpo. Para que não se pense que me enganei, repito: da arte da arte do corpo. Os braços, o torso, a cintura, as nádegas, pélvis, pernas e pés, operários de um raio, têm de saber fazer. Sem essa arte do corpo, de cada parte do corpo, não haveria a arte do musical. E seria uma cobardia, não dizer o essencial: o corpo de bailarino, o corpo de Gene Kelly não se limita a fazer, o corpo exprime. Há linguagem no corpo de Kelly, as pernas dele pensam, os pés conceptualizam. Muita treta e rainha da cocada preta se tem dito da falta de corpo na arte do Ocidente e do reprimido corpo judeo-cristão. Ei-lo, patente, potente e contente. Exuberante, ora moral, ora pagão e pecador, mas nunca deprimido.

Sim, António Damásio mostrou-nos o caminho e o erro de Descartes. Querem uma visão não-cartesiana do mundo, anterior, julgo, ao nascimento do cientista António Damásio? Escolham se querem ser Donald O’Connor ou Leslie Caron e, a essa cosmovisão não-cartesiana, vejam-na, toquem-na e dancem-na com Gene Kelly, como Kelly, desdobrando-se, a dançou consigo mesmo em Cover Girl, ou com Esther Williams em Take Me Out to the Ball Game, ou com Frank Sinatra e até o Rato Jerry em Anchors Aweigh. Melhor, dancem, em An American in Paris, os dez minutos do American in Paris Ballet: nesse sublime, mas tão tangível bailado, Gene Kelly e Leslie Caron encontram-se e perdem-se, procuram-se e fundem-se. O filme é de Vincente Minnelli e, em ruas, becos e praças roubadas à pintura de Renoir, Rousseau, Duffy ou Toulouse Lautrec, até Van Gogh, os bailarinos movem-se, contorcem-se, dilaceram-se. São só, diremos, acções físicas. Mas juntemos-lhes a translúcida água, colunas de nevoeiro, luz e contraluz, a música de Gershwin, e tudo é já sugestão e intenção. De quantas cores é o vestido de Caron, no bailado no fontanário? Torram-se amarelos, metalizam-se azuis, é negra noite, é esplêndida alvorada e essa euforia espiritual transcende a soma das acções físicas: estão ali, em celebração onírica, corpo e alma. Que elegante e lábil é a alma! Que sopro e emoção tem o corpo!

A esquizofrenia

Bica Curta servida no CM; 3.ª feira, dia 3 de Agosto

Dansgelegenheid Balajo

Em política, intelectuais e certas camadas ilustradas pensam melhor com o corpo do que com a mente. Lembro as escolhas dos intelectuais europeus no século XX: preferiram defender o comunismo soviético, apesar da repressão pidesca, fome e flagrantes carências, atacando as vergonhas do capitalismo. Escusado é dizer que para o corpinho deles, para os seus mimos e forma de viver queriam era aconchegar-se no capitalismo que condenavam.

A farsa repete-se. Levantam-se bandeiras alternativas, igualitarismos, fogo no rabo do mercado, mas é na segura abundância de países de mercado aberto que sabe bem viver. Corpo e mente não se entendem.

As dores de Cristiano Ronaldo serão as mesma do que as minhas?

ronaldo

Agora que vi Ronaldo em Madrid, a ser entrevistado por um punhado de menininhas e menininhos – e tanto gostei de o ver, lembrei-me que há cerca de um ano ele conversou, confessional, comigo, papo que relatei como se segue. Ou melhor, ele não conversou bem comigo, que ele não me dá essa confiança. Foi aos jornalistas que Cristiano Ronaldo fez essa confissão: “Não tive um dia na minha carreira que não tivesse dor.” Cristiano Ronaldo ainda nem trinta anos tinha quando disse o que o site do ESPN do Brasil pespegou então, às 17:00, na sua página, para delírio dos seus leitores, actualizando essas dores, e eram já outras dores, às 17:15.

Eu precisei de chegar aos 65 anos para me aproximar, tangencialmente que seja, de Cristiano. Uma moinha na cervical, mesmo se me deixa dormir, logo tem, em última análise, como se diria nos meus tempos revolucionários e sem dores, lamentáveis consequências na barriga das pernas no dia seguinte. E se não for o joelho, há-de ser o dedo médio da mão esquerda que congela, como se a articulação ossificasse, sem remissão, para a eternidade. E nem falo do braço direito que já não levanta seque à altura do ombro e gera dores horrorosas quando tento usar os tradicionais saca-rolhas nos brancos rabigato do Douro que deveriam ser o bálsamo da minha velhice.

Chego aos 65 anos e sou, finalmente, um Cristiano Ronaldo: não há um só dia sem dores, uma só articulação que não proteste, coração, cabeça e estômago que não venham, camilianos, atazanar-me.

Isto era o que se me oferecia dizer aos 65 anos. E, não obstante, um ano depois, aos 66, esquecidas ou assimiladas, eis que as dores se dissipam, uma certa e distraída inefabilidade leva-me o corpo, sem dizer nada, sem aviso e, diga-se, sem maldade. Por fim, o nirvana.

Pela frente ou por trás?

Quando a Epicur estava viva, eu ia, Primavera, Verão, Outono, Inverno, comer os bolos que lá me davam. Era pelo menos assim que se chamava a página da minha crónica: “Disseram-me que davam bolos.” Está foi polémica.

sharon stone

“Disseram-me que davam bolos”, chama-se esta coluna. Prometi bolos e já me distraio com o decote de Madonna. Passou à minha frente, nos MTV Movies Awards, em Los Angeles, quando me convidavam para miminhos desses.

Sei muito bem o que é um decote. Reconheço o altís­simo sobres­salto que um esmagado e espevitado par de cativas pom­bas, chamemos-lhes assim, pro­vo­ca no escasso corpo de um homem. E é verdade que este é o decote de Madonna, mas umas costas nuas! Nada se com­para ao ves­tido de finas alças nos ombros, estuá­rio aberto que se vem fechar sobre as cinco fun­di­das vér­te­bras do sacro – incom­pa­rá­vel é a geo­gra­fia de umas cos­tas nuas.

Prometi bolos e, afinal, espreito um decote. Não obstante, se há prazer que merece ser celebrado, é o das costas nuas. À frente, há uma planície venu­si­ana, certo? Mas atrás! Espa­ços aber­tos, duas rasas margens de um vale com um rio de vértebras ao meio. Ebúrneas e delicadas, castanhas e bronzeadas, de acetinado ébano, cantemos, de uma mulher, e logo desta mulher, as costas nuas.

Obcecado com a promessa de bolos, ainda não disse de quem são as costas. As costas, cósmicas, praia de Deus, são as de Sharon Stone. A dois metros de mim, umas alças, feitas do tecido “o rei vai nu”, seguram-lhe o vestido, que só começa onde lhe acabam as doces vértebras. Uma visão a tentar fazer-nos esquecer que estamos no ano de “Basic Instinct”, filme em que os nossos olhos se focaram na sombra da sua recôndita e faiscante arqueologia.

Qual­quer turista ataca as vistas frontais, para ver o garantido périplo que vai das gémeas tor­res Eif­fel, que Jean-Paul Gaultier desenhou a Madonna, à gruta de Las­caux, que Courbet pintou, à sua escandalosa maneira, chamando-lhe a origem do mundo. Mas as cos­tas nuas! As cos­tas nuas pedem a didác­tica tensão de um Oví­dio, a per­sis­tên­cia do lento apren­diz de uma “Ars Amatoria”.

Viajemos, vértebra a vértebra, as costas de Sharon Stone. Mais breves do que um soneto, cinco versos cer­vi­cais levam-nos da cabeça à linha de ombros. Cinco ver­sos, cinco anéis de ouro e prata a pedir o escor­re­ga­dio beijo dos lábios, os dedos em cacho, como no “Cântico dos Cânticos” se vin­dimava em En-Gaddi.

Dois dedos abaixo, para cantar a vaga­bunda beleza torá­cica e lom­bar das costas nuas, ninguém consegue calar o rei Salomão. Ele nunca viu Sharon Stone e já implora: deixa-me ser o pas­tor que apas­centa os teus reba­nhos. A estas este­pes atravessa-as o mais móvel dos túneis – nas firmes cos­tas, subliminar, subterrânea, há uma lírica trança gela­ti­nosa e óssea. Trança – não, não é um bolo! – que rever­bera a cada toque da polpa de uns dedos, sopro de uns lábios, enca­ra­co­la­dos cabe­los que nela se rocem.

E, no entanto – Sharon Stone não é Galileu! – nem tudo se move. Estão imóveis e fun­di­das as cinco vér­te­bras do sacro, imóveis e fun­di­das as quatro vér­te­bras do cóc­cix. Imóveis e fundidas como sólidas amarras que segurassem o suspenso e oscilante jar­dim babilónico logo abaixo. Sem essas vér­te­bras resi­li­en­tes, nunca o poeta pode­ria ter dito: “Eu entro no meu jar­dim, eu como o mel, o favo.”

Cauda equina de tão ner­vo­sas raí­zes – ai jardim, já o ves­tido te esconde, para que melhor te adi­vi­nhe­mos. E por mais que o manto tape, dese­nham-se nele redondas montanhas, promessa de neves no Kilimanjaro.

O amado, que des­ceu em bei­jos cer­vi­cais, que cor­reu torá­cico, que vadiou no bál­samo lom­bar, que estremeceu no imó­vel rigor sacro­coc­cí­geo, suplica agora à amada: “Pela frente ou por trás?” E ela, voz de Inverno, rosa de Sharon, perdão, de Saron: “Ó meu amor, pela frente ou por trás, para mim tanto faz.”