A jukebox

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Podem atirar setas ao peito do meu passado. Embebam, se quiserem, a ponta das setas em ironia, mesmo sarcasmo. A gozação esbarra num escudo protector: a banda sonora da minha vida tem canções à prova de bala.

Vi Blade Runner 2049. Não me perguntem se gostei. Sem tirar o rabo da cadeira já me piro muitas vezes dos filmes: passo leve pelas brasas como me ensinou João César Monteiro, cineasta-unicórnio. Mas eis que no meio da pretensão minimal e em cinza do novo Blade Runner aparece o velho Harrison Ford. Acordei eu e acordou toda a gente. Convidou-me para um copo – convidou também o cão dele, nocturno bebedor de whisky – e pôs música. No filme, Ford tem uma jukebox. Tropecei na minha própria inveja, quando ele a pôs a tocar. Na jukebox de Harrison Ford, quando Sinatra começa a cantar One For My Baby com a tristeza de um cachorro órfão, não só o ouvimos, como vemos um holograma dele. Um holograma. Dava uma perna, aquela de que tenho duas, para ter tido este futuro no meu passado.

A jukebox que desperta a minha maior fome nostálgica é de Luanda. Ficava na Ilha de Luanda, num africaníssimo tasco de pescadores, encostado a 1971 e à Igreja de Nossa Senhora do Cabo.

Eu descia a cidade toda para lá chegar ao fim da tarde e ao pé do mar. Na Igreja, éramos um bando de miúdos católicos a roçarem-se pelas asas da Revolução. Vínhamos alfabetizar os pescadores negros, as mulheres deles e os filhos mais velhos. Usávamos o famoso método Paulo Freire, champô pedagógico dois em um: não só ensinava a ler como dedilhava a consciência dos educandos, empurrando-os para o buraco negro a que então chamávamos «o homem novo».

Só não me arrependo, e sei que Deus me perdoa, por causa da velhíssima e decadente jukebox. Chegava uma hora mais cedo para beber cerveja, ouvir a música e o crepuscular ócio do musseque. A minha memória não me trai: a jukebox só tocava duas canções. Tocava Café, Tostao y Colao, maravilhosa rumba, salsa ou jazz (e era isso tudo) criada por Eddie Palmieri e cantada por Ismael Quintana. Ouçam-na. A canção é um lânguido espelho de torpor e preguiça, um ritmo que empresta às ancas uma volúpia de câmara lenta. Aos primeiros acordes já dançamos na imóvel cadeira, mas o que nos levanta é mesmo um trio de trompetes. Junta-se a voz, sax, timbales, congas, bongós e maracas e juro que vi a mágica dança de Cucas e Nocais, num embalo de ilusão e romance.

Tocava a seguir Moliendo Café, rumba do maestro Hugo Blanco. Cantava-a o barítono Nelson Villalba. Ia jurar que na jukebox da Ilha a voz que a cantava era a de Lucho Gatica, tanto puxava a rumba para os lençóis do bolero.

E não sei se invejo a jukebox de Harrison Ford. A minha também tinha, afinal, um holograma. Estou a vê-lo: geladíssima cerveja na mesa, os irónicos pescadores a rir com o miúdo branco, caía lânguida a tarde arrastando fundas sombras. Depois, no letargo da noite, parecia que toda a Ilha de Nossa Senhora do Cabo gemia. Talvez tocasse um vento de futuro nessa jukebox do passado.

A nova burca

 

burka

O dedinho espetado é coisa que me chateia. Mesmo a segurar a bica curta. Mas vá um pobre de Cristo por onde vá, hoje há dedos espetados por todo o lado. Dedos acusadores esburacam a vida pessoal, o foro íntimo. Usando a “justiça social” como burca, os novos fundamentalistas primeiro reprimem, depois oprimem. O slogan “tudo é político” voltou em modo histérico e infesta o ambiente, a cama, a paisagem étnica.

Tudo é unilateralmente político e se alguém questiona os temas militantes, uma chusma de dedos culpabilizantes arrasa o recalcitrante, arrastando-o pelas amargas ruas da intolerância. A verdade já viveu melhores dias.

Bica Curta publicada no CM em 14 de Março

O CEO e o taco de baseball

Capone

Não me digam, com boca de raiva, que era um gangster, que me obrigam a gritar a clamorosa verdade: era um benemérito. Espanta-me até que André Veríssimo, director do nosso Jornal de Negócios, não tenha já dedicado uma separata ao maior CEO do século XX, Alphonse Gabriel Capone.

Al Capone, como a História com suave intimidade lhe chama, foi o maior CEO e empreendedor dos anos 20 e 30 do passado século, investindo em destilarias, cervejarias, cabarets, apostas de cavalos, pequeninas e grandes casa de jogo, refulgentes casas de prazer. Nasceu em Bro­o­klyn. Numa rixa, uma ponta-e-mola desenhou na bonomia do seu rosto uma lendária cicatriz. À boca pequena, os inimigos chamavam-lhe Scarface.

Ainda as sobrancelhas eram a sua única zona pilosa e já o adolescente Alphonse constituíra uma filantrópica associação de prazer, com jovens meninas, persuadidas a colaborar, por certo com bons modos: terá sido numa rua esconsa de Brooklyn. Um atento investidor do ramo, ciente de que o bom CEO é o CEO que circula, mandou-o para Chicago, confiando-lhe a gestão de uma célebre casa de entretenimento, nesse tempo em que lazer e cultura andavam de mãos e pernas dadas. Em suma, cultivou, com responsabilidade social, o escape físico e metafísico do mercado do jogo, da bebida e do comércio amoroso. O seu management exaltante foi a referência, o benchmark do seu tempo.

Teve a merecida projecção galác­tica de um Cristiano Ronaldo. Em 1929, a par de Einstein e Ghandi, foi o homem do ano. Com um mérito: Capone não foi eleito pelas razões desenxabidas da escolha dos outros dois.

A analogia é tão banal que até me custa usá-la, mas sim, gozou uma popularidade de Marcelo. O povo pobre de Chicago adorava ver a sua risonha cara italiana. Fez Cristo a multiplicação de pães e peixes? O bem-aventurado Al Capone encheu de sopas quentes o mirrado e gélido estômago dos carenciados. Não sei se roubou a ricos para dar aos pobres, mas ai de quem não veja nestas acções redistributivas a premonição do rendimento mínimo garantido, que só o radioso futuro que somos viria a inventar.

Persistente como um Bill Gates, um Steve Jobs, o seu inconformismo herético, tão out of the box, somado à empatia com o povo eleitor, gerou a surda raiva de políticos míopes, longe ainda de sonharem com a glória das PPP, as parcerias público-privadas, hoje berço da nossa felicidade.

O fisco. O raio do fisco, incapaz de ver a tranca no seu olho, viu no de Al Capone um grão de areia: não pagara o IRS. Prenderam-no. Diga-se, na progressiva prisão de Atlanta, trataram-no melhor do que Caifás a Jesus. Tinha alcatifa, um esplêndido rádio para ouvir os folhetins que ungiam a sua alma simples, uma cama de água por causa de incomodativa hérnia. Não eram mordomias: estava ali preso um benemérito. Mas transferem-no para Alcatraz e logo o rude sistema prisional lhe mostra os ferozes caninos: põem-no a trabalhos forçados, pão e água, sem um vislumbre dos redentores ideais de reinserção social de Atlanta.

Bem pode a resistência à mudança e à diferença de um Bourdieu, de um Boaventura Sousa Santos, dizer o contrário: a Capone movia-o um ideal, o de satisfazer a demanda pública. Era um libertário, inimigo do proibicionismo repressivo da Lei Seca. Diz-se terem sido peculiares os seus métodos: afagava a cabeça de traidores a potentes pancadas de taco de baseball, comemorou o dia de São Valentim à metralhadora. Ora, ora… Sei é que, crucificado pela incompreensão, aos 33 anos, como Cristo, se entregou a uma vida de recolhimento, em Alcatraz.

Publicado em Vidas de Perigo, Vidas sem Castigo, no Jornal de Negócios

Hipérbole e oração

aqui falei da Hipérbole, isso (ou aquilo?) a que, para já, só podemos chamar “the thing”. É uma pequena ou grande obra em progresso. Mas já há, nos bastidores, grandes movimentações. O Luís Jerónimo, que também é de filosofia, como eu fui e talvez ainda seja, é um dos autores que anda à volta dessa misteriosa hipérbole. Ofereceu-me este belíssimo texto, oração tão sincera. Faz sentido.

 

Luís Jerónimo
A hipérbole do sentido – uma oração a partir de Finita de Maria Gabriela Llansol

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“Se eu nunca arriscar a razão, nunca saberei. Nunca saberei pensar”

Que eu consiga desconfiar da lógica, desafie a razão ao seu limite e me deixe seduzir pela verdade.

Que a dúvida persiga o que me sustem, que o absurdo me permita compreender melhor, revele o que me faz ser.

Que o saber ocupe o seu lugar, desatine o que vejo e ilumine o meu silêncio.

Que a imaginação me deixe confiar no rumor da beleza, na inquietação da esperança, na graça do mundo.

Que eu faça justiça à madrugada das paixões, à luz dos sentidos, ao abrigo das árvores que me conhecem.

Que eu me deixe enganar pelos livros que me desassossegam, pelos versos que me tomam de assalto, pelas palavras que estão por inventar.

Que sempre escreva como quem regressa.

Que eu me faça sentido.

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LMJ
10 março 2019

Curtes, meu?

canabis

Antes a bica curta do que um charro. A velha canábis bebe água como eu gostaria de beber champanhe. Uma simples planta de marijuana sorve mais de 22 litros por dia. Seja no campo, seja nos jardins domésticos, a marijuana é um desastre ecológico. Um charro, um daqueles “Komé, meu, curtes?”, e já espetámos no ambiente com quilo e meio de dióxido de carbono. Um quilo de marijuana põe mais de quatro toneladas do mesmo veneno na atmosfera. Não é só uma pedrada, é cá uma pegada!

Haja fé, com transformações genéticas, cientistas de Berkeley produziram sofisticados canabinóides da levedura de cerveja. Não sei é se se fuma ou se se bebe.

Bica Curta publicada no CM a 13 de Março

Hipérbole

Ainda está para chegar, e para se saber o que será, “the thing” chamada Hipérbole. Vai existir e vai ser a “cena” que há-de substituir o saudoso Escrever é Triste. Mas já há quem desenhe e escreva, se bem que “the thing” possa até nem vir a ter a forma de escrita.
Pedi muitíssimo por favor à Ana Vidigal, pintora, capaz de criar usando mil artifícios, da ilustração à fotografia e à colagem. Pedi muitíssimo e ela disse-me que sim, que podia publicar a imagem e o texto abaixo, formas que encontrou para glosar o conceito de hipérbole. Para enriquecimento e glória desta Página Negra. Obrigado, Ana Vidigal. 

Hipérbole
Ana Vidigal

Ana Vidigal

“Podemos tirar a menina da hipérbole mas nunca tiramos a hipérbole da menina”
Fotografia digital, 2019

A pequena ordem do meu mundo

Capa

Não fora um centímetro a mais na largura e seria um enorme quadrado, de 33 por 33 centímetros. Assim, por um centímetro é um livro de 33×34, metamorfose do quadrado em rectângulo. Não fora um poema da portuguesa Eugénia de Vasconcellos e Like a Tree Let the Dead Leaves Drop seria um livro com a pintura da sul-africana Jacqueline Alma, tão marcada pela vivência, enquanto criança, com a proximidade aos animais selvagens da imensa África.

A Pequena Ordem do Meu Mundo, Amigo Demócrito, o poema de Eugénia de Vasconcellos, autora da Guerra e Paz, ocupa oito páginas do livro, metade na versão portuguesa, metade na versão inglesa, traduzida por Margaret Jull Costa, tradutora também de Sophia de Mello Breyner Andresen, de António Lobo Antunes e de José Saramago.

Há, no poema de Eugénia de Vasconcellos uma aceitação da vida de um sereno dramatismo, olhar tão lúcido como céptico para o fluxo dos seres e das coisas, esse rio dos dias em que a poeta e nós habitamos.  E cito:

E Eva saí de manhã
vi um lobo na varanda,
dois tigres na estrada:
fazemo-nos domésticos por amor,
fazemo-nos pequenos para seja grande
o que o nosso amor ilumina:
um filho, um homem, uma cidade,
uma ideia, uma obra, uma civilização.

Como a dádiva do Lobo ao Homem,
fê-lo dono, fê-lo amo, fez-se cão.

poema_pt

Ou, em inglês:

And I, Eve, set out early
and saw a wolf in the balcony,
and two tigers in the road:
we make ourselves domestic out of love,
we make ourselves small so that
what our love illuminates can be big:
a child, a man, a city,
na idea , a work of art, a civilization.

Like the gift the Wolf gave to Man,
made him his lord, made him his master, and made himself dog.

Poem_English

Recebi este livro e no livro um poema. Um poema bastaria a Eugénia de Vasconcellos, sobretudo este poema de conversa com o mistério do mundo. Mas não. Eugénia tem também, a “um verso de cada vez”, dois livros maiores publicados na Guerra e Paz editores, O Quotidiano a Secar em Verso e Sete Degraus sempre a Descer. Vem o terceiro a caminho.

Tigres e bambus

JADAV

Cinco dias e cinco noites, sozinho na selva, e eu estaria morto e enterrado. Nós, homens da cidade e da bica curta, já não somos senhores da natureza. Digam isso a Jadav Payeng, cidadão indiano. Aos 16 anos, voltou à ilha da sua tribo numa acção de reflorestamento. Plantaram umas árvores e ala que se faz tarde. Mas a Payeng roeu-lhe a alma ver deserta a ilha dos antepassados. Sozinho, ficou 30 anos a plantar arbustos, árvores, bambus. Criou uma floresta de 550 hectares, onde há, hoje, tigres, rinocerontes, cobras, milhares de aves. Elefantes de visita.

Não somos senhores da natureza, mas há homens que são senhores de si mesmos.

Bica Curta publicada no CM, a 12 de Março