O Bem e o Mal

O pai morrera e ele nunca mais almoçava. O caixão era paupérrimo, uma coisa dickensiana ao lado da qual caminhava a aflita dor da mãe. O futuro Charlot, vinha atrás da urna do pai e do pranto da mãe. Para distrair a fome, ia mimando, caricatural, o sofrimento materno. Tão expressivo que o irmão soltava gargalhadas. Toda a criança é cruel, dir-se-á. O futuro diria que ele era mau como as cobras.

Há outra morte a atravessar-lhe biografia e obra. O primeiro filho de Chaplin nasceu mal-formado e morreu após três dias de angústia. Duas semanas depois, sem indulgência, Chaplin fazia testes a actores para o que seria o filme-querubim a que chamamos “The Kid”. Fê-lo como quem se cura com o próprio veneno.

Ignóbil foi também a inspiração de “The Gold Rush”. O brutal rigor de um Inverno isola um grupo de pesquisadores de ouro. Para sobreviverem comem os cadáveres dos que vão tombando. Depois de ver o que Chaplin fez com esse material, até nem me parece estranho que Cristo em Canaã tivesse transformado a água em vinho. Como se convertem tragédias em comédias, que estranha alquimia transforma a crueldade em angelical inocência? A maldade é, aposto, um ingrediente essencial. Vejamos.

“Mau como as cobras” foi o que disseram quase todas as mulheres de Chaplin. Numa altura em que as ligas puritanas marcavam Hollywood homem a homem, uma menor, Mildred Harris, clamou estar grávida dele. Sem poder arriscar o escândalo, o genial Chaplin casou-se. Estava à espera dela no registo e vendo chegar a juvenil figura não resistiu a um comentário sibilino: “Sinto um bocadinho de pena dela.” Não era caso para menos, em dois anos estavam divorciados e ela acusava-o, provavelmente com inteira verdade, de crueldade mental. Mas sem esses dois anos de tortura de Mildred será que Chaplin teria algum dia criado “City Lights”?

Reincidiu. Lembram-se da Lita Grey do “The Kid”? Tinha 12 anos. Aos 15, Chaplin chamou-a para ser a estrela de “The Gold Rush”. Ainda chegou a filmar, mas Lita descobriu-se, de repente e não por acaso, em estado interessante. Novo casamento urgente e obrigatório, nova tragédia pessoal. Chaplin abandonou-a num palácio dourado, enquanto se locupletava em infidelidades que incluíam a actriz que a substituiu e uma amiga que Lita lhe apresentara. A declaração de Lita no divórcio foi histórica: acusava Chaplin de todas as crueldades e mesmo de uma heterodoxa abordagem à relação sexual que a lei californiana condenava. Era, de frente ou de costas, mau como as cobras.

A desumanidade de Chaplin explica a humanidade da sua obra? O facto é que as tragédias, próprias ou alheias, foram o capital cómico dos seus filmes. O narcisismo, o ressentimento, a perversidade, a mesquinhez, a infidelidade geraram obras-primas. Atrevo-me: só do mal pode vir algum bem.

Detergente islâmico

 

Rachida

Bica Curta servida no CM, 4.ª feira, dia 25 de Setembro

Rachida Hamdan toma a bica curta em Saint-Denis, em Paris. É islâmica e anda de cabelos ao vento, saia dois dedos acima do joelho. Os fundamentalistas gritam-lhe “demónio, demónio”, mas Rachida não abdica da igualdade e da sua associação de mulheres islâmicas. Bem precisa. Em dez anos, os islâmicos, em França, radicalizaram-se mais. Eram 60% os que achavam boa a proibição do véu integral em público, hoje só 31%. E há 37% que querem a lei da república francesa vergada à charia, a lei religiosa.

Rachida contesta: “É lavagem ao cérebro com detergente islâmico. Reclamar direitos com base na cor da pele ou da religião é puro racismo.”

Rua ou romance?

chita

São duas mulheres. Mãe e filha, na verdade. Conversam:
«— Mas se eu fosse feliz com o meu vestido de chita, e o homem do meu coração?
— Isso é romance, menina. Nunca é feliz com um vestido de chita a mulher que tem amigas com vestidos de seda.»
São duas mulheres. Conversam. Rua ou romance? E se é rua, é de Lisboa ou do Porto? E se é romance, é de Eça ou de Camilo?

A mulher irretocável

robin

Tenho falado muito com jovens. O facto de eu usar chapéu facilita. No meu tempo, o chapéu preto era reaccionário, pidesco até, se ainda alguém sabe o significado destes coxos qualificativos. Havia uma excepção, o chapéu na cabeça de Bogart. A cabeça de Bogart enchia qualquer peito de admiração.

Mas dizia eu que tiro o chapéu e gera-se um atmosférico teasing geracional, ou, para pormos riqueza lexical na coisa, uma ligeira tensão dionisíaca. Os jovens de 20 a 30 anos admiram a bizarria estilística de um chapéu e entregam-se ao alegre e anacrónico convívio.

Estava a contar quem era Greta Garbo e, tentando imitar António-Pedro Vasconcelos, que usa um chapéu da idade do meu, citei. Eis a citação, que era da própria Garbo: “Sou uma mulher infiel a mais de um milhão de homens.” O rosto anti-balzaquiano da jovem de 30 anos teve uma iluminação rimbaudiana, if you pardon my French. Ela tinha uma ideia dos pés grandes da Garbo, mas saiu-lhe esta perplexidade semântica: o que é uma mulher infiel?

Com outro jovem, 25 anos a assobiar ecologia e profética antiglobalização, discutia o irreparável ímpeto do egotismo e, para não lhe dar o exemplo trivial de dois certos cronistas da nossa Imprensa (há três que vão pensar que são eles), nem cair nesse presidencial cliché que se chama Donald, atirei para a mesa tranquila com o nome de Cecil B. De Mille. Onde outros uivariam um triunfal “quem?”, o jovem foi de uma precariedade submissa: “Ainda hoje seguimos os dez mandamentos que ele escreveu.”

Eu ia indignar-me com este caos cinéfilo, mas o meu chapéu preto, e não me lembro se trazia o Emidio Tucci ou o da chapelaria Azevedo Rua, reprimiu-me a amotinada cabeça. Este é o tempo de outros heróis e heroínas, sem as lágrimas da mulher infiel. Ou sequer do homem infiel.

Vejam os filmes e séries do século XXI. Eis a mulher: a nietzschiana Jessica Chastain de “Zero Dark Thirty” ou a Claire Danes de “Homeland”. A dureza esquinada de Hilary Swank em “Million Dollar Baby”, a incontida convulsão insurreccional de Anne Hathaway de “Rachel Getting Married”. A tão sublime como criogénica Robin Wright de “House of Cards”, a líquida e incomestível Scarlet Johansson de “Under the Skin”. Diria, pedindo que não tenham medo de enfiar o dedo na polissemia da palavra: a mulher do século XXI é irretocável.

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A mulher que ri

De há uns anos para cá, todos os anos são anos de despedida, de irremediável adeus. Este ano, disse adeus a Jorge Adib. Meu amigo brasileiro, alto quadro da Globo, um desses belos e ágeis dinossauros que fez a primordial televisão de antigamente. Gostava, pelo puro prazer de me agradar, de dizer bem dos programas que eu produzia e, agora, dos livros que eu editava. Nunca deixarei de o lembrar – a ele e a minha muito mais jovem amiga Marise Caetano – com ternura incondicional

W-LA

à Marise, ao Jorge

Terá sido por causa das ostras? E não juro, porque os camarões vermelhíssimos, espalhados sobre uma cama de gelo, iam, à velocidade da luz, dos olhos para o palato. O velho Westwood Marquis tinha então o melhor brunch de domingo de Los Angeles. Aos veludos, talvez roubados a bordéis de excelência do século XIX, juntava um pianista igualzinho ao grande Countie Basie. Um tipo nostálgico sentia-se ali em sua casa.

Nostálgico como eu, quem lá veio almoçar comigo foi Jorge Adib, director da TV Globo, quase um filho, diziam-me, do fundador, esse Roberto Marinho que, um dia, correu com a polícia da ditadura brasileira, que viera à redacção da Globo prender uns comunistas: “Fora daqui, quem trata dos meus comunistas sou eu!”

Jorge Adib, como Roberto Marinho, podia tolerar os seus comunistas e detestar ditaduras, mas gostava das mulheres. Tinha, diga-se, a suave arte de falar com as mulheres.

Mas deixo o Jorge sentado com a querida Marise Caetano, a brasileira mais escandinava que conheço, amante de neve e frio, e viajo aos meus vinte anos, à primeira vez que percebi o que era falar com as mulheres. A coisa passou-se no Hexágono, sofisticada pastelaria do Lobito.

Estava com um amigo tão taranta como eu e um ex-capitão do exército português que andara aos tiros na Guiné e trazia nos olhos azuis, e nos cabelos negros, que o 25 de Abril desgrenhara, uma tristeza dos diabos. Julgo que andaria a querer redimir em utopia o que já saboreara de medo, angústia e morte. Ao lado da nossa mesa revolucionária sentaram-se três vezes vinte anos de mulheres bonitas. Eu e o meu amigo crescemos em feromonas e olhares fulminantes. Elas viraram as costas. Havia uma, de olhos verdes, cabelo moreno onde se podia ficar preso a vida inteira. O nosso ex-capitão disse-lhe a mais banal das frases. Misturou um conselho – que o “molotof” era a sobremesa da casa – com um galanteio sincero sobre a cor esmeralda dos olhos dela. Um minuto, juntámos as mesas, e três jovens mulheres dedilhavam as suas harpas de sombras, contando-nos os sonhos de vida que tinham. Soube, pela boca de um capitão, depois de Abril, que se podia falar às mulheres. Se isto não é a revolução, o que será a revolução?

E volto à sala onde deixei o Jorge e a Marise. A nossa atenção concentra-se, agora, numa outra mulher, uma mulher só, nem feia, nem bonita, sentada duas mesas à frente da nossa. Foi o radar infalível da Marise que a detectou. Viu-a chegar e ir buscar duas, três ostras. Viu que as comia com vagar e sem preconceito. E viu-a voltar para mais três, talvez seis. A partir daí, a mulher só, de peito discreto, pernas altas a que uns saltos altos emprestavam autoridade, experimentou tudo: das blueberry pancakes aos cogumelos selvagens embrulhados em gruyère e fitas de bacon fumado a macieira, da salada de lagosta ao feijão preto com ranchero sauce e abacate ao lado.

Não havia, na mulher só, indícios de voracidade. Comia à imperceptível velocidade do movimento de rotação da terra. Imagino que os alimentos se integrassem, com a mesma harmonia que se diz das esferas, nos tímidos seios, nas rosáceas ancas, nas meias luas do competente rabo.

O Jorge levantou-se: “Manuelzinho, pô, vou falar com essa mulher”. Foi e disse-lhe: “Senhora, creia-me admirador eterno do prazer com que come. Serviu-se 25 vezes. Não veja na contabilidade outra coisa que não seja o meu mais sublime e deliciado espanto. Nunca um brunch me soube tão bem.” As gargalhadas da mulher foram a explosão de júbilo a coroar um repasto real. As ostras podem ser boas, mas a mulher que ri é muito melhor.

adib

Pela frente ou por trás?

Quando a Epicur estava viva, eu ia, Primavera, Verão, Outono, Inverno, comer os bolos que lá me davam. Era pelo menos assim que se chamava a página da minha crónica: “Disseram-me que davam bolos.” Está foi polémica.

sharon stone

“Disseram-me que davam bolos”, chama-se esta coluna. Prometi bolos e já me distraio com o decote de Madonna. Passou à minha frente, nos MTV Movies Awards, em Los Angeles, quando me convidavam para miminhos desses.

Sei muito bem o que é um decote. Reconheço o altís­simo sobres­salto que um esmagado e espevitado par de cativas pom­bas, chamemos-lhes assim, pro­vo­ca no escasso corpo de um homem. E é verdade que este é o decote de Madonna, mas umas costas nuas! Nada se com­para ao ves­tido de finas alças nos ombros, estuá­rio aberto que se vem fechar sobre as cinco fun­di­das vér­te­bras do sacro – incom­pa­rá­vel é a geo­gra­fia de umas cos­tas nuas.

Prometi bolos e, afinal, espreito um decote. Não obstante, se há prazer que merece ser celebrado, é o das costas nuas. À frente, há uma planície venu­si­ana, certo? Mas atrás! Espa­ços aber­tos, duas rasas margens de um vale com um rio de vértebras ao meio. Ebúrneas e delicadas, castanhas e bronzeadas, de acetinado ébano, cantemos, de uma mulher, e logo desta mulher, as costas nuas.

Obcecado com a promessa de bolos, ainda não disse de quem são as costas. As costas, cósmicas, praia de Deus, são as de Sharon Stone. A dois metros de mim, umas alças, feitas do tecido “o rei vai nu”, seguram-lhe o vestido, que só começa onde lhe acabam as doces vértebras. Uma visão a tentar fazer-nos esquecer que estamos no ano de “Basic Instinct”, filme em que os nossos olhos se focaram na sombra da sua recôndita e faiscante arqueologia.

Qual­quer turista ataca as vistas frontais, para ver o garantido périplo que vai das gémeas tor­res Eif­fel, que Jean-Paul Gaultier desenhou a Madonna, à gruta de Las­caux, que Courbet pintou, à sua escandalosa maneira, chamando-lhe a origem do mundo. Mas as cos­tas nuas! As cos­tas nuas pedem a didác­tica tensão de um Oví­dio, a per­sis­tên­cia do lento apren­diz de uma “Ars Amatoria”.

Viajemos, vértebra a vértebra, as costas de Sharon Stone. Mais breves do que um soneto, cinco versos cer­vi­cais levam-nos da cabeça à linha de ombros. Cinco ver­sos, cinco anéis de ouro e prata a pedir o escor­re­ga­dio beijo dos lábios, os dedos em cacho, como no “Cântico dos Cânticos” se vin­dimava em En-Gaddi.

Dois dedos abaixo, para cantar a vaga­bunda beleza torá­cica e lom­bar das costas nuas, ninguém consegue calar o rei Salomão. Ele nunca viu Sharon Stone e já implora: deixa-me ser o pas­tor que apas­centa os teus reba­nhos. A estas este­pes atravessa-as o mais móvel dos túneis – nas firmes cos­tas, subliminar, subterrânea, há uma lírica trança gela­ti­nosa e óssea. Trança – não, não é um bolo! – que rever­bera a cada toque da polpa de uns dedos, sopro de uns lábios, enca­ra­co­la­dos cabe­los que nela se rocem.

E, no entanto – Sharon Stone não é Galileu! – nem tudo se move. Estão imóveis e fun­di­das as cinco vér­te­bras do sacro, imóveis e fun­di­das as quatro vér­te­bras do cóc­cix. Imóveis e fundidas como sólidas amarras que segurassem o suspenso e oscilante jar­dim babilónico logo abaixo. Sem essas vér­te­bras resi­li­en­tes, nunca o poeta pode­ria ter dito: “Eu entro no meu jar­dim, eu como o mel, o favo.”

Cauda equina de tão ner­vo­sas raí­zes – ai jardim, já o ves­tido te esconde, para que melhor te adi­vi­nhe­mos. E por mais que o manto tape, dese­nham-se nele redondas montanhas, promessa de neves no Kilimanjaro.

O amado, que des­ceu em bei­jos cer­vi­cais, que cor­reu torá­cico, que vadiou no bál­samo lom­bar, que estremeceu no imó­vel rigor sacro­coc­cí­geo, suplica agora à amada: “Pela frente ou por trás?” E ela, voz de Inverno, rosa de Sharon, perdão, de Saron: “Ó meu amor, pela frente ou por trás, para mim tanto faz.”