
Li, não sei onde; li, não sei quando:
“A indecente beleza de um corpo em sofrimento.”

A Página Negra de Manuel S. Fonseca
Blog de escrita e de reflexão lúdicas. Um lema: chatices não!
Li, não sei onde; li, não sei quando:
“A indecente beleza de um corpo em sofrimento.”
Bica Curta servida no CM; 3.ª feira, dia 3 de Agosto
Em política, intelectuais e certas camadas ilustradas pensam melhor com o corpo do que com a mente. Lembro as escolhas dos intelectuais europeus no século XX: preferiram defender o comunismo soviético, apesar da repressão pidesca, fome e flagrantes carências, atacando as vergonhas do capitalismo. Escusado é dizer que para o corpinho deles, para os seus mimos e forma de viver queriam era aconchegar-se no capitalismo que condenavam.
A farsa repete-se. Levantam-se bandeiras alternativas, igualitarismos, fogo no rabo do mercado, mas é na segura abundância de países de mercado aberto que sabe bem viver. Corpo e mente não se entendem.
Agora que vi Ronaldo em Madrid, a ser entrevistado por um punhado de menininhas e menininhos – e tanto gostei de o ver, lembrei-me que há cerca de um ano ele conversou, confessional, comigo, papo que relatei como se segue. Ou melhor, ele não conversou bem comigo, que ele não me dá essa confiança. Foi aos jornalistas que Cristiano Ronaldo fez essa confissão: “Não tive um dia na minha carreira que não tivesse dor.” Cristiano Ronaldo ainda nem trinta anos tinha quando disse o que o site do ESPN do Brasil pespegou então, às 17:00, na sua página, para delírio dos seus leitores, actualizando essas dores, e eram já outras dores, às 17:15.
Eu precisei de chegar aos 65 anos para me aproximar, tangencialmente que seja, de Cristiano. Uma moinha na cervical, mesmo se me deixa dormir, logo tem, em última análise, como se diria nos meus tempos revolucionários e sem dores, lamentáveis consequências na barriga das pernas no dia seguinte. E se não for o joelho, há-de ser o dedo médio da mão esquerda que congela, como se a articulação ossificasse, sem remissão, para a eternidade. E nem falo do braço direito que já não levanta seque à altura do ombro e gera dores horrorosas quando tento usar os tradicionais saca-rolhas nos brancos rabigato do Douro que deveriam ser o bálsamo da minha velhice.
Chego aos 65 anos e sou, finalmente, um Cristiano Ronaldo: não há um só dia sem dores, uma só articulação que não proteste, coração, cabeça e estômago que não venham, camilianos, atazanar-me.
Isto era o que se me oferecia dizer aos 65 anos. E, não obstante, um ano depois, aos 66, esquecidas ou assimiladas, eis que as dores se dissipam, uma certa e distraída inefabilidade leva-me o corpo, sem dizer nada, sem aviso e, diga-se, sem maldade. Por fim, o nirvana.
Quando a Epicur estava viva, eu ia, Primavera, Verão, Outono, Inverno, comer os bolos que lá me davam. Era pelo menos assim que se chamava a página da minha crónica: “Disseram-me que davam bolos.” Está foi polémica.
“Disseram-me que davam bolos”, chama-se esta coluna. Prometi bolos e já me distraio com o decote de Madonna. Passou à minha frente, nos MTV Movies Awards, em Los Angeles, quando me convidavam para miminhos desses.
Sei muito bem o que é um decote. Reconheço o altíssimo sobressalto que um esmagado e espevitado par de cativas pombas, chamemos-lhes assim, provoca no escasso corpo de um homem. E é verdade que este é o decote de Madonna, mas umas costas nuas! Nada se compara ao vestido de finas alças nos ombros, estuário aberto que se vem fechar sobre as cinco fundidas vértebras do sacro – incomparável é a geografia de umas costas nuas.
Prometi bolos e, afinal, espreito um decote. Não obstante, se há prazer que merece ser celebrado, é o das costas nuas. À frente, há uma planície venusiana, certo? Mas atrás! Espaços abertos, duas rasas margens de um vale com um rio de vértebras ao meio. Ebúrneas e delicadas, castanhas e bronzeadas, de acetinado ébano, cantemos, de uma mulher, e logo desta mulher, as costas nuas.
Obcecado com a promessa de bolos, ainda não disse de quem são as costas. As costas, cósmicas, praia de Deus, são as de Sharon Stone. A dois metros de mim, umas alças, feitas do tecido “o rei vai nu”, seguram-lhe o vestido, que só começa onde lhe acabam as doces vértebras. Uma visão a tentar fazer-nos esquecer que estamos no ano de “Basic Instinct”, filme em que os nossos olhos se focaram na sombra da sua recôndita e faiscante arqueologia.
Qualquer turista ataca as vistas frontais, para ver o garantido périplo que vai das gémeas torres Eiffel, que Jean-Paul Gaultier desenhou a Madonna, à gruta de Lascaux, que Courbet pintou, à sua escandalosa maneira, chamando-lhe a origem do mundo. Mas as costas nuas! As costas nuas pedem a didáctica tensão de um Ovídio, a persistência do lento aprendiz de uma “Ars Amatoria”.
Viajemos, vértebra a vértebra, as costas de Sharon Stone. Mais breves do que um soneto, cinco versos cervicais levam-nos da cabeça à linha de ombros. Cinco versos, cinco anéis de ouro e prata a pedir o escorregadio beijo dos lábios, os dedos em cacho, como no “Cântico dos Cânticos” se vindimava em En-Gaddi.
Dois dedos abaixo, para cantar a vagabunda beleza torácica e lombar das costas nuas, ninguém consegue calar o rei Salomão. Ele nunca viu Sharon Stone e já implora: deixa-me ser o pastor que apascenta os teus rebanhos. A estas estepes atravessa-as o mais móvel dos túneis – nas firmes costas, subliminar, subterrânea, há uma lírica trança gelatinosa e óssea. Trança – não, não é um bolo! – que reverbera a cada toque da polpa de uns dedos, sopro de uns lábios, encaracolados cabelos que nela se rocem.
E, no entanto – Sharon Stone não é Galileu! – nem tudo se move. Estão imóveis e fundidas as cinco vértebras do sacro, imóveis e fundidas as quatro vértebras do cóccix. Imóveis e fundidas como sólidas amarras que segurassem o suspenso e oscilante jardim babilónico logo abaixo. Sem essas vértebras resilientes, nunca o poeta poderia ter dito: “Eu entro no meu jardim, eu como o mel, o favo.”
Cauda equina de tão nervosas raízes – ai jardim, já o vestido te esconde, para que melhor te adivinhemos. E por mais que o manto tape, desenham-se nele redondas montanhas, promessa de neves no Kilimanjaro.
O amado, que desceu em beijos cervicais, que correu torácico, que vadiou no bálsamo lombar, que estremeceu no imóvel rigor sacrococcígeo, suplica agora à amada: “Pela frente ou por trás?” E ela, voz de Inverno, rosa de Sharon, perdão, de Saron: “Ó meu amor, pela frente ou por trás, para mim tanto faz.”