A mulher irretocável

robin

Tenho falado muito com jovens. O facto de eu usar chapéu facilita. No meu tempo, o chapéu preto era reaccionário, pidesco até, se ainda alguém sabe o significado destes coxos qualificativos. Havia uma excepção, o chapéu na cabeça de Bogart. A cabeça de Bogart enchia qualquer peito de admiração.

Mas dizia eu que tiro o chapéu e gera-se um atmosférico teasing geracional, ou, para pormos riqueza lexical na coisa, uma ligeira tensão dionisíaca. Os jovens de 20 a 30 anos admiram a bizarria estilística de um chapéu e entregam-se ao alegre e anacrónico convívio.

Estava a contar quem era Greta Garbo e, tentando imitar António-Pedro Vasconcelos, que usa um chapéu da idade do meu, citei. Eis a citação, que era da própria Garbo: “Sou uma mulher infiel a mais de um milhão de homens.” O rosto anti-balzaquiano da jovem de 30 anos teve uma iluminação rimbaudiana, if you pardon my French. Ela tinha uma ideia dos pés grandes da Garbo, mas saiu-lhe esta perplexidade semântica: o que é uma mulher infiel?

Com outro jovem, 25 anos a assobiar ecologia e profética antiglobalização, discutia o irreparável ímpeto do egotismo e, para não lhe dar o exemplo trivial de dois certos cronistas da nossa Imprensa (há três que vão pensar que são eles), nem cair nesse presidencial cliché que se chama Donald, atirei para a mesa tranquila com o nome de Cecil B. De Mille. Onde outros uivariam um triunfal “quem?”, o jovem foi de uma precariedade submissa: “Ainda hoje seguimos os dez mandamentos que ele escreveu.”

Eu ia indignar-me com este caos cinéfilo, mas o meu chapéu preto, e não me lembro se trazia o Emidio Tucci ou o da chapelaria Azevedo Rua, reprimiu-me a amotinada cabeça. Este é o tempo de outros heróis e heroínas, sem as lágrimas da mulher infiel. Ou sequer do homem infiel.

Vejam os filmes e séries do século XXI. Eis a mulher: a nietzschiana Jessica Chastain de “Zero Dark Thirty” ou a Claire Danes de “Homeland”. A dureza esquinada de Hilary Swank em “Million Dollar Baby”, a incontida convulsão insurreccional de Anne Hathaway de “Rachel Getting Married”. A tão sublime como criogénica Robin Wright de “House of Cards”, a líquida e incomestível Scarlet Johansson de “Under the Skin”. Diria, pedindo que não tenham medo de enfiar o dedo na polissemia da palavra: a mulher do século XXI é irretocável.

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