Um cadáver ainda quente

Juliette
Juliette vista por Charles Emile Callande de Champmartin.

Era o tempo em que maridos e mulheres se enganavam. Mais uns do que outros. E já estou a dar duas estaladas a mim mesmo, a ver se acordo do erro histórico. Corrijo: era o tempo em que maridos e mulheres se traíam. Mas Victor Hugo, o respeitável Victor Hugo, que eu imagino com a voz plena e sonora de um Manuel Alegre, ainda não traíra Adèle, mãe dos seus cinco filhos.

Há dez anos fora a noite de núpcias. Esqueçam lá Ilíadas e Odisseias e tudo o que a antiga musa canta. Poderoso, priápico, Hugo dera a Adèle, nessa noite, nove êxtases celestiais, teresíacos, qualificativo que o mais humilde dos leitores logo liga à mística carnalidade da santíssima Teresa de Ávila. A seguir deu-lhe cinco filhos principescos, a que se sucedeu um real vazio do tálamo.

E ouçam o que acaba de saber o grande Victor: Adèle buscou consolo no seu melhor amigo, Sainte Beuve, que, embora putativo poeta, exerce a medíocre actividade de crítico literário. Não podia haver maior opróbrio para o vate de França: ser traído por um crítico. Não sem vantagens para Adèle: Sainte Beuve teria um má formação genital hermafrodita, Adèle chamava-lhe até Charlotte, e aquilo não fazia mal nenhum à menina, como de uma pila pequenina se dizia num filme de João César Monteiro.

 Mas eis que na leitura de uma das suas peças teatrais, o recém traído Hugo encontra a actriz Juliette Drouet. Coup de foudre. Ele tinha 32, ela 26 anos e combinaram ir juntos ao baile de terça-feira de carnaval. Foi em Fevereiro de 1833 e ele foi buscá-la a casa da senhora K. É que nem chegaram a sair. Da noite de 17 para 18, ao longo das wee hours que o solitário Frank Sinatra canta aflito e de membro caído, o quartinho de Juliette ardeu de desejo, fogosa e feliz consumação. Oito horas!

Juliette tinha um conde russo que lhe pagava as generosas contas, era mais assediada do que vinte actrizes de Hollywood, tivera vários casos, mas depois dessa noite foi, só e sempre, a obstinada e obsessiva amante de Victor Hugo, deixando mesmo o teatro. Vivia num apartamento de que só saía quando ele a vinha buscar. No resto do tempo escrevia-lhe cartas, duas por dia, 20 mil ao todo.

Nunca saía? O que faz então Juliette, já passa da meia-noite, a 4 de Dezembro de 1851, correndo, em estrangulada excitação, colada às noctívagas e abandonadas ruas de Paris? Passa agora por uma barricada, pisa um cadáver ainda quente, vira outros, naquele frio medo de em algum reconhecer a cara do seu amado Hugo. Vindo do ângulo dos Grands Boulevards, um clamor entra-lhe nos ouvidos e arrasta-a pelos cabelos: vai descobrir Victor Hugo em cima das barricadas orando às massas sem a gaguez de Demóstenes. Ela grita-lhe que o golpe de Luis Napoleão Bonaparte triunfou e que ou foge ou o matam.

Fogem os dois. E volto a pedir perdão, agora pela má aritmética: fogem os três, Hugo, Adèle e Juliette. Vão viver, numa ilha britânica da Mancha, um civilizado e refinado exílio à trois. Debaixo de dois distintos tectos, que Hugo não é nenhum miserável Lenine.

Como os leitores sabem, felizmente esta coisa do amor acabou e vivemos numa sociedade asséptica e com esplêndidos expedientes jurídicos. Ninguém, com recurso a uma alimentação sem glúten e atento à pegada ambiental, passaria pelo pesadelo de escrever este pedaço de prosa mórbida, como a bela Juliette o fez a Victor Hugo: “O laço que nos liga é o que me liga à vida. Se não tivesse sido tua amante, queria ter sido tua amiga. Se me recusasses a tua amizade, pediria de joelhos para ser o teu cão, o teu escravo.” Eis o aviltante, feérico amor.

Publicada em “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo” no Jornal de Negócios

O #MeToo do século XIX

leonie

Pelas agruras das camas das gerações anteriores conheceremos as nossas? Lençóis à parte, o que tem uma cama do século XIX a ver com uma cama #MeToo?

Espreitemos. A irrupção de Léonie d’Aunet na vida e na cama de Victor Hugo, autor de “Os Miseráveis”, alegrou-o tanto a ele como a Adèle Foucher, sua mulher. Outra mulher naquela cama era uma boa notícia: Adèle estava pelos cabelos com a amante oficial de Hugo, a actriz Julliete Drouet.

E já estou a pôr duas camas à frente do amor. Volto atrás. Victor Hugo e Adèle eram quase noivos de infância. Teriam casado aos 16 anos dela, se a aristocrata mãe de Hugo não desdenhasse a origem sem pedigree de Adèle com o mesmo maternal complexo de superioridade que, hoje, um sociólogo de esquerda aplica à observação da abnegada doçura do povo: Adèle era boa para brincar à cabra cega, mas não para casar. Morreu a mãe e, livre, Hugo casou com Adèle.

Hugo e Adèle tiveram cinco filhos, mas fizeram das suas vidas linhas paralelas que nem a cama conseguia já juntar. Adèle não acompanhava a turbulência boémia de pintores e escritores, nem essa declamatória voz de Hugo, que imagino com a potente sonoridade da de Manuel Alegre. Um amigo de Victor Hugo, amigo lá de casa, o escritor Saint-Beuve, insidioso, ofereceu a Adèle o sub-reptício ombro meloso. O banho-maria intimista de Saint-Beuve era o oposto da truculência viril de Hugo. Adèle apreciou o contraste e tomou a metade de homem que era Saint-Beuve como amante.

Há dois parágrafos que tenho a bela Léonie d’Aunet à espera. Foi a primeira mulher numa expedição ao Árctico. Romancista, amiga das artes, era casada com o pintor François-August Biard. Mas este parágrafo é ainda de Juliette. Victor Hugo perdoou a infidelidade a Adèle, mas sentiu-se autorizado a ter também uma amante oficial. Juliette viera pedir um papel numa peça dele. Era um pé como actriz, mas de uma beleza que fazia soltar “ohs!” de espanto às pedras da calçada. Apaixonaram-se e foram amantes nos 50 anos seguintes. Tudo consentido por Adèle, ressentida apenas com a tamanha exclusividade que os amantes se dedicavam.

O arranjo levava dez anos quando o grande escritor conheceu a bem casada Léonie. Tenho aqui de usar um neologismo: irresistiram-se, caindo nos braços um do outro. Durante dois anos gozaram uma clandestinidade de beijos roubados, camas e quartos de sabe Deus. Até que Léonie falou ao marido de divórcio. François-August já sabia do affaire e consentiria em tudo, menos no divórcio. Veio com um comissário de polícia e surpreendeu-os na cama, em flagrante delito.

Eis o #MeToo do século XIX, acusar a mulher livre e autónoma. Léonie foi arrastada para o calabouço de Saint-Lazare e enfiada num convento por seis meses. Victor Hugo, por ser “par do reino”, era intocável: gozava a imunidade do nosso deputado de Lisboa ou Bruxelas. Foi preciso que o imperador de França, Luís Filipe I, aconselhasse o marido de Léonie a regressar à pascácia calma civilizacional. François-August desistiu da queixa: recusar o conselho imperial seria como recusar uma palavra amiga de Marcelo, se Marcelo nos desse palavras amigas sobre patrióticos rompantes sexuais.

Para revolta da amante oficial, Juliette, que não aceitava traições, quem, depois, pôs Léonie sob a sua asa foi a esposa Adèle. Recebi-a em casa e trocava conselhos literários por dicas de beleza e decoração. Dissuadiu-a até de seguir o escritor quando ele foi exilado político. Victor Hugo honrou os compromissos com as três mulheres que amou e o amaram. Nunca se divorciou de Adèle.

Publicado na minha coluna “Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo”, no Jornal de Negócios