Não matarás!

Last public
Eugen em tribunal com todo o seu charme

O quinto mandamento, versão talmúdica ou católico-romana, era uma auto-estrada por onde Eugen Weidman entrava, imparável, a zunir e em contramão. Não matarás! Mas Eugen matava, matou com gosto, e mataria sempre e mais se não lhe têm posto o corpinho com dono.

Eugen nasceu na Alemanha e matou em França. Nascimento fofo, criado nas palminhas por avós que o cobriam de ternura adâmica, os pouco mais de 22 anos de Eugen depressa malham na cadeia por tentativa de rapto. Cinco anos de aturada pedagogia prisional e regressa à liberdade: está um homem de físico muito bem feito, um rosto de santo, um olhar de veludo. No calabouço fez dois amigos franceses. Em Paris, 1937, Eugen e os amigos alugam uma vivenda e apostam num negócio de lógica cafajeste: rapto e resgate.

A primeira vítima é uma bailarina nova-iorquina. Passeava uns incautos 22 anos pela adorável margem esquerda e deslumbrou-se com a desenvoltura física, a conversa de Eugen, rã saltitante de Goethe a Wagner, como de nenúfar em nenúfar. A bailarina escreverá a uma amiga, contando-lhe que ele vivia na mansão que Napoleão ofereceu a Josefina e prometera levá-la lá. Leva e, ó silêncio, já de lá não sai. As angélicas mãos de Eugen acariciam-lhe o pescoço, entusiasmam-se, ganham vida própria e sufocam-na. Antes tinham tirado fotografias inocentes, a fumar, a beber um intranquilo copo de leite. A jovem bailarina acaba enterrada no jardim da casa. Eugen tira-lhe da carteira 400 dólares em travellers cheques, se alguém ainda se lembra que raio é um traveller cheque.

Eugen rapta mais a seguir, homens e mulheres. Seduz pelas maneiras, pela graça. Em quatro meses, um tiro na nuca ou por estrangulamento, Eugen mata mais um, dois, três, quatro, cinco. Ele e os cúmplices descontam aqui mil, ali dois mil sórdidos francos, um anel mais caro.

Em Dezembro, ou não fosse Natal quando um homem quisesse, dois polícias vêm à mansão. Querem fazer uma pergunta a Eugen. Ele sorri – meu Deus, a educação deste homem, derrete-nos – vai à frente abrir a porta, mas volta-se de repente e a fusca, que trazia escondida, despeja balas. Um dos agentes tomba mas apanha do chão um providencial martelo. Arreia com ele na cabeça alemã de Eugen.

As fotos de Eugen, preso, cabeça entrapada, o sangue a perlar a magnífica camisa branca iluminam as primeiras páginas dos jornais. Os agentes só iam fazer-lhe uma pergunta, Eugen, mostrando não ser de segredos, confessa-lhes de rajada os seis assassínios. Com uma alegria despreocupada mostra-lhes os cadáveres.

O tribunal condena a duras penas os cúmplices, ao alemão matador dão de prenda a guilhotina. A 17 de Junho de 1939, a menos de dois meses da II Guerra Mundial, o sol das cinco da manhã a alumiar Paris, uma pequena multidão junta-se à volta da guilhotina, na rua à porta da prisão. A execução era pública. A multidão vibra, as mulheres gritam pelo sedutor Eugen num frisson de enlevo e excitação. Surge o belo alemão, há gritos e desmaios. O carrasco acomoda-lhe o pescoço na barra de madeira. Os 40 quilos da lâmina losangular estão lá em cima, quietos. O carrasco solta a corda que a prende e, num milésimo de segundo, a bruta lâmina viaja os dois metros e meio que a distanciam da cabeça de Eugen, separando-a do corpo criminoso. O sangue de Eugen jorra e as francesas correm a empapar lenços brancos: souvenir e, diz-se, promessa de fertilidade. Há fotografias, um filme feito da janela em frente. Foi a última execução pública em França. A civilização chegaria em 1977 com a extinção da pena de morte.

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Eugen ao ser capturado

Publicado na coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios

 

Um tiro feliz e cobarde

 

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O verdadeiro Kid

A quem é que Tennessee Williams terá chamado uma “sweetly vicious old lady”? É conversa de escritor. Deveria, por isso, ter como alvo outro escritor. A pérfida citação visava, creio não estar errado, um escritor rival, Truman Capote. Seria uma forma pérfida de se tratarem (ou destratarem) se o estilo, o ritmo da frase, o subtexto (ah, pois) não concedessem inescrutável transcendência a tamanho bofetão. Confesso, se os termos forem sempre estes, alguma respeitável paixão pela infâmia.

E agora que já preambulei, entro directo na matéria: os meus livros.

Há um livro de patíbulos e de piratas que a misericórdia divina cedo me colocou nas mãos e de que serei eterno e desvairado leitor. Escreveu-o, em  estilo deliberadamente barroco, um escritor cego, de Buenos Aires.

Nesse livro, a que o autor chamou “História Universal da Infâmia”, o meu maior motivo de deleite é um pequeno conto de que é herói Billy the Kid, o assassino desinteressado.

Um tiro feliz e cobarde catapultou-o para a fama. Billy disparou, coberto por uma barreira de homens temerosos, contra El Diego, um odioso mexicano que entrara no saloon gritando as boas noites a todos os gringos filhos de uma cadela que estavam a beber.

Billy morreu, pouco mais do que uma criança, aos vinte e um anos, o exacto número de mortos que, “sem contar os mexicanos”, como escreveu Borges, devia à justiça dos homens. Liquidou-o, sem glória nem ódio, o xerife Pat Garrett, seu amigo.

Em Fort Summers, sentado e meio-escondido numa arcada obscura, Garrett disparou, antes de lhe fazer qualquer pergunta, acertando-lhe em cheio na barriga. Ao fim de horas de agonia, Billy the Kid morreu – os habitantes da small town fecharam-se em casa, cortinas corridas até que, e nem uma mosca se ouvia, exalasse o último e assassino suspiro. Depois, em Fort Summers e arredores os precários habitantes exibiram-lhe longamente e com ferocidade o cadáver. E Jorge Luis Borges, o escritor cego que é seu autor, com desditada ironia conclui: “Ao quarto dia enterraram-no com júbilo”.

Do que é que eu gosto – e gosto despudoradamente – nesta história? Do puro prazer narrativo com que Borges a trata, convite para a lermos como se fossemos a velhinha docemente viciosa, que era o que Tennessee Williams chamava a Truman Capote.

Sem falsos moralismos, nem desculpas, quinze vezes levada ao cinema (a penúltima foi no “I’m Not There”, onde é uma das personae de Bob Dylan; o último, “The Kid”, com Dane DeHaan e Ethan Hawke a fingirem de Kid e Pat) a história de Billy the Kid converte o abominável em sublime. O que, se estivéssemos a ler as notícias do dia ou a consumir telejornais, nos pareceria apenas torpe e hediondo, ganha na literatura (por vezes nos filmes e tantas vezes nas canções) a grandeza piedosa e épica da lenda.