É amanhã, 3.ª feira, na Cinemateca, na livraria ao pé do bar, lá em cima, sobre as catacumbas que são as salas de cinema. Apresenta-se o n.º 4 da revista Granta. Vão falar o Pedro Mexia, o Daniel Blaufuks, Bárbara Bulhosa e João Rosas.
Eu junto-me com gosto a eles. Pedro Mexia convidou-me a escrever sobre a minha experiência da sala de cinema e dei comigo a escrever sobre salas de cinema improváveis e heterodoxas. Como a sala de cinema da estrada dos quartéis, em Luanda, o “cinema dos sargentos”, que evoquei assim:
“A mulher casada deu-ma a descobrir o meu sargento, mostrando-me Shirley Knight, ao volante de uma station, a deixar a sua casa numa plácida smalltown que, tivesse Angola auto-estradas, podia ser de Angola. Eu vi-a, de uma das minhas noites de cacimbo dos dezassete anos, saía ela de casa numa manhã de Inverno. A chuva pequenina, cambutinha, prima do cacimbo angolano, espalhava poças pelas ruas de Chattanooga, no Tennessee, onde Francis Ford Coppola filmou esta mulher grávida que, sem destino, deixa mansamente o marido e se mete à interminável estrada.
A luz, meu Deus e meus amigos! Tão fina e filtrada a luz, luz do sudeste americano a arrancar brilhos e reflexos ao asfalto, uma renda de humidade, a imarescecível humidade que a insatisfeita melancolia, se autêntica, não ousa dispensar. Shirley Knight encosta e acolhe a essa melancolia dois homens, James Caan e Robert Duvall. E Shirley devia ter-me acolhido a mim: eles não a amaram e incompreenderam mais do que eu.
Tudo nessa Shirley Knight é gentil, salvo o que é inexplicável ou insondável, que é praticamente tudo. As suas indizíveis razões, a sua inegociável solidão, a sua seguríssima incerteza comoveram a minha adolescência e eu, no cinema do meu sargento, que já me tinha dado a imagem do desumilhante e nietzschiano segundo riso, tomei de assalto a imagem independente e impossuível da mulher. Numa esplanada de ancas oferecidas à lua, ao cacimbo e às estrelas, o mouco rumor da guerra colonial que a plateia de soldados insinuava, conheci e entrou-me na pele a imagem da grave e errática liberdade da mulher casada. Quero que conste no meu cadastro: The Rain People chamava-se o filme de que Chove no Meu Coração foi o piedoso título português.”
Amanhã falamos. Não digam que não vos convidei.
Obrigada pelo convite.Pelo menos o do filme, ficou:).
E que seja uma sessão agradável.
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Foi mesmo. Gosto sempre de ir à Cinemateca. E os parceiros de mesa eram óptimos.
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