Onça, leão e loba

Deixem-me, hoje, descambar na beleza. Não me tomem por pretensioso, mas autorizem-me, como se dizia na mestiça Luanda colonial, a ficar buelo, ou seja, espantado, admirado, em estado de pura ingenuidade, a ouvir a voz do actor italiano Vittorio Gassman. Ouçam-no comigo. Sentem-se aqui, ao meu lado, sossegados e rendidos. Ouçam-no ler, no original, o Canto Primeiro da Divina Comédia. Podem, antes ou depois, ler a magnífica, soberba tradução de Vasco Graça Moura, que a Bertrand Editores publicou.

Ouçam Gassman. A meio do caminho da vida, Dante, que é o poeta e o narrador, perdeu-se numa selva escura. Quer subir, talvez à procura da luz, mas cortam-lhe o caminho, três feras ameaçadores, a onça, o leão, a loba. Resgata-o uma figura ténue e antiquíssima, que descobriremos, com Dante, ser o romano Virgílio, autor da Eneida. Tranquiliza o trémulo e inquieto Dante, propondo-se guiá-lo numa viagem ao mais fundo poço do desespero e ao mais alto monte celestial onde flanam as benditas gentes.

A que ressoa a voz de Gassman? Sombras e frouxo lume tremulam nessa voz absolutamente cativa da “parola” de Dante. Ouçam-no e vejam-no circular neste cenário tão parecido ao redondel do hospital psiquiátrico Miguel Bombarda, que João César Monteiro fez cenário de Recordações da Casa Amarela. Eis onde estamos, com Dante e com Vittorio Gassman: às portas da beleza e da loucura, do Inferno e do Paraíso.

Eduardo Lourenço

Eis o livro que deveríamos ler, hoje, na morte de Eduardo Lourenço: a sua entrega, cândida, sem rodeios, nesta livro-entrevista de vida, pensamento e obra.

Eduardo Lourenço: A História É a Suprema Ficção devia ser – e é – um auto-retrato de um dos nossos maiores pensadores. Numa longa entrevista, Eduardo Lourenço fala de si, da sua vida e obra.

Mas, de uma forma irresistível, ao falar de si a José Jorge Letria que o entrevista, Eduardo Lourenço prefere ou acaba por falar sempre de Portugal, esse país «ressonhado, reinventado, quase totalmente onírico».

Este é um livro essencial para se conhecer Eduardo Lourenço e a mundividência que, com a sua morte, nos abandona. Ninguém nos voltará a pensar assim, com a serenidade estóica de Lourenço, combinando literatura, filosofia, História, psicologia e sociologia. Desse tipo de saber, enciclopédico, desse saber em passeio pelas palavras, Eduardo Lourenço era o último depositário português. Ninguém nos voltará a dar um tão heterodoxo sentido de identidade, combinando cristianismo e marxismo, Shakespeare e Camões, Dante e Fernando Pessoa, saudades e mitologias.

Deixamos aos leitores da Guerra e Paz um excerto. Eis Eduardo Lourenço a falar de Portugal e do fim do Império:

Voltámos à Europa, de onde nunca deveríamos ter saído, mas à qual pertencemos mesmo antes de ter nascido.
Agora estamos envoltos num destino comum, protegidos e desprotegidos ao mesmo tempo. Eu sou muito europeísta, de maneira que ainda confio que o destino europeu nos proteja de uma subalternidade definitiva na História que nos ponha fora da História e que a Europa recupere um pouco o papel que foi o seu durante milénios e que Portugal continue a ser o país miticamente sonhado pelos nossos grandes autores, que é fundamentalmente e será sempre o país de Camões. Um país que, diante de dificuldades que naquela altura pareciam insuperáveis, passe a ser um país ressonhado, reinventado, quase totalmente onírico, aquele que António Vieira imaginou como uma espécie de miniatura, um Portugal império universal do Cristo e depois da Mensagem, que é outra coisa, que é o sonho mais próximo de nós, um país que é uma espécie de Menino Jesus das Nações, como diria Agostinho da Silva.
E esse pequeno país é maior do que ele próprio. Nessa dimensão, quase onírica dele mesmo, fomos um país da inquisição, é que reside a sua originalidade, a sua singularidade. Nós somos um país que empiricamente se espalhou, realmente, no mundo, mas o mais interessante é isso: permanecer. É um país que se dissolveu no mundo. Mas essa famosa dissolução, dita na Mensagem, de facto é a nossa dimensão messiânica, a nossa dimensão poética. Sem essa dimensão, nós ficamos muito mais pequenos do já somos.

Eduardo Lourenço: A História É a Suprema Ficção, retrato de Portugal, é um auto-retrato de Eduardo Lourenço, que se confia às perguntas de José Jorge Letria. Um livro da Guerra e Paz, que só a ajuda e dinâmica de serviço público da Sociedade Portuguesa de Autores tornou possível. A ler agora.