Bica Curta servida no CM, 4.ª feira, dia 2 de Outubro
James Flynn é professor. Célebre por estudos sobre a inteligência e o QI. Um editor inglês ia publicar o seu novo livro: Defesa da Liberdade de Expressão: a Universidade como Censor. O editor louvou-lhe a obra: responsável! arranque demolidor! Vinha James beber com ele a bica curta, o editor cortou-se. Havia ali temas irritantes: raça e género; nomes de universidades; exposição da proibição de autores em departamentos de estudos feministas e afro-americanos. O livro ia incomodar e o editor cortou-se. À universidade censora junta-se o editor, a Emerald.
Mas a liberdade de expressão não é poder dizer o que muitos não querem ouvir?
Bica Curta servida no Cm, 4.ª feira, dia 26 de Junho
Salazar despedia ministros mandando-lhes um miserável bilhete pelo motorista. The Press 87, editor inglês do escritor francês Pascal Bruckner, despediu o seu autor por e-mail curto: nem para uma bica o convidou! Bruckner escreveu “Um Racismo Imaginário” e tem opiniões desassombradas sobre o fundamentalismo islâmico.
O editor, muçulmano, jura defender a liberdade de expressão e a independência ideológica, mas escuda-se na pressão dos leitores, que terão acusado Bruckner de suposta islamofobia. E ele, claro, lava as mãos como Pilatos: em vez de ser editor é uma câmara de eco. A acústica da liberdade de expressão caiu na lama.
Esta é a minha terceira semana a servir bicas curtas. De 3ª a 5ª, viajei da pretensa censura a Álvaro de Campos à cidade mártir de Mossoul. Com paragem noutro secreto lugar mártir, esse silêncio doméstico onde há atentados cobardes a mulheres. Ah, sempre de chapéu posto.
Bica Curta 3ª feira, 22/1/2019
A pior das censuras O cadáver futurista de Álvaro de Campos, que por acaso está dentro do cadáver do prestidigitador Fernando Pessoa, deve estar a revirar-se eufórico e a gritar odes no cemitério. Já morto armou um escândalo: há um manual para meninos e meninas que leva truncado um poema triunfal dele.
Uma multidão de Vestais clama censura. Luxos de quem confunde censura com falta de jeito. Portugal não tem censura, haja Deus. Melhores ou piores, deve ter, sim, critérios pedagógicos. Ameaça de censura é ninguém ler e comprar livros. Ameaça de censura é um editor já não conseguir publicar poesia a não ser subsidiada. Não ler, eis a pior das censuras.
Iraqis gather at a cultural café named “Book Forum” in the former embattled city of Mosul on January 6, 2018 six months after Iraqi forces retook the northern city from Islamic State (IS) jihadists. / AFP PHOTO / Ahmad MUWAFAQ (Photo credit should read AHMAD MUWAFAQ/AFP/Getty Images)
Bica Curta 3ª feira, 23/1/2019
O Daesh que nos mói Deslarguem-me, deixem-me ir tomar a bica a Mossoul, cidade mártir do Iraque. Os terroristas puseram-na em cacos, queimaram todos os livros. Na cidade libertada, dois loucos criaram uma livraria. Vencido o Daesh, dir-se-ia que havia outras prioridades. Mas há alguma coisa mais importante do que ler e sonhar? Os dois sonhadores venderam tudo, até as jóias das mulheres, e a livraria nasceu. À meia-noite, ainda aqui se lê, recita, toca, há chá e café. Sentam-se muçulmanos e cristãos, homens e mulheres. Que lição: em média um português compra 1,2 livros por ano contra os 9 que compra um espanhol. Temos um Daesh a moer-nos por dentro.
Bica Curta 3ª feira, 24/1/2019
Não é de homem Hoje é bica escaldada, em honra de meu pai, que tocava bandolim, só tinha a 4ª classe e tanto me ensinou. Ensinou-me que não se bate a quem dizemos amar. Usar a superioridade física para bater a uma mulher é cobardia. Uns merdas, dizia-me ele. E morrem mais de 20 mulheres por ano.
Ouço muita treta e rainha da cocada preta, alto paleio sociológico à conta da violência doméstica, o flagelo e coisa e tal, mas a lição do meu pai brilha como sol no céu e não há cá eclipses: o homem que bate é cobarde. Ou covarde, que a besteira não é ortográfica, a besteira é de quem não mete na cachimónia matumba que bater numa mulher não é de homem.
Ter 125 anos não é sexy. Se estivesse viva, Mae West teria festejado este ano esse aniversário. Temo que a ideia de ser sex-symbol aos 125 a encantasse.
Nascida em Queens, criada em Brooklyn, rosto demasiado redondo e corpo pesadamente rectangular, o certo é que Mae West se converteu numa sex-symbol. Em seda, arminho, outras peles e pose obscena, desse físico, que estava contra ela, fez um íman para virilidades incandescentes.
Começou cedo no teatro. Mais cedo tivesse começado, mais cedo teria ido parar à prisão. Em 1927, estreou “Sex” em Nova Iorque, acabando condenada a dez dias de prisão por atentado à moral. Ui, foi uma penosa reclusão. Fez uma exigência: usar sempre roupa interior de seda. O director do estabelecimento, compreensivo e com inclinações artísticas, levou-a ao cinema todos os dias, menos dois, os que, por bom comportamento, já não cumpriu.
Hollywood deixou-se levar pelo odor a controvérsia e convidou-a para o cinema com a improvável idade de 38 anos. Talvez nenhum dos poucos filmes dela seja obra-prima. Mas com “She Done Him Wrong“ e “I’m no Angel” firmou uma reputação. E ouçam-na, é que bastaria a inesquecível voz.
Estou a ser um unhas-de-fome, porque há quem veja nela outros fulgurantes valores: os caracóis louros, o olhar malicioso, o corpo que talvez seja muito menos rectangular do que eu disse e mais próximo do reclinado conforto duma “chaise-longue”. O reclinado conforto é preguiça minha, a “chaise longue” é preguiça do ensaísta David Thomson.
A mim bastar-me-iam as coisas que disse e a rouca maneira como as disse. Cito três das suas mais famosas réplicas: “Tens uma pistola no bolso ou estás apenas contente por me voltar a ver?” frase dela que o olhar discreto e baixo confirmava em “She Done Him Wrong”, parece ter sido o que, na vida real, disse ao polícia que, em L.A., a foi escoltar no regresso duma viagem. A polícia de L.A. dever-lhe-á para sempre um palmo de auto-estima.
Intraduzível, digo eu por timidez, é o que ela sugere a Cary Grant, no primeiro filme que fizeram juntos: “Come up and see me some time.” Será que um “levanta-te daí e anda cá ver-me um bom bocado” lhe faz justiça em língua portuguesa? Em inglês, americano ou português, ouvi-la dizer, com voz de blues e bagaço, “Quando sou boa, sou muito boa, mas quando sou má, sou muito melhor” acende uma labareda de volúpia em “I’m No Angel”.
Estas réplicas, ditas como ela as disse, deram pela primeira vez espessura à palavra libido, até aí uma palavrinha técnica e sem sal. Constrangida, Hollywood inventou o divertido e proibitivo Código Hays, que determinava o que se “podia” e o que “não se podia” fazer, fingir que se fazia ou dizer. Inveterada optimista, Mae West reagiu bem: “Acredito na Censura. Fiz uma fortuna à conta dela.”
A Idade Média não temia a violência das imagens. Este é um Cristo massacrado e sangrento, numa representação extremada do sofrimento. século XIII, igreja de Santa Maria, Colónia
Mil vezes a Idade Média, ia eu a dizer. E já sabia que estava a exagerar. Mas a Idade Média cristã não proibia imagens e isso é o que não podem dizer os vigilantes que em tantos lugares desta segunda década do século XXI vasculham museus e estabelecem padrões alfandegários para contabilizarem a ingerência de género, o peso étnico, a incheirável sexualidade intempestiva. Este é um tempo em que, dos fálicos nus de Mapplethorpe às talvez não imaculadas cuequinhas da menininha de Balthus, passando pelas apropriações culturais, se passa meticulosamente em revista um delirante sub-texto, flagelando-se as artes (e o pensamento) com chicotes moralizantes que impõem a ortodoxia de várias seitas a que chamarei, porque é o que elas são, minorias identitárias.
A pretexto das mais nobres e utópicas defesas do género e do trans-género, do anti-racismo, que sei eu, pululam censuras e adoptam-se proibições de um reaccionarismo atroz – se forem ao site do Partido Democrático dos EUA, sob o chapéu de People encontram 19 grupos minoritários, reforçando uma divisão que nega o universalismo do que deveria ser um partido nacional, mas isso é já outra conversa.
Estas proibições vanguardistas são proibições que nos fazem ter saudades da Idade Média. O monoteísmo cristão não interditou a pintura e a escultura, alegando que a “honra concedida à imagem reenvia ao protótipo”, ao contrário dos monoteísmos judeu e islâmico, que se refugiaram na impossibilidade da representação visual de Deus. E se ainda houve, no cristianismo, um conflito com a linha iconoclasta bizantina, que advogou a destruição das imagens, a Idade Média primou, vencido esse óbice, por uma extraordinária proliferação e liberdade da representação visual do quotidiano e do transcendente.
Todas as imagens. Fossem elas sagradas ou obscenas. Fossem pintura ou escultura ou iluminuras. As imagens triunfantes foram as de Jesus Cristo crucificado, nalguns casos representado em extremos de sofrimento a roçar um horror sangrento, e a Virgem Maria de que foi imensamente popular uma escultura em que a barriga da Santíssima Mãe se abria e lá se encontrava o Trono da Graça, com o Pai, o Filho e o Espírito Santo, quase se sugerindo que a Trindade fora concebida no seio da Mulher.
Mas não pensem que a liberdade da imagem se reservava ao que fosse só edificante. Um bispo, Guillaume Durand, fixa, na segunda metade do século XIII, a doutrina, recorrendo à sabedoria do romano Horácio: «Aos poetas e aos pintores pertence a igual liberdade de tudo ousar.» E o bispo vai mais longe e manda às urtigas uma reserva de Horácio, reserva que teria liquidado toda a pintura de Bosch, a saber, o conselho de se deve evitar pintar «um belo busto de mulher que depois termine num feio rabo de peixe.»
A Idade Média pintou todos os rabos que quis e sereias também. A começar por S. José de rabo para o ar, sempre em tarefas ridículas, que insinuam uma duvidosa virilidade, passando pela florescência de falos e vulvas nas igrejas, com cenas de coito que estimulariam a fecundação das mulheres, como era o caso do grosso pino de madeira que servia de pénis a São Greluchon e que as mulheres rapavam para engolirem o pó em casa, o que obrigava à regular substituição ou acrescento do membro viril do esfregado e rapado santo.
Os livros de horas estavam cheios de orações e escândalo – que ao tempo não parecia escandalizar ninguém. Neles havia monges a dar o cu nos bosques ou em cenas de sexo com mulheres. E havia macacos – uma forma satírica de representação do clero – a defecar em cálices, com a expressiva legenda «Este é o meu corpo».
Nada disto era proibido ou escondido. Era livre, para não dizer libérrimo e só a Reforma e a Contra-Reforma vieram anular essa livre deambulação da sátira, esse livre encontro do obsceno com o sagrado.
Como é que, hoje, os grupos identitários, reclamando-se de esquerda e pela esquerda reclamados, tão fracturantes no discurso e na engenharia social, podem ser tão reaccionários que nos conseguem fazer pensar nestes frades copistas, nestes pintores de aldeia, nestes mestres escultores da dita obscura Idade Média como se fossem campeões da liberdade e das artes?
Bizarra procissão de falos, levando no andor uma vulva coroada. Peça em chumbo do século XIV.
(Esta minha prosa tem as suas fontes. Nasceu de duas leituras: a de uma entrevista do historiador de arte Jean Wirth, professor honorário da Universidade de Genebra, à revista Histoire; e uma recensão de Pascal Bruckner às teses do filósofo americano Mark Lilla, professor na Columbia University, de Nova Iorque.)