Saramago, crónica de irremediável tristeza

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Há uns bons anos, no dia 31 de Julho de 2009, era por acaso uma 6.ª feira, José Saramago escreveu uma crónica bela e pungente. Na altura, a blogosfera no seu nadir,  estranhei que tivesse tido tão pouco eco.

A crónica evocava a grandeza de Álvaro Cunhal, a sua falta. Nostálgica evocação? Sebastiânica saudade? Talvez, mas não só. Era mais. Era, a meu ver, uma elegia do comunismo. Numa crónica perpassada por irremediável tristeza, Saramago despedia-se publicamente da sua ideologia de sempre.

O cronista lamentava que Cunhal não tivesse escrito as memórias que nos permitiriam compreender, diz ele, ”os fundamentos da raquítica árvore a cuja sombra se recolhem hoje os portugueses a ingerir os palavrosos farnéis com que julgam alimentar o espírito.” A “raquítica árvore” cujos fundamentos as memórias de Cunhal poderiam elucidar é, sabemos todos, o velho e cristalino partido de que Cunhal foi o ideólogo obsessivo, o rosto austero e a mão mais ou menos férrea.

Na crónica de Saramago, a saudade de Cunhal e a crítica ao Partido poderiam ser as duas faces de uma moeda de circunstância – crítica de pormenor que não abalasse a monumental arquitectura. Faça-se-lhe justiça, a meditação de Saramago é mais exigente e convulsa. O escritor lamenta que Cunhal não tenha deixado testamento e memórias que fossem, afinal, “uma reflexão sobre a grandeza e decadência dos impérios, incluindo aqueles que construímos dentro de nós próprios, essas armações de ideias que nos mantêm o corpo levantado e que todos os dias nos pedem contas, mesmo quando nos negamos a prestá-las.” Há uma agónica amargura neste balanço da “armação de ideias”. Não escrevendo as memórias, Cunhal negou-se “a prestar contas”. Cabe, por isso, a Saramago a missão de evocar a grandeza da Ideia comunista e lavrar em acta a sua decadência.

Já antes, em vida de Cunhal, Saramago terá discordado dele algumas vezes, interpretando a História de forma diferente. Pouco importa, dizia Saramago na crónica: “A esta distância, porém, já tudo parece esfumar-se, até as razões com que, sem resultados que se vissem, nos pretendíamos convencer um ao outro. O mundo seguiu o seu caminho e deixou-nos para trás.” Nem as razões de Cunhal, nem as razões de Saramago prevaleceram. O comunismo falhou e a História seguiu (ou já seguira, sem que os dois o tenham pressentido) um caminho diferente. Encontrando-se ou não com a História, Saramago reconhece a inutilidade da caminhada e o fim do comunismo.

Desde meados dos anos 40 (antes, em casos mais lúcidos) que muitos homens e mulheres, anónimos ou de intenso brilho intelectual, abandonaram o comunismo. Não há heroísmo, hoje, no abandono dessa carruagem decrépita. Não há sequer, no século XXI, a desculpa da ilusão ou da utopia. Demasiado tarde. O que não torna menos feroz e brutal o acto pessoal de despedida da ideologia, essa ruptura individual de quem “carbonizou” uma vida inteira na devoção de um sol de cinzas frias.

A Revolução de Outubro e a superioridade moral

Há quase dois anos, que se hão-de cumprir em Novembro, comemoraram-se os 100 anos da Revolução de Outubro. Publiquei então um livro da minha autoria, com o título Revolução de Outubro, Cronologia , Utopia e CrimeA jornalista Marta Talhão entrevistou-me na revista GQ. O resultado é o que se pode ler aqui e que, em altura de Brexit, me apetece recordar.

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Na sinopse do livro, diz que este é um livro de factos. Considera que são muitos os factos desse tempo hoje ignorados?

Os factos foram, durante muitos anos, omitidos, apagados e torpedeados. Mas houve historiadores, como Richard Pipes e Orlando Figes, que obrigaram as narrativas heróicas da revolução a confrontarem-se com os factos. Depois, o fim da União Soviética, a que a glasnost e a perestroika de Gorbachov conduziram, vieram a determinar a abertura dos arquivos do regime comunista. E são os factos que sempre lá estiveram, mas que foram metidos debaixo do tapete da história oficial, que hoje fundamentam a desmistificação das versões em missa cantada da revolução. Os factos mostram que a revolução de Outubro afasta do poder a esquerda, as várias esquerdas, contra as quais o golpe é feito. Os factos mostram que o partido bolchevique, depois partido comunista, era mais do que minoritário e que mesmo pensadores marxistas os consideravam uns alucinados da História.

Cem anos depois, ainda se sentem hoje ecos da Revolução?

A Revolução de Outubro determinou o mapa da Europa. A Europa que somos, com esta tensão tão viva entre a Rússia de Putin e a União Europeia ainda é um eco bastante audível dela. A Revolução de Outubro foi um Brexit avant la lettre. Esse golpe populista pôs a Rússia fora da Europa e influenciou a forma como as tensões políticas se extremaram na Europa o que deu gás (ou ainda mais gás) à emergência do nazismo. Num cenário de “what if”, se a Rússia tivesse evoluído para uma democracia, após a queda do poder autocrático, o que teria acontecido? Teria havido a II Guerra Mundial? Que cenário geo-estratégico teria sido o da segunda metade do século XX, certamente diferente da Guerra Fria e da ameaça de guerra nuclear que assombrou esses 50 anos?

Do seu ponto de vista, foram mais as conquistas ou os efeitos nefastos resultantes da Revolução?

É difícil ver conquistas num processo de terror que durou décadas. Todas as conquistas foram pesadas: a indústria cresceu com trabalho forçado, a unidade territorial e a expansão da Rússia com a criação dos países satélites do Leste são o resultado de uma repressão desmedida, com milhões de mortos e com a suspensão dos direitos humanos. Todas as conquistas do proletariado que o Manifesto Comunista de Marx e Engels entusiasticamente advogava foram conseguidas e adquiridas pelos proletariados dos países democráticos sem o sofrimento hediondo e repugnante que os totalitarismos sempre provocam, e que o totalitarismo soviético provocou a uma escala assustadora.

De que forma acha que o estudo mais aprofundado desta temática nos pode ajudar a definir melhor os caminhos a seguir enquanto sociedade em pleno século XXI?

Reflectir sobre estes pontos é essencial. Leva-nos a recusar os populismos de direita e de esquerda. E obriga sobretudo a esquerda a pensar que não tem nenhuma superioridade moral.

Ainda resta algo dos ideais e da esperança inicial da Revolução?

Tenho a certeza de que muitos dos revolucionários bolcheviques tinham uma vontade real de mudar o mundo e que a isso os impelia sobretudo o profundo desgosto e a revolta que as injustiças do czarismo causavam. Esse ideal é humaníssimo e não vejo nenhuma razão para abdicarmos dele. Mas é forçoso hoje pensarmos que a mudança pela mudança é um caminho para a catástrofe. Não há mudança sem a consciência da tradição. Não há mudança que não tenha de ser alicerçada numa História e num saber que é pertença da humanidade. A mudança que rasga todas as tradições, que se arroga a autoridade de destruir de forma maniqueísta outras classes e grupos humanos, étnicos ou religiosos, não é mudança é puro prazer de destruição.

Frank Zappa

zappa

Do que eu gostava em Frank Zappa, além da música – e o que prezo e estimo os meus velhos vinis do The Grand Wazoo e do Waka Jawacca – era das afirmações cabais.

Desta sobre o comunismo:

O comunismo não funciona porque as pessoas gostam de ter coisas.

Desta sobre a América:

Os Estados Unidos é uma nação de leis: mal escritas  e aplicadas ao acaso.

Estas duas frases copiei-as de um livro, W. C. Privy’s Original Bathroom Companion (2003) de Jack Mingo and Erin Barrett. As frases cintilam como estrelas. A música era cósmica. Separei-me de muita coisa. Nunca do inteligente caos de Cletus Awreetus-Awrightus.

 

As maravilhosas anedotas comunistas

 

Foice

Pergunta: Porque é que, no tempo da Alemanha do Leste, apesar de haver falhas de todo o género, o papel higiénico continuou sempre a ser de folhinhas duplas?
Resposta: Porque tinham de mandar cópia de tudo para Moscovo.

Esta anedota não é minha. É uma anedota comunista que se contava em Berlim Leste e em Moscovo, nos tempos do punhinho no ar e da foice e do martelo.  Ben Lewis escreveu este livro incrível, reunindo centenas de communist jokes. E as anedotas comunistas são divertidíssimas e de uma criatividade que atinge a excelência, com os níveis de auto-depreciação a rondarem o sublime.

O livro foi editado pela Guerra e Paz, fez o seu tempo e acabou o seu período de exploração. Há, no entanto, uns exemplares perdidos para quem ande à caça de preciosidades. Amanhã, na Guerra e Paz temos uma venda de garagem e este é um dos livros de que fomos encontrar dois exemplares.

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Vão estar à venda para quem nos queira visitar amanhã, das 14 às 19, e no sábado, das 11 às 19.

Vale a pena deixar mais duas anedotas.

1950, em pleno estalinismo, um talho anuncia que no dia seguinte vai vender carne. Grandessíssima fila desde a madrugada. Às 9, o exemplar funcionário vem à porta e anuncia: “A carne vai demorar e é menos do que se pensava. Os judeus podem, por isso, ir para casa.” Ao meio dia, o zeloso funcionário proclama: “Há atrasos no circuito de distribuição e ainda há menos carne do que se pensava. Podem ir-se todos embora, menos os gloriosos veteranos da II Guerra.” Às 6 da tarde, a loja fecha, não sem que o dedicado funcionário avise: “Afinal, hoje não há carne. Para a semana anunciaremos o próximo fornecimento.” Queixam-se os esfalfados veteranos: “Vês, os judeus é que se safaram, são os privilegiados do costume!

E mais esta

Dois patriarcas judeus estão na Praça Vermelha e um pergunta ao outro como é que estão os três filhos. Diz o pai, “Olha, o mais velho está em Varsóvia.” “A fazer o quê?” pergunta o outro. “A ajudar a construir o socialismo.
E o do meio?” “Esse vive aqui, em Moscovo.” “E trabalha?” “Ah, sim, está a ajudar a construir o socialismo.” Querendo saber tudo, o amigo pergunta: “E o mais novo?” Logo o pai orgulhoso: “Vê lá tu, teve um visto e foi para Israel.” “E também lá está a ajudar a construir o socialismo?” Responde o pai: “Estás louco, achas que ele faria uma coisa dessas na nossa própria terra.

Só por causa deste inenarrável sentido de humor, apetece logo voltar aos tempos da Guerra Fria.

 

Vida e destino, Vassili Grossman

Não li, como ninguém leu, todos os romances do século XX. Dos que li, e dos que, não os tendo lido, tive conhecimento, este é porventura o maior romance do século. Caótico, convulso, irrespirável, restitui-nos a abjecção, pejada de heroísmo, idealismo, tortura e massacre, dos dois cancros do século, o nazismo e o comunismo. Vida e Destino não é um romance como os outros. Rasga-nos por dentro.

Grossman

Vida e Destino: os filhos da puta sabiam
Manuel S. Fonseca

O século XX teve dois tumo­res cere­brais: o nazismo e o comu­nismo. Malig­nos os dois. Ambos pra­ti­ca­ram geno­cí­dios em que pere­ce­ram milhões de seres huma­nos. No holo­causto nazi, os judeus foram as prin­ci­pais víti­mas: 6 milhões assas­si­na­dos nas ruas, com­boios, cam­pos e cre­ma­tó­rios; no holo­causto esta­li­nista, os judeus vol­ta­ram a ser um dos alvos, fazendo parte dos 10, 15 (ou terão sido 20?) milhões de víti­mas com que a bar­bá­rie do Par­tido Comu­nista, a pur­gas, depor­ta­ções e gulags, ata­pe­tou o soci­a­lismo soviético.

Tudo isto, sendo, com a passagem dos anos, da banal da ordem dos fac­tos, cons­ti­tui um ino­mi­ná­vel hor­ror. Pela arbi­tra­ri­e­dade e ausên­cia de razão, a não ser que o puro mal seja razão, este é o maior hor­ror da his­tó­ria conhe­cida da huma­ni­dade. Fal­tava ao século XX um livro que, em espe­lho, devol­vesse ao nazismo e ao comu­nismo o rosto comum, rosto de las vie­jas goyes­cas. As 855 pági­nas de “Vida e Des­tino” são as pági­nas desse livro.

Vas­sili Gros­s­man, o seu autor, toma como cen­tro um epi­só­dio, a bata­lha de Esta­li­ne­grado. A cidade é uma Tróia des­feita: ruí­nas, fome, cadá­ve­res pin­tam o caos de vinte Guer­ni­cas. Ale­mães e sovié­ti­cos com­ba­tem e matam-se, heróica e patri­o­ti­ca­mente, por cada metro de rua, parede a parede, casa a casa. Aqui­les e Hei­tor rein­car­na­ram no heroísmo de milha­res de sol­da­dos sovié­ti­cos, na valen­tia dos seus capi­tães e generais.

Mas “Vida e Des­tino” é uma falsa epo­peia. Quando Vas­sili Gros­s­man nos leva para longe de frente de com­bate, correm-se as cor­ti­nas das ide­o­lo­gias tota­li­tá­rias e entra­mos nos cam­pos de con­cen­tra­ção. Nos fas­cis­tas pri­meiro, nos comu­nis­tas depois. Os olhos de Gros­s­man tinham visto antes o que os dedos dele escre­ve­ram depois neste livro. Ele viu e fez os pri­mei­ros rela­tos sobre os cre­ma­tó­rios nazis para os jor­nais sovié­ti­cos. No jul­ga­mento de Nurem­berga, esses rela­tos foram apre­sen­ta­dos como docu­men­tos de prova. Neste livro, num dos capí­tu­los, o lei­tor acom­pa­nha a ins­pec­ção de altos qua­dros do Reich a um campo que vai ser inau­gu­rado. Toda a gente fez o seu tra­ba­lho e os for­nos estão pron­tos a quei­mar carne, a quei­mar ner­vos e ossos. Os altos qua­dros, gene­rais e minis­tros de Hitler, cumprimentam-se pela efi­cá­cia, pela qua­li­dade inex­ce­dí­vel dos equi­pa­men­tos, e come­mo­ram erguendo taças de cham­pagne – têm orgu­lho na sua fábrica de morte.

Não são as úni­cas pági­nas de “Vida e Des­tino” que se lêem com um sobres­salto vis­ce­ral. Se a inu­ma­ni­dade amo­ral dos SS nos faz estre­me­cer, tam­bém é con­vulsa a lei­tura dos capí­tu­los em que segui­mos Sófia e David.  O acaso e os ale­mães juntaram-nos num com­boio que vai da Rús­sia para um dos cam­pos. David é um miúdo de cinco anos e está só. Sófia é uma jovem médica e tro­peça nele, no escuro da car­ru­a­gem cheia de pri­si­o­nei­ros. Adopta-o. Protege-o ao longo da via­gem agó­nica. No campo, os ale­mães espe­ram estes judeus rus­sos com a fes­tiva música, o ladrar dos cães, a gri­tada e velo­cís­sima orga­ni­za­ção que ater­ro­riza e con­funde. Grita-se banho; vão levá-los para o banho. Médi­cos e outros espe­ci­a­lis­tas podem pas­sar para outra fila. Sófia per­cebe logo a dife­rença entre as duas filas. Tem esco­lha e esco­lhe não aban­do­nar este David de estrela ao peito e cinco anos soli­tá­rios e ino­cen­tes. Acompanha-o, serena, para essa luc­tí­fera sala de banho. Aperta-o con­tra o seu ven­tre e no momento fatí­dico, quando as luzes se apa­gam e um acre odor se espa­lha, sabe que é mãe. Ser mãe tanto é dar à luz, como dar um filho à eterna escuridão.

Nas 855 pági­nas deste livro há outras mães. A mais pun­gente é a mãe da Vík­tor Strum, o mais pro­ta­go­nista dos vinte ou trinta pro­ta­go­nis­tas de “Vida e Des­tino”. Ela ficou numa cidade ucra­ni­ana que os ale­mães ocu­pa­ram. Os con­quis­ta­do­res logo lhe lem­bram o que já esque­cera, que é judia. Despejam-na num gueto e sabe que a vão enter­rar na vala comum que os pró­prios judeus ras­gam na terra fria. A mãe de Vík­tor con­se­gue ainda escre­ver ao filho uma carta de des­pe­dida. São pági­nas cheias de vida e morte, onze pági­nas que car­re­gam a bon­dade e a mal­dade da con­di­ção humana. Onze pági­nas de trai­ção e mes­qui­nhez, de absurdo e abjec­ção, de ines­pe­ra­dos e reve­la­do­res ges­tos reden­to­res. Uma mãe escreve a um filho sabendo que é a última vez que lhe fala e é tão difí­cil, tão atroz, escre­ver a última linha, a que se sabe que é a última linha, por­que todas as car­tas têm de acabar.

Entre­tanto, em Esta­li­ne­grado combate-se. Já nem é o heroísmo que move as tro­pas rus­sas. Uma des­me­dida dis­po­ni­bi­li­dade para o sacri­fí­cio, a abdi­ca­ção de tudo o que é humano, leva o Exér­cito Ver­me­lho ao triunfo. E tal como Napo­leão Bona­parte foi per­so­na­gem da “Guerra e Paz”, de Tols­toi, tam­bém Adolf Hitler é con­vo­cado por Gros­s­man para a sua “Vida e Des­tino”. Quase ouvi­mos os pas­sos macios e outo­nais do monstro alemão na flo­resta de Gör­litz. Hitler cami­nha num reco­lhi­mento monás­tico, um pé na Poló­nia, outro na Lituâ­nia. Ele era, ontem, o poder ulu­lante, a águia de asas mai­o­res do que o mundo. Hoje, de Esta­li­ne­grado, anunciaram-lhe a der­rota do seu 6º Exér­cito. Para gran­deza da Nova Ale­ma­nha, Hitler ateara a guerra ao mundo, cre­mara milhões de humanos nos seus for­nos. Agora, os tan­ques sovié­ti­cos abrem-lhe no cora­ção um inferno de gelo e dúvida. Esta gelada der­rota acaba de lhe meter uma lâmina de medo no ventre.

Hitler sabe que, atrás das árvo­res, há mil sol­da­dos invi­sí­veis a protegê-lo, mas cami­nha sozi­nho e a flo­resta húmida acorda nele um sonho afli­tivo. Sente que se trans­for­mou no Pequeno Pole­gar. Esque­cido dos mil sol­da­dos vigi­lan­tes, adi­vi­nha olhos e den­tes de lobo mau, entre as altas árvo­res, pron­tos a estraçalharem-no. Um ter­ror infan­til apodera-se deste senhor do mundo. Em duas pági­nas, Gros­s­man faz a mais arre­pi­ante des­cri­ção de Hitler que já li. O medo que lhe con­gela os ossos é o medo de quem sabe o que fez. O filho da puta sabia. Não há nenhuma bana­li­dade. Hanna Arendt estava enganada.

Vida e Des­tino” é um vasto mural que pinta a pátria de Esta­line como um labi­rinto de ter­ror. Não há sos­sego para o homo sovi­e­ti­cus. Um herói de guerra, mesmo vito­ri­oso, pode ser acu­sado no seu regresso a casa. Não há cá Pené­lo­pes à espera. Uma ligeira hesi­ta­ção antes do assalto vito­ri­oso para evi­tar per­das des­ne­ces­sá­rias aos seus sol­da­dos, uma frase per­dida que disse na cama à agora ex-mulher, bas­tam para que um dedo acu­sa­dor, um rumor anó­nimo, uma acu­sa­ção sem rosto, aba­tam o herói. Feita a denún­cia, ini­ci­ado o pro­cesso de pri­são e tor­tura já nada o pode deter. O herói preso é como o leproso: quem o tocar contamina-se. Todo o heroísmo é sus­peito, sus­peita é toda a fide­li­dade E não há defesa. É o que o Comis­sá­rio Kri­mov vai apren­der na carne e no espí­rito: não há defesa con­tra a acu­sa­ção em nome de um Par­tido ruti­lante que exsuda a mais maiús­cula Ver­dade. Não há limi­tes para a tor­tura, ines­ca­pá­vel, impa­rá­vel, enquanto ao acu­sado sobrar uma rés­tia de iden­ti­dade. Não é o corpo esfran­ga­lhado e em san­gue, os rins reben­ta­dos, cagares-te todo, que os inter­ro­ga­do­res que­rem. Estás preso, já fize­ram de ti uma suja e doida rata­zana no esgoto e isso é só o começo. Os inter­ro­ga­do­res querem-te a ti. Que­rem esse teu eu, que­rem que ele se entre­gue, que con­fes­ses ter feito o que nem pela cabeça te pas­sava que podia ser feito. Foda-se, alguma culpa hás de ter, lá no fundo, mas não te esfor­ces a pro­cu­rar, aceita as acu­sa­ções que te ofe­re­cem. (Assina, cara­lho!) Con­fessa, assina e denun­cia alguém ou mais dois ou três. Uma sovela incan­des­cida perfura-te o crâ­nio: estás sozi­nho e não sabes quem te denun­ciou. Per­deste a con­fi­ança na tua mulher, na tua mãe, nos teus filhos. És nin­guém e só nin­guém sobreviverás.

No campo de con­cen­tra­ção sovié­tico, encon­tra­mos Abart­chuk, o fiel comu­nista que o Par­tido con­de­nou: ele sabe que nada fez con­tra o Par­tido, que o acu­sam injus­ta­mente. Toda­via, Abdart­chuk resigna-se. O Par­tido tem de cas­ti­gar e Abdart­chuk aceita, mais humilde do que Job, fazer parte da suposta peque­nina mar­gem de erro que o viti­mou. Mesmo ali, no campo de con­cen­tra­ção, cas­ti­gado e sem culpa, tem uma neces­si­dade infan­til, reli­gi­osa, de apro­va­ção. No teu íntimo pen­sas que estás ino­cente?Mas que sus­pei­tís­simo íntimo é esse que se arroga cer­te­zas con­tra a von­tade do Par­tido? Não se é preso por nada. As pur­gas de 1937, o torpe ter­ror das depor­ta­ções, milhões de cam­po­ne­ses, tra­ba­lha­do­res, pro­fes­so­res, padres, músi­cos, comu­nis­tas assas­si­na­dos, não foram um erro. Os milhões de mor­tos, a denún­cia per­ma­nente, os pais denun­ci­a­dos pelos filhos, o ter­ror de se dizer uma pala­vra equi­voca, são a con­sequên­cia lógica, a ins­ta­bi­li­dade intrín­seca ao mundo novo de que o Par­tido é o único sol. As teo­rias polí­ti­cas heli­o­cên­tri­cas são fodidas.

Já disse que Vík­tor Strum é o mais pro­ta­go­nista dos pro­ta­go­nis­tas de “Vida e Des­tino”. A Aca­de­mia de Ciên­cias reconhece-lhe o génio mate­má­tico e uma des­co­berta na sua área da física nuclear converte-o quase numa vedeta. Fez uma descoberta científica decisiva. Mas será que a ciên­cia, essa pre­tensa guar­diã da razão, pode pre­va­le­cer con­tra os prin­cí­pios leni­nis­tas? Nunca! E muito menos se o cien­tista é um judeu. Os nazis tinham recor­dado à mãe de Vik­tor, numa cida­de­zeca da Ucrâ­nia, que ela era judia. O Par­tido lem­brará a Vik­tor o mesmo opró­brio. Acusam-no de des­vio ide­o­ló­gico, por­que podiam acusá-lo do que qui­ses­sem. Tiram-lhe tudo, a come­çar pelo labo­ra­tó­rio na Aca­de­mia. O por­teiro da casa onde vive já nem sequer o cum­pri­menta. Vík­tor começa a dolo­rosa pere­gri­na­ção pelos escon­sos túneis que con­du­zem ao Vale das Som­bras. E é neste ponto do romance que, tal como Hitler, tam­bém Esta­line apa­rece.  A des­co­berta cien­tí­fica de Vík­tor é dema­si­ado impor­tante para o Poder. Esta­line pre­cisa dele e telefona-lhe: “Como é que está a cor­rer o seu tra­ba­lho?” Fala dois minu­tos com ele. No dia seguinte, o labo­ra­tó­rio reabre-se, o por­teiro cumprimenta-o. Como se as acu­sa­ções, o ter­ror das sema­nas ante­ri­o­res tives­sem sido apa­ga­das, nunca tives­sem exis­tido. Esta­line ia deixá-lo ser con­de­nado, pro­va­vel­mente ser morto num campo gelado, só por­que era um judeu, sem outra culpa, sem nenhuma culpa, por­que podia acusá-lo do que qui­sesse. Bas­tou um tele­fo­nema de Esta­line, tão arbi­trá­rio a salvá-lo, como arbi­trá­ria seria a con­de­na­ção. Tal como Hitler, tam­bém este filho da puta sabia.

Na parte 2, capí­tulo 15 de “Vida e Des­tino”,  Gros­s­man põe-nos a ouvir a con­versa entre um filo­só­fico coman­dante de um campo de con­cen­tra­ção nazi e um velho bol­che­vi­que pri­si­o­neiro, cama­rada de Lenine, um dos heróis da Revo­lu­ção de 1917. O nazi ama o revo­lu­ci­o­ná­rio comu­nista e quer ser amado por ele. Diz-lhe: “Quando nos olha­mos na cara um ao outro, olha­mos não só para uma cara odi­osa, mas tam­bém para o espe­lho.” E é só o ale­mão que fala: “Seja hege­li­ano, meu mes­tre… Acha que hoje olham para nós com ter­ror e para vocês com amor e espe­rança? Acre­dite que não: quem olha com ter­ror para nós, olha para vós com o mesmo ter­ror.

Vida e Des­tino” é o livro que reco­lhe as duas gran­des tem­pes­ta­des do século XX. Um livro con­vulso, caó­tico, às vezes irres­pi­rá­vel. Nele se escreve a impi­e­dosa con­fron­ta­ção do nazismo e do comu­nismo, a impi­e­dosa fusão dos dois no mesmo pro­cesso de ter­ror arbi­trá­rio, imo­ral, abjecto. E, no entanto, as pes­soas movem-se. Ape­sar do ter­ror, do dan­tesco espec­tá­culo de tor­tura e morte, os seres huma­nos con­ti­nuam a viver. “Vida e Des­tino” ter­mina no silên­cio de uma flo­resta fria. Fica­mos a saber – é Vas­sili Gros­s­man a dizê-lo – que há mais funda tris­teza nesse silên­cio do que no silên­cio de qual­quer Outono.

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Vas­sili Gros­s­man escre­veu “Vida e Des­tino” no final dos anos 50. Em 1960, quis publicá-lo na revista “Znamya”, mas o KGB apre­en­deu o manus­crito. Em 1962, fez nova ten­ta­tiva junto das auto­ri­da­des, mas foi-lhe dito que a publi­ca­ção do romance pro­vo­ca­ria mais danos ao regime do que os que já cau­sara “o Dou­tor Jivago”, de Pas­ter­nak. “Nem daqui a 200 anos, o seu romance será publi­cado”, disse-lhe o grande ideó­logo do Polit­buro, Mikhail Sus­lov. Gros­s­man mor­reu dois anos depois. Julgou-se que a obra teria sido des­truída pelo KGB, mas um amigo de Gros­s­man e o cien­tista Andrei Sakha­rov con­se­gui­ram, em 1974, fazer che­gar uma cópia a França, onde pri­meiro foi edi­tada. Na Rús­sia, foi publi­cada, depois da Glas­s­nost de Gor­ba­chev, em 1988. A edi­ção por­tu­guesa, da Dom Qui­xote, é de 2011.