O papa apóstata

Peço desculpa aos leitores da Página Negra, mas outros valores e urgências se levantaram. Espero que estejam todos com um valente saúde anti-vírica.

São Pedro

De que cor são os olhos do Papa Francisco? Apesar de já se ter derramados sobre eles a indecifrável cor da velhice, são claros como os do meu avô Brigas, que ofereceu o corpo a cargas contrabandistas, antes de ser emigrante na Argentina. Terá o avô Brigas cruzado em Buenos Aires o menino Bergoglio? Que interessa. O que eu queria dizer é que os olhos de Francisco se iluminam sempre que sorri. Ou seja, iluminam-se muitas vezes.

Os olhos de Francisco também olham algumas vezes para o céu.  Já o vi, em fotografias, olhos postos no alto horizonte e parece-me, nessas ocasiões, que afinal são quase azuis os seus olhos claros, reflexo talvez da luz celeste. Adivinho-lhe então nos olhos uma tris­teza azul – e o que esta frase ganharia escrita em inglês! Mas logo a fileira branca dos den­tes e a doçura da con­tração do rosto, a que cha­ma­mos sorriso, dão cabal des­men­tido à minha lamentável desconfiança ou a qualquer sus­peita de tristeza.

Tal­vez os olhos deste homem, tão largo e con­fi­ante é o seu sor­riso, este­jam a ver Deus. Afi­nal, se há no mundo um homem habi­li­tado a ver Deus é ele, o homem da batina branca. Che­guei a pen­sar que era de ouro e disseram-me que era de prata, a cor­rente que traz presa ao pes­coço e lhe des­liza pelo peito sus­ten­tando a Cruz Pei­to­ral. O soli­déu sin­gelo e a sotaina branca conferem-lhe uma ele­gân­cia con­for­tá­vel. Se que­re­mos ver a Deus deveríamos vestir-nos assim e calçar, como ele, uns sapa­tinhos vermelhos.

Lembrei-me, sabe Deus porquê, de um conto de Gio­vanni Papini, magnífico escritor cujo romance com o fascismo quase o apagou da história da literatura. É a his­tó­ria de um dis­si­mu­lado após­tata que é eleito Papa. Quando cami­nha para a varanda que se abre sobre a agora vazia Praça de São Pedro e sobre a mul­ti­dão que, em fé e pela fé, exulta e reza, esse novo Papa vem pronto para denunciar a fraude, a gigan­tesca impos­tura que ele pensa ser a reli­gião. Abrem-se as por­tas, ele dá o primeiro passo, dis­curso na ponta da demoníaca lín­gua ser­pen­tina, e a esperança e gáu­dio da mul­ti­dão entram nele como a luz que lavasse os olhos de um cego. O após­tata converte-se e já o habita o Pai, o Filho e o Espí­rito Santo.

E se este Francisco de quipá, per­dão, de soli­déu alvo, se este homem que é tal­vez o único que pode ver Deus, sou­besse, como mais nenhum homem sabe, que Deus não existe? Por­que mais nenhum homem sabe, como este homem sabe, que o Deus a que um milhão de fiéis se ajo­e­lha na gigan­tesca praça dessa Roma que crucificou Pedro de cabeça para baixo, esse Deus patri­ar­cal, a cor­rer de prece para prece, entre­tido a vingar-se, a acu­sar, a sal­var, cas­tigo numa mão, a mise­ri­cór­dia na outra, nem por mila­gre pode exis­tir.

Sécu­los de teo­lo­gia e Tei­lhard de Char­din dis­si­pa­ram essa nuvem, essa luz que cega Pau­los. Sécu­los de teo­lo­gia e Pierre Tei­lhard de Char­din foram um tiro na pomba. Este homem sabe e, toda­via, na tris­teza clara, quase azul, dos olhos que levanta ao céu, nesse seu sorriso que pro­mete mais regresso à vida do que a Vénus de Bot­ti­celli nos pode dar, ele acredita.

E que insus­ten­tá­vel fra­gi­li­dade! A tris­teza clara, quase azul, de um olhar e um mara­vi­lhoso sor­riso de conto de fadas sus­ten­tam uma civi­li­za­ção, uma imensa e recon­for­tante forma de ver, sen­tir e viver o mundo. Bas­tava que este homem dis­sesse uma só pala­vra. Uma pala­vra e a mul­ti­dão cor­re­ria des­vai­rada, em uivos apocalípticos…

Eis como vivemos, eis a civilização que criámos: a uma pala­vra do caos, a uma palavra de um triun­fal niilismo. Que insus­ten­tá­vel fra­gi­li­dade. Que insustentável beleza.

Crónica escrita há 15 dias, publicada há 8, na minha coluna do Jornal de Negócios. 

A religião morreu

blach_hole

Bica Curta bebida no CM, na 5ª feira, dia 4 de Abril

Não tenho a arrogância de ser ateu. Aprendi a ler nos livros religiosos de minha mãe. Rezei, comunguei, confessei-me, bem antes de beber a bica curta. Hoje, admirando a ideia do amor ao próximo e do perdão das ofensas, mensagem maior de Cristo, se sou alguma coisa, sou um agnóstico que vê o catolicismo morrer.

Não foi só o escândalo da pedofilia que dura, e dura, e dura, como as célebres pilhas. Portugal perdeu o sentido do religioso. Deixámos de ver no catolicismo o sublime e o sagrado que eram o seu mistério. O papa Francisco é só um homem gentil deste mundo. Mas é o outro mundo que, na religião, queríamos desejar ou temer.

Eu era para ser Papa

Papa_Alessandro_VI_Borgia

Não sei se comece pela orgia, se pela minha professora primária. Sabia lá eu o que era uma orgia e já o áugure romano que era a Dona Emília, minha iluminada professora na Missão de São Paulo, em Luanda, antevia que eu seria Papa. Nem padre, nem bispo, sequer cardeal, eu entraria, como Chalana aos 17 anos, no onze inicial, directamente para Papa.

Assistiam razões a Dona Emília. A escola era dos bondosos padres capuchinhos italianos, praticamente um passaporte para o Vaticano, e era impossível eu não dar nas vistas, por ser o singelo branco numa escola de alunos africaníssimos, tímida gota de leite a pingar o esplêndido e aromático café angolano, que era a massa estudantil.

Ora, foi com devoção capuchinha que entrei, não no Vaticano, mas na mansão de Hugh Hefner, patriarca da Playboy. Nunca estive tão encostado à orgia. Banda de jazz, coelhinhos a correr no zoo de Hefner entre as altas pernas dos flamingos cor-de-rosa, e eis que me levam para a sauna cavada na rocha, as sereias de Ulisses a gotejar do tecto como lábeis e álgidas estalactites.

E não é dessa orgia que quero falar. Falo da orgia de 1501. Alexandre VI, cumprindo os votos de Dona Emília, chegou a Papa quase sem jogar nos juniores: entrada directa no onze sénior. Já tinha até uma catrefa de filhos, amantes que davam para fazer um colar. Vinha de Valência, um Bórgia, família de que foi o big-bang, fazendo dos filhos cardeais, militares e nobres. Tinha também um amor invertebrado pela filha Lucrécia. Ou, usando termo mais leniente, derretia-se com ela.

Casou-a com um condottiero, senhor de Pésaro, nobre borra-botas de que não direi o nome. Foi o desastre e Alexandre VI anulou o casamento invocando que a natureza de Lucrécia tinha horror a um certo recôndito vazio que o marido não preenchia. Era um exagero, mas sabe-se que e como são infalíveis os exageros papais. O condottiero jurou que só não preenchia mais o vazio para não atropelar por trás o próprio Alexandre VI e César Bórgia, irmão de Lucrécia, exagero malévolo, que a História provou ser falso.

Estava Lucrécia, portanto, de novo virgem, e Alexandre VI casou-a segunda vez. Só que, um ano depois, por ciúmes e interesse político do irmão de Lucrécia, esse marido, quando deu conta, já estava morto. Fica então noiva do futuro duque de Ferrara. Para celebrar, o Papa e papá deu uma festa no Vaticano. Jantou-se como Hugh Hefner nunca jantará. À sobremesa entram 50 bailarinas só trajadas a plumas e lantejoulas. Uma centena de nobres e prelados ovacionou-as com um clamor de No Name Boys. Dançaram. As coreografias fariam corar Madonna ou Beyoncé. A cleresia atirava-lhes castanhas quentes para que elas, de quatro, as apanhassem no chão.

Uma exaltação erótica avassalou Alexandre VI. Deu-lhe um Maio de 68 avant la lettre e, num é proibido proibir, ofereceu um prémio a quem mostrasse o maior e melhor desempenho nesse acto com a que a natureza enche o vazio e esvazia o horror. Ah, sotainas! ah, buréis! ah, púrpuras cardinalícias! um humaníssimo desatino fundiu fome, sede e pote, como em crónica registou Johann Burchard, prelado de Estrasburgo. Alexandre, o filho César, Lucrécia deleitam-se com esse nu e pagão afã, que mete a um canto, para não dizer que encosta à parede, a agitação afrodisíaca da sala da bolsa de Wall Street.

Dias depois, de olhos lavados e puros, Lucrécia casou com o seu duque, a quem deu oito filhos. Foram olímpica e eticamente infiéis um ao outro, num ambiente apesar de tudo recatado, se comparado com o Vaticano de Alexandre VI.

Publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

A Idade Média era mais livre do que as vanguardas identitárias actuais

cristo na cruz, Colónia, Igreja Sankt Maria
A Idade Média não temia a violência das imagens. Este é um Cristo massacrado e sangrento, numa representação extremada do sofrimento. século XIII, igreja de Santa Maria, Colónia

Mil vezes a Idade Média, ia eu a dizer. E já sabia que estava a exagerar. Mas a Idade Média cristã não proibia imagens e isso é o que não podem dizer os vigilantes que em tantos lugares desta segunda década do século XXI vasculham museus e estabelecem padrões alfandegários para contabilizarem a ingerência de género, o peso étnico, a incheirável sexualidade intempestiva. Este é um tempo em que, dos fálicos nus de Mapplethorpe às talvez não imaculadas cuequinhas da menininha de Balthus, passando pelas apropriações culturais, se passa meticulosamente em revista um delirante sub-texto, flagelando-se as artes (e o pensamento) com chicotes moralizantes que impõem a ortodoxia de várias seitas a que chamarei, porque é o que elas são, minorias identitárias.

A pretexto das mais nobres e utópicas defesas do género e do trans-género, do anti-racismo, que sei eu, pululam censuras e adoptam-se proibições de um reaccionarismo atroz – se forem ao site do Partido Democrático dos EUA, sob o chapéu de People encontram 19 grupos minoritários, reforçando uma divisão que nega o universalismo do que deveria ser um partido nacional, mas isso é já outra conversa.

Estas proibições vanguardistas são proibições que nos fazem ter saudades da Idade Média. O monoteísmo cristão não interditou a pintura e a escultura, alegando que a “honra concedida à imagem reenvia ao protótipo”, ao contrário dos monoteísmos judeu e islâmico, que se refugiaram na impossibilidade da representação visual de Deus. E se ainda houve, no cristianismo, um conflito com a linha iconoclasta bizantina, que advogou a destruição das imagens, a Idade Média primou, vencido esse óbice, por uma extraordinária proliferação e liberdade da representação visual do quotidiano e do transcendente.

Todas as imagens. Fossem elas sagradas ou obscenas. Fossem pintura ou escultura ou iluminuras. As imagens triunfantes foram as de Jesus Cristo crucificado, nalguns casos representado em extremos de sofrimento a roçar um horror sangrento, e a Virgem Maria de que foi imensamente popular uma escultura em que a barriga da Santíssima Mãe se abria e lá se encontrava o Trono da Graça, com o Pai, o Filho e o Espírito Santo, quase se sugerindo que a Trindade fora concebida no seio da Mulher.

Mas não pensem que a liberdade da imagem se reservava ao que fosse só edificante. Um bispo, Guillaume Durand, fixa, na segunda metade do século XIII, a doutrina, recorrendo à sabedoria do romano Horácio: «Aos poetas e aos pintores pertence a igual liberdade de tudo ousar.» E o bispo vai mais longe e manda às urtigas uma reserva de Horácio, reserva que teria liquidado toda a pintura de Bosch, a saber, o conselho de se deve evitar pintar «um belo busto de mulher que depois termine num feio rabo de peixe.»

A Idade Média pintou todos os rabos que quis e sereias também. A começar por S. José de rabo para o ar, sempre em tarefas ridículas, que insinuam uma duvidosa virilidade, passando pela florescência de falos e vulvas nas igrejas, com cenas de coito que estimulariam a fecundação das mulheres, como era o caso do grosso pino de madeira que servia de pénis a São Greluchon e que as mulheres rapavam para engolirem o pó em casa, o que obrigava à regular substituição ou acrescento do membro viril do esfregado e rapado santo.

Os livros de horas estavam cheios de orações e escândalo – que ao tempo não parecia escandalizar ninguém. Neles havia monges a dar o cu nos bosques ou em cenas de sexo com mulheres. E havia macacos – uma forma satírica de representação do clero – a defecar em cálices, com a expressiva legenda «Este é o meu corpo».

Nada disto era proibido ou escondido. Era livre, para não dizer libérrimo e só a Reforma e a Contra-Reforma vieram anular essa livre deambulação da sátira, esse livre encontro do obsceno com o sagrado.

Como é que, hoje, os grupos identitários, reclamando-se de esquerda e pela esquerda reclamados, tão fracturantes no discurso e na engenharia social, podem ser tão reaccionários que nos conseguem fazer pensar nestes frades copistas, nestes pintores de aldeia, nestes mestres escultores da dita obscura Idade Média como se fossem campeões da liberdade e das artes?

procissão de fim do século XIV
Bizarra procissão de falos, levando no andor uma vulva coroada. Peça em chumbo do século XIV.

(Esta minha prosa tem as suas fontes. Nasceu de duas leituras: a de uma entrevista do historiador de arte Jean Wirth, professor honorário da Universidade de Genebra, à revista Histoire; e uma recensão de Pascal Bruckner às teses do filósofo americano Mark Lilla, professor na Columbia University, de Nova Iorque.)