
Deixem-me, hoje, descambar na beleza. Não me tomem por pretensioso, mas autorizem-me, como se dizia na mestiça Luanda colonial, a ficar buelo, ou seja, espantado, admirado, em estado de pura ingenuidade, a ouvir a voz do actor italiano Vittorio Gassman. Ouçam-no comigo. Sentem-se aqui, ao meu lado, sossegados e rendidos. Ouçam-no ler, no original, o Canto Primeiro da Divina Comédia. Podem, antes ou depois, ler a magnífica, soberba tradução de Vasco Graça Moura, que a Bertrand Editores publicou.
Ouçam Gassman. A meio do caminho da vida, Dante, que é o poeta e o narrador, perdeu-se numa selva escura. Quer subir, talvez à procura da luz, mas cortam-lhe o caminho, três feras ameaçadores, a onça, o leão, a loba. Resgata-o uma figura ténue e antiquíssima, que descobriremos, com Dante, ser o romano Virgílio, autor da Eneida. Tranquiliza o trémulo e inquieto Dante, propondo-se guiá-lo numa viagem ao mais fundo poço do desespero e ao mais alto monte celestial onde flanam as benditas gentes.
A que ressoa a voz de Gassman? Sombras e frouxo lume tremulam nessa voz absolutamente cativa da “parola” de Dante. Ouçam-no e vejam-no circular neste cenário tão parecido ao redondel do hospital psiquiátrico Miguel Bombarda, que João César Monteiro fez cenário de Recordações da Casa Amarela. Eis onde estamos, com Dante e com Vittorio Gassman: às portas da beleza e da loucura, do Inferno e do Paraíso.
Esta tua, como lhe chamar…, legenda, lembra-me Kazantzaki, a dizer que o paraíso era ali no Monte Sinai onde se encontrava (Do Monte Sinai à Ilha de Vénus). Les beaux esprits se rencontre.
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Mais c’est sûre, mon cher editeur. Grande abraço, que é disso que estamos a precisar.
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