A Morte

der Müde Tod
A Morte Cansada

Faltavas tu. Esta Página Negra tem estado à tua espera. Mais cedo ou mais tarde chegarias. Tu mesma, A Morte, a ceifeira, a senhora de branco. Pensa-se que sim, mas não, não és tu que matas. Somos nós que morremos em ti.

Não te invejo a dura sorte, a veste quimérica, a gadanha cruel, o rosto torcido, munchiano, o silêncio imperturbável. Não falas, sopras. Um sopro cansado. És, de certeza, alemã: Der Müde Tod*.

Descansa agora: deves estar esgotada. Trazes um cansaço labiríntico, de milénios.

És menos cruel do que se julga. Vi-te uma noite, no sono, imóvel no meu sono. Come seeling night…**, vem, vem assim, ó noite de olhos vendados. Percebi que não és tu que matas. Morremos sim do medo frio e cinza de te ver. Um medo dos diabos planta-se no meio do sono. Um medo que nunca se teve, nunca se tem, nunca mais se voltará a ter na vida. No meio do sono, um frio antárctico, o coração arrepanhado, o corpo crispado como as ruínas de uma casa. E tu olhas, olhar apócrifo, para as frágeis paredes de carne, as veias entupidas. Olhas como quem pensa, estática, dentro de um véu de desespero, as abruptas dores do sono: the pains of sleep***.

Nunca te vi na morte dos outros. Compreendo que seria um embaraço. Por cortesia, para que ninguém se mortifique, foges da melancolia dos funerais. Vi-te a cavalo, a pé, camuflada numa lenta carroça. E o que vi, vendo-te, é o espectáculo da mais triste solidão. De uma desolada fealdade. Segue-te, como banda sonora, o ímpio urro sem remorsos. Não te invejo a sorte. E menos invejo a agonia de todos irmos morrer em ti.

Chegas agora. Vens juntar-te às delicadezas e indelicadezas que já habitam esta Página Negra. Chegas, anjo nocturno, casamento único de céu e inferno. Contigo, que outra coisa pode ser a Página Negra, que não seja uma anfitriã gentil: vai sentar-te à mesa, contar-te-á sonhos, rêveries que a tua eterna e imutável insónia nunca te permitirá ter. Uneasy lies the head that wears a crown****. É essa, uneasy, intranquilíssima, a tua cabeça, cabeça-coroa-de-espinhos, em que não cabe, nem pousa, a tiara de sono ou sonho. Sobre de ti ou de ti irradia sempre e só a pálida luz bruxuleante, azulada, infeliz.

Descansa agora Müde Tod, minha cansada morte. Esquece os túmulos, os vermes, a terra. Goza um minuto, um minuto que seja, um minuto de cristal, de tempo fora do tempo. Aceita um lindo epitáfio: so shall my walk be close to Death***** ( que eu traduzo livremente por “possam os meus passos roçar a Morte“) e deixa-te levar, não recuses o doce abraço de mármore, vem tu morrer um bocadinho em cada um de nós.

 

* A Morte Cansada, título do filme de Fritz Lang, da fase alemã.
** Shakespeare, Macbeth III, 2
*** título de poema de Samuel Taylor Coleridge
**** Shakespeare, Henry IV, Part Two, III, 1
***** Variação sobre verso de William Cowper — So shall my walk be close to God – do poema Walking with God.

O sono de Descartes

sommeil-gustave-courbet
Le Sommeil, Gustave Courbet

Nas “Meditações de Filosofia Primeira”, porventura a sua obra-prima (ou será “As Paixões da Alma”?), Descartes afirma: “Esteja eu acordado ou a dormir dois e três dá sempre cinco e o quadrado nunca tem mais de quatro lados.”

Sono sólido: Descartes nunca teve insónias.

ib e o seu marido, Lucien Freud
Ib e o seu marido, Lucien Freud

sonho e tempo, tempo e sonho

Las Viejas uma interpretação do tempo
Las Viejas, a goyesca interpretação do tempo

Talvez a vida não seja mais do que sonho, talvez a nossa pequena vida esteja cercada, apenas e só, por um redondo sono.

Prefiro pensar que, mais do que a matéria com que se constroem os sonhos, é o tempo a substância de que todos somos feitos. Um tempo irreversível e inexorável.

Podemos sonhar, pode o sono obscuro invadir-nos, o que não podemos é negar o tempo. Negá-lo é negarmo-nos.

Por vezes é lícito trocar este stuff de Shakespeare:

We are such stuff
As dreams are made on; and our little life
Is rounded with a sleep.

(Nós somos essas coisas
de que são feitos os sonhos; e a nossa pequena vida
está rodeado de sono.)

Shakespeare, The Tempest

por esta sustancia de Borges:

El tiempo es la sustancia de que estoy hecho.
El tiempo es un río que me arrebata, pero yo soy el río;
es un tigre que me destroza, pero yo soy el tigre,
es un fuego que me consume, pero yo soy el fuego

(O tempo é a substância de que sou feito.
O tempo é um rio que me arrebata, porém sou eu o rio;
é um tigre que me destroça, porém sou eu o tigre;
é um fogo que me consome, porém sou eu o fogo.)

Borges, Otras Inquisiciones

Picasso
Picasso: sonho ou sono

Bury a friend

Hoje a minha mãe faria 93 anos, não tivesse ido a enterrar há 6 anos. Tanto se pode ir a enterrar no passado como a ir enterrar no futuro. Nesta canção vai-se a enterrar no presente. Ouvi-a esta manhã. Não sei se é belíssima, se é terrível. Passou por mim o vento de saudade de um tempo menos pesado: When we all fall asleep, where do we go?